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CAPÍTULO 3 2005, O ANO EM QUE O GOVERNO QUASE CAIU

3.1 QUANDO A SUSPEITA VIRA ESCÂNDALO

O caso do "mensalão" não nasceu de uma denúncia da oposição ou do jornalismo investigativo da grande imprensa. Ele surgiu a partir de um deputado da base aliada do governo, Roberto Jefferson (PTB), que se viu envolvido num escândalo iniciado por Veja, sem grandes pretensões de enfraquecer o PT.

É no mínimo curioso que o pior escândalo do governo Lula tenha nascido de uma reportagem de Veja que, a princípio, envolvia somente Roberto Jefferson. É que poucas semanas antes, em março de 2005, a revista

tentava iniciar uma crise para o PT, com uma reportagem que prometia ser bombástica, mas que de tão inconsistente não garantiu muita repercussão fora das páginas de Veja.

O escândalo fabricado por Veja foi noticiado pela primeira vez na capa da edição de 16 de março de 2005. Com a chamada: “Tentáculos das Farc no Brasil”, a revista diz em letras menores que “espiões da Abin gravaram representantes da narcoguerrilha colombiana anunciando doação de 5 milhões

de dólares para candidatos petistas na campanha de 2002”.

Embora a revista tenha considerado a reportagem forte o suficiente para ser a capa da edição, no corpo da matéria o enunciador por três vezes ressalva que as acusações não comprovavam nada.

A reportagem “Laços explosivos” abre com uma foto de dezenas de membros das Farc armados e enfileirados. Na legenda: “Guerrilheiros e traficantes - fileiras das Farc: um controvertido amontoado de guerrilheiros, terroristas e narcotraficantes”. É com esse grupo que o enunciador de Veja afirma - sem qualquer prova - que o PT tem ligações.

Segundo a matéria, o principal documento nos arquivos da Abin que mostra ligações das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) com militantes petistas foi

datado de 25 de abril de 2002 e recebeu a classificação de "secreto". Em uma folha e dividido em três parágrafos, esse documento informa, segundo a revista, “que, no dia 13 de abril de 2002, um grupo de esquerdistas solidários com as Farc promoveu uma reunião político-festiva numa chácara nos arredores de Brasília. Na reunião, que teve a presença de cerca de trinta pessoas, durou mais de seis horas e acabou com um animado forró, o padre Olivério Medina, que atua como uma espécie de embaixador das Farc no Brasil, fez um anúncio pecuniário. Disse aos presentes que sua organização guerrilheira estava fazendo uma doação de 5 milhões de dólares para a campanha eleitoral de candidatos petistas de sua predileção. A notícia foi recebida com aplausos pela platéia”.

O enunciador conta que, sob a condição de não reproduzi-los, teve acesso a seis documentos da pasta que trata das relações entre as Farc e “petistas simpatizantes do movimento”; três fazem menção à doação de 5 milhões de dólares.

Não foi tarefa fácil conseguir essas informações. Nosso dedicado enunciador diz que nas últimas cinco semanas investigou a veracidade das informações arquivadas na sede da Abin. Localizou o agente que se infiltrou na reunião das Farc e ouviu outros dois funcionários da agência que tiveram contato com a investigação, além de procurar os “esquerdistas” que foram ao encontro.

“A apuração comprovou a reunião, o local, a data e os personagens. Só não encontrou indícios suficientemente sólidos de que os 5 milhões de dólares tenham realmente saído das Farc e chegado aos cofres do PT. A doação financeira é dada como realizada pelos documentos da Abin, mas a investigação de Veja não avançou um milímetro nesse particular. Pode ter sido apenas uma bravata do padre Olivério Medina, codinome de Francisco Antônio Cadenas Colazzos, para alegrar seus convivas esquerdistas? Pode. Além da convocação manifestada nos documentos da Abin, a revista não encontrou elementos consistentes para que se faça uma afirmação sobre esse aspecto” (Veja, 16/03/2005).

O enunciador parece ter mudado seu entendimento sobre as regras do jornalismo. Afinal de contas, poucos meses antes, em 4 de agosto de 2004, o editorial da Carta ao Leitor justifica o furo levado pela IstoÉ no caso envolvendo o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, assim:

"Veja teve acesso, há mais de um mês, aos extratos bancários de Candiota (diretor do BC). Apurou as denúncias e, ao final, Veja concluiu que, se Candiota

cometera mesmo algum deslize, os documentos a que seus repórteres tiveram acesso não constituíam prova irrefutável disso. Com base nessa constatação, a revista decidiu não publicar a reportagem sobre o caso” (04/08/2004).

O editorial de agosto chamava-se "Os critérios de Veja", alterados de tal forma que em sete meses a simples suspeita de um crime já merecia estar na capa da revista. Embora o enunciador investigador de agora não tenha conseguido comprovar a doação das Farc ao PT, seus conhecimentos sobre as entranhas do partido lhe permitem informar ao leitor que:

“Os contatos políticos entre petistas e guerrilheiros das Farc são antigos. Começaram em 1990, quando o PT realizou um debate com partidos políticos e organizações sociais da América Latina e do Caribe para discutir os efeitos da queda do Muro de Berlim. De lá para cá, as relações se intensificaram, principalmente por meio das correntes esquerdistas do PT, como a Democracia Socialista, cuja estrela mais conhecida é o ministro Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário. Mesmo os quadros mais moderados do PT demonstram uma certa simpatia pelas Farc. Como instituição, porém, o partido há muito tempo quer distância das Farc”. (16/03/2005)

O enunciador definitivamente não entende como o governo brasileiro pode insistir “em considerar oficialmente as Farc como um grupo guerrilheiro – e legítimo, portanto –, recusando-se a reconhecer o que elas realmente são. Ou seja: um conluio oportunista de guerrilheiros, terroristas e narcotraficantes”. O enunciador parece não confiar nem um pouco no PT, por isso tem coragem de escrever uma matéria tão dura como essa para a capa de Veja, mesmo sem confirmar a história, ou seja, o partido é culpado e não precisamos de mais provas:

“Apesar da verossimilhança e da aparência lógica do esquema, é vital ressaltar que, fora os registros feitos pelos espiões da Abin, não foram encontradas evidências sólidas da ajuda financeira da guerrilha da Colômbia. O padre Olivério Medina, representante das Farc no Brasil, nega” (...) “Os documentos arquivados na Abin, sucessora do velho SNI do regime militar, são célebres por seus erros e equívocos, motivados em geral pela paranóia anticomunista de seus agentes na época da ditadura. Os papéis que relatam a transação em que as Farc prometem ajuda financeira a candidatos esquerdistas no Brasil também não são imunes a erros”. (16/03/2005)

Ao final, o enunciador encerra a reportagem com uma sugestão: “Seria uma investigação histórica medir a dimensão dos tentáculos das Farc no Brasil e o nível hierárquico em que eles chegaram a penetrar no partido que detém o Poder Executivo”.

A capa de Veja produziu reações fortes de integrantes do governo e do Partido dos Trabalhadores, que colocaram sob suspeita as fontes e as motivações da revista. A maior crítica foi sobre o assunto ter sido estampado na capa. Na edição seguinte, de 23 de março, o editorial da Carta ao leitor diz que o “teor das reações contrárias à reportagem é, em si, uma prova de que ela não poderia ter merecido atenção menor por parte da revista. Tinha mesmo de ser a capa”.

O enunciador parece se deliciar porque a reportagem da semana anterior “forçou” os petistas a explicitar publicamente seu repúdio às Farc “pela primeira vez”: “Um grande avanço, portanto”, comemorou, cheio de si.

Apesar de toda pretensão do nosso enunciador, sua reportagem na edição seguinte, de 23 de março, novamente não passaria pelo crivo de qualquer regra jornalística. A matéria requenta as informações da semana anterior, sem absolutamente nada de novo. Mas o enunciador tem um esclarecimento a fazer. Pode parecer o contrário, mas ele garante que “tem tomado todo o cuidado para não envolver nas denúncias o PT como instituição e – mesmo a custo de parecer estar dando vazão apenas a evidências ralas – evita tirar conclusões do material a que teve acesso. Mesmo assim, o aproveitamento político da questão é inevitável”, justifica.

Na edição seguinte, de 30 de março, Veja tenta dar gás ao assunto e publica nova matéria, sob o título “Por enquanto, silêncio”. Diz que o governo “faz de conta que o caso Farc-PT está terminado, mas, na surdina, manda apurar quem vazou”. A matéria, pequena, novamente não tem novidades.

Uma semana depois, na edição de 7 de abril, a revista publica a matéria “Os microfones vão ser ligados”, na qual relata que o “Congresso aprova convocação de três envolvidos no caso Farc-PT”. É a quarta edição consecutiva sobre o assunto, mas o enunciador continua trabalhando com as informações requentadas de um mês atrás. Sem conseguir confirmar o seu "furo" de reportagem, a revista parece apostar na velha história de que uma mentira repetida muitas vezes se torna verdade.

Ao todo foram seis edições em que a revista Veja noticiou esse escândalo. Começou com o estardalhaço enorme daquela capa de 16 de março e terminou cinco meses depois, na edição de 24 de agosto, num pequeno box, perdido em meio a uma dezena de matérias que denunciavam à época o caso do "mensalão".

“A publicação da reportagem levou o Senado a abrir uma investigação sigilosa sobre o caso. Veja teve acesso ao desfecho da investigação – e é uma falsificação grosseira. Em quase seis meses de investigação, a comissão do Senado fez onze reuniões, colheu dez depoimentos e chegou à conclusão de que não aconteceu nada” (24/08/2004).

Embora na reportagem que gerou o escândalo o enunciador tenha ressalvado três vezes que não havia qualquer prova que ligasse o PT às Farc, ele não se conforma como “apesar de tudo, a comissão do Senado achou que o caso não era nada" (....) "Talvez se tenha perdido uma excelente oportunidade para entender de onde vêm os dólares que abarrotam os cofres do PT. Talvez”.

O jornalismo investigativo de Veja não conseguiu provar em momento algum a ligação entre as Farc e o PT. Mesmo assim, o tema foi muito bem explorado pelo semanário, que repercutiu a matéria por seis edições, mesmo sem ter nada de novo além do que foi apresentado na primeira reportagem.

Segundo Muraro (apud Chaia, 2004, p.21), “o traço dominante do jornalismo investigativo é a sua atitude crítica ante os políticos”. Ele pressupõe que os jornalistas tenham um papel ativo e desenvolvam um trabalho de investigação e de busca de fatos que comprovem determinadas denúncias.

“A legitimidade do jornalismo de investigação se manifesta na sua pretensão de agir como contra-poder. Ele teria uma ação terapêutica ao desvendar mentiras e mostrar o disfuncionamento da democracia. Mas o poder político também está interessado na divulgação dos segredos que encobrem a corrupção, na medida em que existe o ‘vazamento’ desse tipo de informação para a imprensa. Esse é o outro aspecto da questão: a relação entre a imprensa e o poder, uma relação de muita cumplicidade, de muita proximidade e de muito fascínio da imprensa pelo poder. A imprensa é vista pelo poder político e econômico como um instrumento, como meio de transmitir determinadas informações que podem destruir um adversário político, um concorrente. A informação é passada para o jornalista porque alguém está

interessado em divulgá-la. Logo, todo vazamento de informação tem um lado de manipulação” (Abreu e Lattman-Weltman, apud Chaia, 2004, p.20).

Segundo Muraro, apud Chaia, a relação entre jornalistas e políticos, entre os meios de comunicação e os dirigentes partidários, neste tipo de jornalismo, é uma relação de mútua dependência. Os políticos precisam dos meios de comunicação para serem conhecidos pelos eleitores, enquanto os jornalistas necessitam dos políticos para obterem informações.

“O jornalismo investigativo corresponde a uma dinâmica do regime democrático, que pressupõe eleições periódicas, sendo um recurso utilizado pelo jornalismo para atender a curiosidade e a desconfiança dos cidadãos, que exigem transparência no trato da coisa pública e demandam notícias para se informarem enquanto cidadãos” (Chaia, 2004, p.22).

Para Vera Chaia (2004), o jornalismo investigativo tem seus resultados no desvendamento de abusos, irregularidades e desvios das autoridades públicas se houver um encaminhamento destas averiguações para outras instituições públicas, como a Justiça, o Ministério Público e as autoridades policiais. “Caso as denúncias fiquem no vazio e não sejam levadas às suas últimas conseqüências, quem perde não é só o cidadão, mas a própria credibilidade da mídia” (Chaia, 2004, p.22).

Na avaliação de Patterson (apud Chaia, 2004, p. 19), “um jornalismo ‘cão de guarda’ é uma das melhores salvaguardas contra os abusos de poder. No entanto, as democracias precisam de um cão de guarda com bom senso, que lhes permita distinguir um abuso real dos passos em falso que fazem parte do processo normal de qualquer empreendimento a larga escala como a governação de uma nação”.