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Sair à noite: tensões e turbulências na família

Fazendo da luz do dia uma metáfora sociológica, a passagem das horas e os percursos que nele se fazem revelou-se, não obstante algumas

tensões menores, relativamente pacífica. Como se afirmou, a maioria das vezes não era uma questão de se, mas de quando. A razão que justifica o tratamento em separado dos usos dos tempos nocturnos é precisamente o facto de, no que diz respeito à noite, o se poder estar por vezes em causa. Com efeito, todos os ingredientes (o apelo à sincronia, a diver- gência nos calendários e nos ritmos, alguns dos argumentos utilizados, as lógicas de acção, etc.) já avançados para o uso do tempo diurno estão também presentes, embora, pela própria natureza do tempo (nocturno), todo o processo (gradual e cumulativo) se revista quer de maior intensi- dade (ou drama, dirá Sofia mais à frente) quer de maior conflitualidade e tensão. É um período do dia que se manteve fora de controlo exclusivo da família, durante toda a infância. Cruzando esse tempo com o do es- paço (doméstico), a noite evoca, justamente, o recolhimento entre as pa- redes protectoras do lar, tornando-o o tempo privilegiado para o convívio familiar, muitas vezes materializado em rituais como o jantar em família que precede o descanso. É quando começa a escurecer que se exige ou se

espera que os filhos recolham a casa num acto que tem tanto de rotineiro

como de simbólico.

Também é importante assinalar que se o dever de protecção está an- corado à norma contemporânea que representa os filhos essencialmente como um bem afectivo (que enquanto crianças, sobretudo, são represen- tados como particularmente frágeis e indefesos), também o está a uma noção dos riscos como estando principalmente situados no exterior da casa (Kurz 2002; Backett-Milburn e Harden 2004; Harden 2000; Kelly 2003). Uma percepção que as estatísticas tendem a contrariar, uma vez que situam a maioria dos registos de violência física e sexual contra crian- ças e jovens no seio de espaços familiares (ver, nomeadamente, Almeida,

André e Almeida 2001).8 Ainda assim, se essa ansiedade em relação a

perigos e riscos já se revelou para alguns pais um factor importante na justificação da acção parental no que diz respeito à gestão e usos do tempo diurno, uma especial associação simbólica do perigo à noite, ao escuro, ou mais simplesmente à ausência de luz, faz elevar as resistências dos pais a ceder ou conceder determinadas liberdades. Expressivo é o co-

8Para além das paredes protectoras do lar familiar, também as paredes da escola

(também elas representando um espaço relativamente fechado de vigilância e controlo) podem encerrar riscos e perigos, nomeadamente de violência entre colegas, para não falar de outras formas mais subtis de violência escolar. A existência de paredes representa, portanto, uma capacidade protectora mais do foro simbólico do que real, o que não reduz a sua importância nas percepções subjectivas dos pais do que constitui os lugares seguros ou não.

mentário de Vítor (operário, 44 anos, vila), cuja filha tem o hábito de ir ao café depois do jantar:

No Verão não é tanto problema... sempre há luz até mais tarde. Mas assim no Inverno, devia estar mais em casa como a irmã.

Para além de eventuais divergências quanto às representações do que é adequado para uma jovem fazer nesse período de tempo, é sobretudo a existência (ou não) de luz do dia que fixa as fronteiras da legitimidade e adequabilidade e, por consequência, da liberdade, o que não deixa de reforçar a hipótese de a noite ser subjectivamente percebida pela maioria como a mãe de todos os perigos, tentações e/ou vícios (Lovatt 1996).

Como se observou acima, os sistemas de gestão dos quotidianos juve- nis são constituídos, em grande medida, pelos (des)equilíbrios dinâmicos entre as prescrições parentais e a auto-regulação dos filhos, relação essa que se transforma através do confronto entre a reivindicação dos filhos e a concessão dos pais. No que diz respeito ao uso da noite há, todavia, uma tendência para um prolongamento do domínio parental nessa rela- ção de forças, que se exprime quer no tempo quer no espaço. Uma resis- tência maior em abdicar do papel de exclusivos responsáveis pelas pres- crições comportamentais, para aceitar e reconhecer a legitimidade da auto-regulação nesse domínio (o que passa por alargar as fronteiras dos territórios de liberdade de acção e circulação), acaba, não raras vezes, por se traduzir no uso do argumento da autoridade de cariz estatutário, em que se exige obediência, sem espaço para negociação. A falta de argumen- tos e razões válidas que justifiquem a proibição de sair à noite com as ami- gas é, precisamente, o que levou Sónia (18 anos, estudante do ensino su- perior, mãe doméstica, pai pequeno patrão, periferia) a sentir-se revoltada: E então foi uma altura muito conflituosa cá em casa porque eu estava sempre a bater-me com os meus pais. Porque eu queria [sair] e eles não dei- xavam e eu, porque não? Tem de haver razões. E era sempre isso. Porquê? Porque não, porque não... porque quem manda somos nós. E eu ficava na- quela sempre toda revoltada.

O facto é que a reivindicação dessas liberdades (do uso do tempo noc- turno) confronta de forma inequívoca os pais com o crescimento (e ama- durecimento?) dos filhos, forçando (pelo menos em teoria) à negociação e reformulação, através da recomposição da relação de forças inerente ao sistema de gestão do quotidiano, quer dos papéis parentais quer dos filiais no quadro das relações familiares. A afirmação de António (professor do ensino secundário, 47 anos, periferia) não podia ser mais clara quanto à

percepção da irreversibilidade do processo de transformação das relações de filiação no sentido de maior liberdade, independência e autonomia dos jovens ao mesmo tempo que não se abdica com facilidade de um papel interventivo na sua educação e formação.

[Antes] era diferente porque havia... digamos que até aos 14, 15 anos sempre tive um controlo total sobre as acções deles, não é? [...] Agora já não é assim. E isso é natural, quer dizer, já contrariam as ideias que eu digo... [...] [Mas] têm que ver o que é a vida e que aguentem porque enquanto o pai pagar os estudos é assim que hão-de viver.

Independentemente dos resultados (também eles diversos, pois de- pendentes dos perfis de interacção), a análise da forma como se fazem os usos dos tempos nocturnos é por todas estas razões de uma enorme relevância na reconstituição dos processos familiares que conduzem os jovens a novos patamares do seu percurso de individuação, onde para conquistarem/ocuparem territórios conviviais que simbolicamente se constituem também em importantes recursos identitários (por via da aproximação e identificação com o grupo de pares), têm de enfrentar, na maioria dos casos, resistências da família.

No que diz respeito ao segundo aspecto, é preciso assinalar que este talvez seja um dos domínios onde os modelos de acção parental herdados menos servem de referência, uma vez que os tempos são outros. As práticas de convívio juvenil e o usufruto de liberdades para sair à noite de casa pouco terão de comparável, para a maioria dos progenitores pelo menos, com o que puderam experimentar nas mesmas faixas etárias. Enquanto fala sobre as saídas à noite da filha, Alice (54 anos, técnica superior, ca- pital) não deixa de sublinhar que

[...] eu aos 18 anos... se calhar a minha mãe não me deixava sair nem até à meia-noite, mas pronto. Mas isso eram outras épocas!

O carácter dubitativo não é, pois, um atributo exclusivo da existência

juvenil,9pois também a acção parental se faz muitas vezes mais de um

ziguezaguear entre práticas educativas, orientações e diferentes represen- tações do outro, do que de uma linha recta de certezas e estratégias defi- nitivas. Diz Sofia (47 anos, professora do ensino secundário, capital), a

9Muito pelo contrário, recorde-se o argumentado na Introdução, quando se discutiu

o carácter de angústia, sofrimento associado à coordenação e articulação dos vários re- gistos de acção exigidos ao indivíduo contemporâneo que procura responder à demanda de unidade e coerência identitária.

propósito do processo de começar a sair à noite, que se questionou mui- tas vezes:

Em relação a essas contradições, perguntava-me, sai, não sai, a partir que idade é que sai?

Apesar de tudo, é preciso dizê-lo, não há muita surpresa quanto ao conteúdo das reivindicações, e a maioria dos pais sabe (com diferentes graus de experiência e concordância) como são e como convivem os jovens de

hoje em dia. Saídas à noite para cafés, bares e discotecas, jantares de anos

em grupo, ou mesmo dormidas em casa de amigos e férias sem os pais são práticas que pertencem ao espectro dos possíveis e do expectável (ver, a propósito das saídas à noite enquanto prática de lazer juvenil, a análise detalhada de traços e motivações efectuada por Gomes 2003, 447-461). Alguns, predefinem inclusivamente estratégias de acção para quando o momento chegar. No entanto, não raras vezes registam-se surpresas quanto ao timing escolhido pelos jovens para desencadear o processo de alargamento das fronteiras que balizam os territórios existenciais que, a diferentes ritmos e tempos, os conduzem a estádios crescentes de liber- dade e/ou independência, à semelhança do que acontece durante o dia.

Recuperando a viagem metafórica evocada na introdução, são, na ver- dade, raros os casos em que pais ou filhos não tenham assinalado um período de turbulência cuja causa principal foi, justamente, as saídas à noite para conviver com amigos. Com efeito, apenas uma das mães en- trevistadas refere não ter passado por isso, de o filho querer sequer sair à noite, tendo de negociar horários e meios de transporte, e não conseguir dormir sem que chegasse, o que até esperava que acontecesse.

Por outro lado, a turbulência varia em intensidade, em duração e, como já se afirmou, na distância relativa entre o lugar de partida e o de chegada (no momento da entrevista, porque, dado o carácter processual e dinâmico, é de supor que estas tenham continuado a mudar). Um período que a maio- ria das vezes tem um abrandamento, ou mesmo um término, denunciando que, por diferentes vias, se chega a equilíbrios que atentam às necessidades e expectativas dos vários actores envolvidos. Como já se teve oportunidade de avançar, a existência de um período de turbulência relacional entre pais e filhos deve-se sobretudo ao confronto de perspectivas distintas sobre um mesmo objecto concreto, no caso, as saídas durante o período nocturno, mas também de um objecto simbólico que é o das representações do filho e do jovem como indivíduo, merecedor de respeito e confiança.

Seja como for, os jovens queriam algo que os respectivos pais resistiam em (con)ceder, o que quer dizer que estes tinham, de facto, o poder e a au-

toridade de decidir dar ou não essa liberdade. Ou seja, trata-se de um jogo,

justamente, porque os actores conhecem as suas posições relativas e, de forma mais ou menos convicta, aceitam essas posições, o código simbó- lico e as regras que medeiam as suas interacções, bem como os ganhos e as perdas relativas que do jogo podem resultar. Da parte dos filhos, fá-lo- -ão porque não podem fazer de outro modo (são residencial e material- mente, numa fase inicial pelo menos, totalmente dependentes da família) mas também porque não querem (ferir as relações familiares com ruptu- ras eventualmente irreversíveis). Ainda assim, a acção dos pais e as suas prescrições podem constituir constrangimentos objectivos, mais ou menos provisórios, à sua liberdade individual, de acção, circulação e ges- tão das redes de sociabilidade, isto é, pode haver intenção e vontade de agir sem haver meios materiais e/ou liberdade para concretizar a acção desejada.

A denúncia do conflito e do confronto evidencia, portanto, quer a existência de divergências entre as visões dos actores do que é correcto e adequado, quer o peso diferencial que cada lado vai tendo no sistema de gestão do seu quotidiano (ou na condução da tal viagem imaginária) à época a que remonta o período de turbulência (que para muitos, por ocasião da entrevista, tinha já terminado).