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CAPÍTULO 4 MAIS ESCÂNDALOS EM 2006, É O ANO DA REELEIÇÃO

4.3 A QUEDA DE PALLOCCI

Uma semana depois, a edição de 29 de março decreta na capa que o PT perdeu a “bússola ética e o senso do ridículo”. Os fatos que fazem o enunciador dizer isso são a quebra do sigilo bancário do caseiro que denunciou Palocci e a dança que a deputada Ângela Guadanin (PT) promoveu ao ver um colega acusado do “mensalão” ser inocentado pela Câmara. A matéria principal leva o título de “O Paloccigate e a morte da ética”. A reportagem começa assim:

“O ministro Antonio Palocci pode ficar no governo até amanhã. Ou depois de amanhã. Ou até 31 de março, o último prazo para os candidatos na eleição de outubro deixarem seus cargos públicos. Ou até 31 de dezembro, quando termina o mandato do presidente Lula. Mas desde as 20h50min25s do dia 16 de março, uma quinta-feira, o ministro Antonio Palocci começou a perder aceleradamente as condições – políticas, éticas, administrativas – de manter-se no cargo de ministro da Fazenda do Brasil. Naquela hora daquela quinta-feira, os computadores da Caixa Econômica Federal, banco estatal sob o comando do Ministério da Fazenda, foram bisbilhotados ilegalmente para emitir um extrato da conta bancária de Francenildo Costa, o caseiro que disparou um petardo contra o ministro ao jurar ‘até morrer’ tê-lo visto ‘dez ou vinte vezes’ no célebre casarão do Lago Sul onde a turma de Ribeirão Preto se esbaldava em festas e negócios. A quebra do sigilo bancário do caseiro, praticada com o intuito de defender Palocci e desqualificar seu acusador, é um estupro constitucional como poucas vezes os governantes ousaram cometer no Brasil. O resultado da ação é um vendaval ainda em formação mas que já pode ser considerado o pior escândalo do governo depois do mensalão. Pior do que roubar dinheiro público e, com ele, comprar a cumplicidade, o silêncio ou o apoio de deputados no Congresso? Sim, pior. Quebrar o sigilo bancário de um inocente para amedrontá-lo e impedir que continue acusando um potentado é mais grave constitucionalmente do que cada uma das ações miúdas reunidas sob o rótulo de ‘mensalão’” (Veja, 29/03/2006).

Apesar de decretar a morte da ética e falar sobre o pior escândalo depois do “mensalão”, o enunciador admite que “não há sinal de que o ministro Palocci tenha tido um envolvimento direto no caso, mas existem suspeitas de que o rastro dessa violação constitucional chega à soleira da porta de seu gabinete”. Suspeita não é fato e, segundo as regras do bom jornalismo, nada deve ser publicado sem provas.

Nesta primeira matéria, cujos desdobramentos nas semanas seguintes levarão Veja a pedir novamente o impeachment de Lula, o enunciador inicia uma estratégia de comparar o caso com o conhecido escândalo de Watergate, que levou o presidente americano Richard Nixon à renúncia, em 1974.

“Tanto em Watergate quanto agora no Paloccigate é muito mais grave a cadeia de crimes cometidos para esconder a transgressão inicial do que ela própria. Em Watergate o crime inicial foi um arrombamento seguido do roubo de papéis sem importância. O Paloccigate começou com a investigação das ligações do ministro da Fazenda com uma turminha da pesada formada por ex-amigos e colaboradores dos tempos em que ele foi prefeito da cidade de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Os amigos gostavam de farras sexuais e ansiavam por arrastar o ministro para seu meio novamente e, assim, fazer negócios lucrativos com o governo Lula. Existem

evidências claras da volta do ministro ao convívio da turminha da pesada. A mais forte delas é o depoimento do caseiro Francenildo” (Veja, 29/03/2006).

Sobre os negócios que teriam produzido esses encontros, existem apenas suspeitas sem a mínima comprovação. Mas as suspeitas são tudo que Veja precisa para incriminar os petistas. A modalização discursiva de que Lula é igual a Collor permanece.

“O que levou o governo do PT, esse partido que chegou a fazer da ética sua ideologia, a assemelhar-se tanto com os momentos de vale-tudo dos estertores da era Collor? O escândalo atual é um emblema da ruína moral deste governo. Sua gravidade, porém, não está nos aspectos mais comentados. Não está no passado de sombras de Palocci na prefeitura de Ribeirão Preto, nas suas visitas furtivas ao casarão do Lago Sul, nas suas afirmações reiteradamente desmentidas em público ou mesmo nas acusações do caseiro Francenildo Costa. Não está na novidade mais recente – a de que a turma de Ribeirão, com Palocci à frente, também freqüentava uma casa em Angra dos Reis, no litoral do Rio de Janeiro, para onde se deslocaria a bordo do helicóptero de um bingueiro angolano. A gravidade do caso está mesmo é na inacreditável cadeia de ações criminosas patrocinadas pelo governo nas duas últimas semanas” (Veja, 29/03/2006).

Outra estratégia discursiva que permanece é a do esquerdismo irresponsável e ditatorial do PT. O enunciador lembra que o “sigilo bancário e fiscal é um dos pilares das nações civilizadas. Ele protege os cidadãos. Nem Fidel Castro e seus barbudos assassinos buliram com o sigilo bancário nos primeiros momentos da Revolução Cubana. O governo Lula veio em um crescendo de ousadia. (...) É lamentável, mas os últimos governos no Brasil, todos eles, deixaram sua marca em violação de direitos na forma da exploração ilegal de dados bancários (...) Em nenhum dos casos anteriores, porém, houve uma violação tão explícita de sigilo bancário como a atual, que conta até com a emissão de extrato, e em nenhum se usou o imenso peso do Estado para esmagar uma vítima tão desproporcionalmente mais fraca como um caseiro – o que, além do pendor totalitário, revela uma boa dose de covardia. No governo do PT, o abuso autoritário de agora não soa como caso isolado, acidental, mas parece integrar um todo ameaçador devido a outras atitudes autoritárias cometidas no passado recente, como as ameaças de controlar a imprensa, a televisão e o cinema”. O enunciador encerra a matéria a seguinte análise:

“Não pode ser bom um governo que gasta a maior parte de seu tempo e sua energia negando crimes, driblando suspeitas, incitando uns a mentir, constrangendo outros a ficar calados. Não pode ser bom um governo cujo líder máximo, o presidente

Lula, insiste em usar seus inegáveis carisma e prestígio para amortecer os impactos dos escândalos mais patentes. Ao negar, negar e negar o que os olhos vêem, os ouvidos escutam e as bocas falam cada vez com maior clareza, Lula está impedindo que os escândalos passem pelo metabolismo natural que vai da denúncia à apuração até desaguar nas eventuais punições. Sem esse calvário, só Lula ganha. O país perde” (Veja, 29/03/2006).

Preocupado com os brasileiros que têm recebido péssimos exemplos éticos do alto escalão da República, o enunciador veicula uma outra matéria em que aponta “40 questões do dia-a-dia sobre o que é certo ou errado”. Veja acha importante essa pauta porque “Há algo de podre no reino da Dinamarca” e o Brasil não pode correr o risco de esquecer os preceitos éticos.

“Para o bem ou para o mal o povo, em sua condição coletiva, pode ser levado para um lado ou outro pelas suas lideranças – independentemente das convicções individuais de cada uma das pessoas. Significa também que o exemplo que vem de cima é crucial. Se ele é bom, incentiva o bom comportamento individual. Se são maus os exemplos, mais as pessoas vão se sentir liberadas para recorrer a ‘jeitinhos’ e ‘tirar vantagens’ (...) O mais chocante nas transgressões atuais do governo é o fato de que elas são um ataque organizado à ética pública” (Veja, 29/03/2006).

Na mesma semana, Palocci não resiste e deixa o Ministério da Fazenda depois de 3 anos e 3 meses. Na edição de 5 de abril, Veja diz que a quebra do sigilo bancário do caseiro já é a “mais grave crise do governo Lula”. Mas o leitor pode esperar mais pela frente, porque a “natureza dos crimes cometidos e pela posição dos envolvidos na hierarquia política do país, pode-se presumir que a crise esteja apenas no começo”.

“Esse caso já produziu sua cota de ilegalidades. Outra delas, até agora desconhecida, foi a quebra do sigilo bancário do suposto pai de Francenildo Costa, o empresário Eurípedes Soares, do Piauí. Palocci e seu bando fuçaram a conta de Soares da qual havia saído o dinheiro para Francenildo. Eles acharam "curioso" o fato de o empresário ter feito uma operação triangular para transferir parte do dinheiro enviado ao caseiro. Não é "curioso" o Brasil ter esse tipo de gente no governo. É trágico” (Veja, 29/03/2006).

Com a queda de Palocci, Veja volta à carga para derrubar outro ministro importante do governo Lula, Márcio Thomaz Bastos, da Justiça. A edição de 12 de abril retoma a estratégia discursiva de que o ministro tem atuado como advogado de petistas envolvidos em crime, na modalização de que o PT confunde o público com o privado. Continua também a fazer um paralelo da crise atual com o escândalo Watergate.

“As analogias entre a crise atual e o caso Watergate são patentes: integrantes de um governo que acham que podem usar impunemente a máquina do Estado para perseguir inimigos, um crime menor que se torna cada vez mais grave – e evidente – pelas tentativas desesperadas de acobertamento, a autofagia que se dissemina à medida que os condenados decidem que não vão pagar a conta sozinhos. Um ministro da Justiça também teve um papel decisivo em Watergate: John Mitchell, homem de confiança do presidente Richard Nixon. Saíram de sua cabeça as principais malfeitorias do escândalo: a idéia de usar grampos sem ordem judicial e a criação de um grupo de "assessores" encarregados de fazer o serviço sujo. Foi ele quem arquitetou plantar microfones num comitê do Partido Democrata, para levantar informações lesivas aos adversários políticos. Quando os autores foram detidos, por acaso, Mitchell orquestrou todas as manobras para evitar que a ilegalidade fosse relacionada com a Casa Branca” (Veja, 12/04/2006).

Para o enunciador, o envolvimento o ministro da Justiça na defesa do PT é “muito grave”. E, retomando a estratégia do preconceito pela escolaridade, diz que “se o estágio civilizatório da cúpula petista fosse um pouco menos rudimentar, eles teriam motivos para estar preocupados. Muito preocupados (...) A participação do ministro da Justiça na farsa só contribui para acelerar a espiral de incerteza em que se afunda o governo Lula. No momento, é impossível afirmar até onde vai a cadeia de comando dessa sucessão de crimes. Mas não é impossível supor. Na semana passada, o nome de Gilberto Carvalho, chefe do gabinete pessoal do presidente Lula, aparecia como um dos envolvidos na operação. Não existem evidências concretas disso. Apenas a recomendação que Carvalho recebeu de Lula: ‘Fica longe da confusão senão sobra para você’. O exemplo de Watergate mostra que essas trapalhadas começam com a simplicidade do furto e terminam com a força das grandes reviravoltas da história”. A reviravolta que o enunciador espera é a queda do presidente Lula, tese fracassada encampada pela revista desde 2005.

É o que aponta outra matéria na mesma edição chamada de “O efeito estufa de Lula”. O olho diz que “ao fim de um mandato em que seu governo gerou mais calor do que luz, Lula volta a ser rondado pela ameaça de impeachment”. Na legenda da foto, o enunciador diz que o presidente Lula vive “na solidão do derretimento de seu governo”. Enquanto o candidato Lula “vive eterna primavera”.

Para o enunciador, o presidente que busca a reeleição se defronta com dois desafios distintos. O primeiro é manter a máquina governamental em funcionamento. O segundo é tocar sua campanha.

“Os melhores presidentes-candidatos conseguem equilibrar-se sob o empuxo dessas duas forças conflitantes. Infelizmente, não é o caso de Luiz Inácio Lula da Silva. O candidato Lula expulsou o presidente Lula de cena. Um presidente não pode deixar de dizer o que pensa sobre graves acontecimentos a sua volta. O candidato pode fingir que não é com ele. Pois, com o mundo derretendo a seu redor sob um efeito estufa político, Lula parece estar vivendo a primavera de sua carreira (...) Os sinais à frente indicam que a situação tende a ficar ainda mais instável. Lula não tem uma base política capaz de demonstrar um mínimo de articulação no Congresso, sua máquina emperra na hora de executar medidas concretas, como o início da construção de uma ferrovia, e sua solidão política é crescente (...) Um dos sinais mais eloqüentes do derretimento do governo está no fato de que o fantasma do impeachment voltou a assombrar o Palácio do Planalto. Na semana passada, o assunto chegou a ser abertamente discutido pelo presidente. Em conversas separadas, ora com seu novo ministro Tarso Genro, ora com o senador Aloizio Mercadante, líder do governo no Senado, Lula pediu que se tentasse selar um pacto de convivência com a oposição no Congresso. A principal preocupação do presidente diz respeito a possíveis ataques contra seus familiares na campanha eleitoral e, antes disso, a uma eventual abertura de um processo de impeachment (...) Os tucanos acham que Lula, apesar de comandar um governo corroído, tem sólido apoio popular, o que poderia transformar um impeachment numa aventura que se sabe como começa mas não como termina (...) O escândalo do mensalão já revelara e a crise de agora veio confirmar: em geral, os petistas têm dificuldades enormes de conviver com a dureza da verdade, mesmo nos momentos em que ela já foi inteiramente desnudada diante dos olhos do país – e o presidente Lula, com seus silêncios e sua ambigüidade pública, não é uma exceção

entre os petistas (...) Com suspeitas que atingem o coração do governo e com seus companheiros sangrando em público, o candidato Lula enfrenta uma crise de amplas proporções mas permanece de pé. Na semana passada, uma pesquisa do Ibope, limitada ao estado de São Paulo, mostrou que o presidenciável tucano Geraldo Alckmin deu um salto enorme, subindo de 32% para 46% na preferência do eleitorado paulista – o maior do país. O dado mais surpreendente, no entanto, é que Lula, apesar de desfalcado de seus principais auxiliares e alvejado pela desconfiança de que seu governo está escondendo um crime, se manteve praticamente estável, caindo de 32% para 28%, numa pesquisa cuja margem de erro é de 3 pontos porcentuais para cima ou para baixo (...) O candidato tucano tem fé no fato de que as pesquisas refletem o quadro atual. Na opinião de Alckmin, as pesquisas só começarão a contar quando a campanha chegar à televisão. Ele acha que a eleição será decidida ao cabo dos vinte programas, exibidos nacionalmente às terças, quintas e sábados, a partir de agosto próximo. Neles, os candidatos se revelam e a disputa efetivamente começa a ser travada. (...) Além disso, o tucano conta com o desgaste natural do candidato Lula, já que o presidente Lula vê seu mundo derreter (...) A dúvida é saber até quando o candidato Lula conseguirá manter o bom desempenho na campanha sem a ajuda do presidente Lula” (Veja, 12/04/2006).

O enunciador se enquadra na categoria que Renato Rovai (in Lima, 2007, p 126) chama de jornalismo torcedor. Segundo o autor, o jornalismo político chegou a um nível tão extremo de editorialização que cada vez está mais difícil para o leitor identificar o que é informação e o que é torcida do veículo e do jornalista envolvidos na reportagem. Outra característica recorrente na grande imprensa apontada por Rovai e constatada nas páginas de Veja é o uso abusivo dos offs.

“Há pouco tempo, em qualquer redação que se prezasse, o repórter não tinha nem coragem de apresentar sugestão de pautas que não pudessem ser realizadas com fontes em on ou no mínimo em documentos. Hoje, o off não apenas se tornou lugar-comum como em alguns veículos é praticamente regra” (in Lima, 2007, p 128).