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n As práticas em questão: da adequação de lugares e companhias

Mesmo sabendo o que os espera, há progenitores para quem, mais do que a disputa em torno do calendário de concessão/atribuição de li- berdades, o problema reside na legitimidade das pretensões dos filhos. Registaram-se dois tipos de representações do papel do grupo de pares na formação do indivíduo: enquanto uns os representam como uma ver- dadeira ameaça ao trabalho educativo, outros, pelo contrário, consideram a integração no grupo de pares e nas suas actividades normais um impor- tante indicador do sucesso do processo de individuação, visto como sau-

rarem o grupo de pares como uma ameaça não quer dizer que não cedam aos apelos de integração e sincronia feitos pelos jovens (isso dependerá das características da interacção). Mas a verdade é que, na sua perspectiva, os lazeres e os convívios que exigem saídas de casa à noite não são ade- quados. Mais do que uma questão de timing, ritmo e horários (que se mantêm como divergência), é o próprio acto que é questionado. Uns por princípio outros de forma mais ocasional. As razões oscilam entre argumentos que condenam as companhias (sendo que, no caso de Rita, o argumento se constitui como argumento de género que penaliza as ra- parigas a quem se exige o tal recato e comedimento comportamental) e argumentos que exprimem dúvidas e desconfianças quanto às caracterís- ticas dos lugares que se pretendem frequentar.

Divergências quanto às práticas

Quando falámos de saídas aos sábados. Às vezes ficamos a falar do género... que ela... na minha idade, na altura dela, não saía assim como saio eu agora com os amigos ou até saio com raparigas e rapazes. Ela não... sair com rapazes, prontos. Naquela altura não era muito bem-visto. Não é que não se saísse, mas não era muito bem-visto e ficar até muito tarde, tam- bém não. Principalmente para uma menina, não sei quê... [Rita, 19 anos, estudante do ensino superior, mãe empregada de balcão, pai operário, vila].

[...] faz-me muita confusão assim as multidões, as pessoas, e por exemplo, discotecas e isso também já lhe tenho dito que nas discotecas pode acontecer isto e aquilo, a gente vê tanta coisa na televisão, tiros às vezes que a gente não tem nada a ver com certas con- fusões e de repente leva um tiro sem saber porquê, não é, e eu tenho muito medo dessas coisas [Odete, doméstica, 44 anos, periferia].

Eu sei para onde ela vai: vai para o café ou para o salão de jogos. Mas não gosto. Onde é que já se viu sair todas as noites para ir ao café! Não são ambientes. Ambientes cheios de fumo e isso [Vítor, operário, 44 anos, vila].

Odete refere-se a uma representação dos lugares da noite frequentados por jovens que lhe é transmitida, sobretudo, pelos media. Tiroteios, mul- tidões em pânico, mortos e feridos. Sónia, a filha de 18 anos, situa a

Companhia

época de maior conflitualidade na passagem para o 10.º ano de escolari- dade. As discussões, confirma, situavam-se em torno dos lugares que pre- tendia frequentar:

Eu tentava sempre: «Ó mãe mas isto também não é assim», porque a minha mãe o que vê na televisão é o que é verdade. As discotecas é... tiroteios em discotecas e morre não sei quem. «Ó mãe não são dessas discotecas, são discotecas para a minha idade... não há bebidas alcoólicas e não sei quê...» Não avancemos já para o resultado desta disputa. Fixe-se apenas o facto de as representações que muitos destes pais têm destes lugares não passarem disso mesmo, representações mediadas ou mediáticas. Apenas alguns progenitores entrevistados têm experiência de frequência de bares e discotecas no passado e, menos ainda, a têm no presente. Tendencial- mente os que a tiveram adoptam um discurso mais moderado que mo- biliza a percepção de risco sentida no seu tempo e a efectiva prática da transgressão (a par dos sentimentos de constrangimento à acção impostos pelos regimes rígidos praticados pelos pais que não querem infligir aos filhos) para justamente não centrar as divergências no tipo de lugares que os jovens frequentam no contexto das suas sociabilidades.

Outros porém, mais do que o potencial de risco (que apesar das for- mas diferenciadas com que aparece nos argumentos é transversal aos dis- cursos parentais), sublinham o aspecto da inadequação moral. É no sen- tido da preservação moral de uma imagem de seriedade e recato que esses pais se expressam.

Curiosamente, na maioria dos casos citados não estará necessaria- mente em causa o comportamento (Vítor dirá a respeito das idas da filha ao dito salão de jogos que até sabe que ela não faz nada de mal, assim como Luz afirma confiar no comportamento da filha), pelo que a diver- gência parece ancorar-se no receio de um juízo social desfavorável, a efec- tuar pela comunidade de referência para os pais. É preciso não esquecer que não é só a escola que escrutina o trabalho parental. Esta instituição veio afinal juntar-se às instâncias tradicionais que actuam através dos me- canismos de controlo social e que são particularmente visíveis (e eficien- tes) em comunidades mais pequenas. Com efeito, a importância dos fac- tores externos e contextuais à interacção familiar não deve ser desprezada na análise dos processos de reivindicação e concessão de liberdade, pelo que se voltará a este assunto mais à frente.

Seja qual for a natureza das divergências (que podem mobilizar argu- mentos de um ou dos dois níveis identificados), o período de turbulência a que se tem feito referência é tido como provisório. Ou seja, mais tarde

ou mais cedo há a expectativa de se conseguir moldar uma configuração relacional em que as fronteiras da individualidade são razoavelmente fixas, e dentro das quais se incluem necessariamente os territórios e os tempos de uso livre bem como os compromissos que estabelecem os li- mites de controlo e vigilância parental. Esta afirmação sugere portanto que se trabalha relacionalmente para um compromisso, que, dadas as di- vergências de base, implicará necessariamente cedências de parte a parte. Como se tem afirmado, não deve confundir-se o facto de aparentemente haver negociação com uma igualdade entre as partes. Com efeito, o mo- delo de gestão dos quotidianos juvenis permanece partilhado de formas muito diversas e variáveis ao longo do tempo pelo próprio e pelos pro- genitores, sobretudo enquanto se mantiver a percepção por parte dos pais de que o jovem é um sujeito em construção, ainda incompleto e preso à família por várias âncoras de dependência (residencial, material, simbólica, afectiva) que inibem a sua representação como indivíduo ple-

namente autónomo, igual em estatuto em relação aos seus progenitores.10

Nesta medida, e voltando à metáfora da viagem, haverá sempre uma ele- vada probabilidade de o comandante mais velho querer resgatar, mesmo que provisoriamente, a sua condução.