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Fixação de novas fronteiras de liberdade durante o dia: banalização e rotinização

O que importa reter nesta fase da análise é o facto de a partir de certa altura, banalizada a prática do percurso a sós entre a casa e a escola e pro- vas dadas de que se é digno da confiança dos pais, sair da escola já não sig- nifica necessariamente ter de ir imediatamente para casa, ou, fazendo-o, pode-se ser, ocasionalmente, acompanhado de colegas com quem se pas- sará a tarde, por exemplo. Para Francisca (18 anos, estudante do ensino superior, mãe técnica superior, pai professor universitário, capital) tor- nou-se banal estar na escola e combinar com os colegas almoçar em sua casa. Sobre as suas tardes afirma:

Se não fosse estudar ou iam lá almoçar amigos ou ia almoçar a casa de amigos.

Ricardo (18 anos, finalista do ensino secundário, mãe desempregada, pai operário, vila) tinha o hábito de alternar as tardes livres em casa e em casa de um colega vizinho. Cristina (18 anos, 10.º ano, empregada de balcão, mãe empregada doméstica, pai empregado de balcão, periferia) também recorda o facto de poder passar o dia com as amigas a conversar na rua, depois das aulas ou durante as férias. Afirmam todos ter tido total liberdade de o fazer, sem que isso representasse tensões ou conflitos fa- miliares (desde que houvesse partilha de informação quanto aos paradei- ros, claro). Passa gradualmente a ser possível, também, estar em casa so- zinho e, querendo, havendo oportunidade e/ou solicitação, voltar a sair, circular pelas cercanias ou mesmo mais longe, ir a lugares, fazer coisas (ir

ao cinema, passear em centros comerciais, passear pelo bairro, etc.).3

3Não julgue o leitor que se ignora a existência de alguns limites à liberdade de cir -

culação diurna e ao convívio em casa com amigos(as). Factores como o género continuam a desempenhar um papel importante.

Na mobilização de argumentos que convençam os pais a flexibilizar progressivamente os limites estabelecidos a priori ocupa um lugar de des- taque o argumento escolar (fazer trabalhos de grupo nos tempos livres, por exemplo). Este tende a revestir-se de um maior grau de legitimidade do que o argumento simples do convívio entre pares (o que não quer dizer que este também não seja válido), ou não fosse a estratégia escolar um elemento central da acção educativa dos pais. Assim, recorrer prefe- rencialmente ao argumento escolar durante o período de aulas pode desde logo revelar-se um recurso estratégico, usado deliberadamente para contornar eventuais resistências parentais a conceder liberdades desejadas. Isso mesmo se pode depreender da afirmação de Sónia (18 anos, estu- dante do ensino superior, mãe doméstica, pai pequeno patrão, periferia) que refere o facto de com o tempo se ter tornado implícita a existência de trabalho escolar a efectuar em grupo como justificação válida para ir a casa dos colegas/amigos durante as tardes. A força do hábito, que ba- naliza a prática, isenta-a da necessidade de argumentar constantemente, ganhando alguma margem de manobra. Diz:

[...] vamos fazer o trabalho... às vezes já nem dou explicações à minha mãe, vou para casa do Azevedo, e ela deve pensar [que] se vai para casa do Azevedo deve ser para trabalhar...

Neste caso, portanto, são dispensadas mais explicações, mas somente a partir do momento em que os pais acreditam que estão em causa exi- gências escolares. A maioria das vezes estarão de facto, mas resta saber quantas vezes não se usa o argumento escolar para escapar a uma prová- vel proibição/reprovação parental para outras práticas, encontros, saídas.

Pelo exposto, se se impõe diferenciar o dia da noite, também é impor- tante tomar em consideração o calendário escolar a vários tempos: o tempo das aulas vs. tempos livres, da semana vs. fim-de-semana, do ano lectivo vs. férias. As férias serão, com efeito, um período particularmente propício ao lazer e ao convívio com os pares, já sem os condicionamentos das obriga- ções escolares. A ausência de compromissos escolares justifica, na maioria dos casos, uma certa flexibilização das regras que gerem a liberdade de cir- culação diurna, sendo comum ouvir a expressão já não parar muito em casa quando convidados a falar do seu dia-a-dia nesses períodos (pelo menos no último ou nos dois mais recentes). Sendo o Verão o período que concentra

as férias escolares mais longas e que marca a passagem de ano escolar,4

4Não deixa de ser interessante verificar que também é a altura do ano em que o pró-

é de crer, também, que os limites à circulação vigentes antes desse período não se voltem a restabelecer completamente quando o novo ano escolar se inicia. De acordo com esta lógica é de supor que, para muitos, a cada ano escolar que passa, isso represente um pouco mais de liberdade de cir-

culação5, o que confere às transições escolares muitas vezes significados,

como aliás se pôde entrever acima, que excedem largamente os aspectos relacionados exclusivamente com a vida escolar.

Sónia (18 anos, estudante do ensino superior, mãe doméstica, pai pe- queno patrão, periferia), por exemplo, refere-se deste modo ao seu quo- tidiano das férias anteriores ao momento da entrevista, quando tinha 17 anos:

Durante as férias nós saíamos muitas vezes juntos. Íamos passear... íamos imensas vezes à praia... na linha, íamos sempre de comboio.

Tempo de aulas ou de férias e fins-de-semana constituem, pois, rele- vantes elementos argumentativos para a dinâmica de concessão e reivin- dicação de liberdade de acção que aqui se analisa. Não havendo tantos deveres, uma vez ausentes os de natureza escolar, deixam os pais de ter

argumentos para os prender em casa durante o dia. Emerge, porém, dos

testemunhos um outro factor que importa assinalar. Um factor que, sendo importante para caracterizar os processos de aquisição de liberdade diurna, se revelará ainda mais importante quando se abordar a circulação nocturna. Crescer, afirmou-se repetidamente, é um processo que se sus- tenta numa abertura ao mundo e aos outros, feito de desafios e parti - cularmente dubitativo do ponto de vista identitário. Uma abertura que se refere sobretudo aos idênticos a si, ou seja, os pares, para os quais se transfere progressivamente e em certa medida o centro de gravidade exis- tencial e o papel de instância primordial de validação identitária.

Há, portanto, um incontornável apelo à sincronia nos processos de aquisição de liberdade. A solicitação por parte dos outros (veja-se como Sónia se refere ao uso dos tempos no plural) aparenta, por um lado, ser um im- portante factor desencadeante, apontando para o carácter precisamente

encadeado dos processos de reivindicação de liberdade num determinado

grupo de pares e, por outro, revela-se um recurso argumentativo central para os jovens que, de um modo geral, o consideram válido para justificar a concessão de tais liberdades. Oscila-se portanto entre querer fazer o que os outros fazem e entender que se pode fazer porque os outros também

5Este argumento não é exclusivo da circulação durante o dia, mas, pela sua especifi-

fazem. Mais um elemento, portanto, a suportar a ideia de que nesta fase do processo de individuação, que também é uma fase da vida familiar como um todo, se estabelece um jogo interaccional (negocial, na maioria dos casos) em que, para além do recurso a argumentos discursivos, os fi- lhos confrontam os pais com novas representações de si próprios (que informam que já se sentem capazes e responsáveis para agir de forma ade- quada em territórios não vigiados e muito desejados) e os pais devolvem as suas próprias representações dos filhos (e que podem resultar em dis- sonâncias na leitura que fazem do seu processo de crescimento e ama- durecimento).

O nível de conflitualidade que a eventual dissonância provoca é, ainda assim, muito variável. A dinâmica interaccional consubstancia, afi- nal, um processo de ajustamento recíproco cujo resultado depende, jus- tamente, da (inter)acção dos vários actores envolvidos. Ver-se-á adiante como lidam os pais com esta e outras formas de pressão negocial.

Fixe-se, por agora, o facto de, mais ou menos lentamente durante o dia, deixar de haver para os jovens grandes limitações à sua acção fora de casa e nos tempos e espaços que entremeiam a escola e a família. Deram- -se dois exemplos, mas poderiam ser mais. Há, com efeito, uma clara dis- tinção nos discursos dos jovens de um antes (quando eram mais novos) de um agora no que ao uso do dia diz respeito. Isso mesmo está implícito no discurso de Filipa:

Agora não tenho regras... Quer dizer, eu antes dizia sempre ao meu pai onde é que ia e não sei quê... mas agora nem digo. Eles às vezes ligam e per- guntam onde é que tu estás, queres que te vá buscar... [Filipa, 18 anos, estu- dante do ensino superior, mãe profissional liberal, pai quadro superior, ca- pital].

O que começa com um momento marcante, que inclusivamente se recorda com orgulho, vai-se banalizando, promovendo a progressiva fle- xibilização dos limites, acabando por se institucionalizar por fim. Passam então o tempo e o espaço diurnos a fazer parte do rol de territórios que os jovens podem, grosso modo, decidir como e quando usar, desde que haja notificação acerca do paradeiro (e da companhia). É portanto uma liber- dade condicionada, aquela que a maioria conquistará, sem que isso surja nos seus discursos através de sentimentos de constrangimento e injustiça. Reservarão esses sentimentos para quando não conseguem reproduzir (por razões diversas) o mesmo processo progressivo e cumulativo de aqui- sição da liberdade para os percursos que desejam fazer no tempo noc- turno, aquele que sempre foi o território de vigilância exclusiva dos pais?

Antes de se abordar, finalmente, esse território, mais algumas notas sobre o uso do dia.

Lógicas de acção parental e filial: diferentes perfis