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Gestão do quotidiano e controlo à distância: confiança ou crença?

No entanto, longe de serem imutáveis, as regras e os limites que esti- pulam o que se pode e não pode fazer (falamos ainda de durante o dia, note-se) num dado momento inicial vão-se flexibilizando à medida que os jovens crescem e dão provas de confiança (terá sido o caso de Hugo, por exemplo). Simultaneamente, a relação de forças vai-se equilibrando, se se recorrer à imagem do sistema de gestão do quotidiano dinâmico e pro-

cessual. Com o passar do tempo (anos, por vezes), começa então a poder falar-se de algumas liberdades de acção e circulação fora e dentro de casa, mesmo que a vigilância à distância se mantenha na maioria dos casos e seja (quase) sempre obrigatório informar os pais dos seus movimentos, tarefa seguramente facilitada pela generalização dos telemóveis. Com efeito, este é um dos elementos que sugerem a introdução no sistema de gestão do quotidiano, de um modelo em que há liberdade de circulação mediante notificação do paradeiro e da companhia.

Volte-se ao testemunho de Isabel (técnica superior, 42 anos, periferia), quando esta esclarece que dá liberdade («Deixo sempre [sair quando pedem durante o dia]...» salienta) mas as regras do jogo, estão estabeleci- das e são bem aceites pelas partes:

Nós temos sempre de saber todos onde estamos e como estamos, não nos podemos preocupar, eles sabem que [é assim]. É recíproco, não é im- posto. Eles sabem. Ele se vier aqui dá-me um toque a dizer que está aqui, ou que vai chegar tarde, manda-me uma mensagem, é. [...] Eles sabem que é importante, digo-lhes sempre «Vocês sabem que eu tenho de saber onde é que vocês estão e com quem vão» a partir de aí façam o que quiserem. Está muito implícita essa regra e funciona.

A confiança é elemento fundamental nas interacções e relações fami- liares, pois na frequente ausência de um controlo presencial (pois a maio- ria dos pais trabalha a tempo inteiro) é preciso acreditar que os jovens estão ou foram aonde efectivamente dizem estar ou ter ido. A honestidade e a verdade, traduzível na transparência nas relações entre indivíduos, evi- denciaram-se aliás como dos princípios ético-morais mais importantes nas culturas familiares. Não havendo propriamente uma cultura genera- lizada de imposição destes princípios (mais adequada a normas como a da conformação e da obediência estrita), a maioria dos pais crê, de certa forma, que os filhos tenham aderido e incorporado uma forma de agir consentânea com aqueles princípios éticos, em virtude da sua natureza

universal, justa e correcta.

Há um equilíbrio a manter entre a liberdade de que se pode usufruir e a confiança depositada nos filhos pelos pais. Odete (doméstica, 44 anos, periferia) sublinha precisamente o carácter de troca que está em jogo (sendo jogo precisamente a palavra certa): os pais dão liberdade e os filhos

devem responder com verdade. Diz a certa altura que

nós também já lhe dissemos uma vez que é assim, para ela nunca dizer que vai para um sítio e que vai para outro, porque se a gente perde a confiança nela, então é que depois está tudo estragado, se ela tiver que ir a um sítio é

melhor dizer logo, porque se ela pensa que vai dizer que vai aqui e depois vai ali, então aí é muito chato.

Na verdade a adesão a um tal modelo, mesmo quando defendido com convicção, resultará em muitos casos da mais elementar necessidade, em virtude da impossibilidade prática de exercer o controlo presencial- mente. Trabalhando a tempo inteiro ambos os progenitores e não ha- vendo recursos para financiar empregadas domésticas a tempo inteiro, ou para custear estabelecimentos de ensino privados que assegurem ho- rários compatíveis com os horários de trabalho dos pais, ou ainda não havendo sistemas de apoio familiar que envolvam avós ou outros fami- liares (como em alguns casos), a verdade é que as poucas opções que res- tam à maioria dos pais são apenas permitir (que venha e/ou vá para a es- cola sozinho, nomeadamente) e confiar que, na maioria das vezes pelo menos, o paradeiro do filho é aquele que é efectivamente comunicado pelo jovem aos pais. Torna-se, como já se disse, uma estratégia educativa deliberada, aquilo que não deixa de ser uma contingência prática. Por outro lado, se há a questão da confiança, também há a dimensão dos de- sempenhos. Havendo trajectórias escolares em curso, os usos dados aos tempos, com mais ou menos liberdade, também estão sujeitos à apresen- tação de resultados, positivos, naturalmente, que funcionarão como cré- dito argumentativo para as reivindicações de mais liberdade. Diz Susana (quadro superior, 48 anos, capital) a propósito de Nuno, o filho: «Ele diz ‘Não venho almoçar’, pergunto, porque não faz mal perguntar [...]. Pode- -se sempre desconfiar», acrescenta, «ahh... Será que ficou?» Mas opta, afirma, por não pensar nisso. Diz a este propósito:

Nem sequer me interrogo se lá ficou, o problema é dele, ele a seguir tem um teste, se não passar, quer dizer, alguma coisa ele vai ter que fazer. Afirma esta mãe que não controlar rigidamente o paradeiro do filho é uma opção, mas como se tem vindo a argumentar também não terá outra hipótese. Mais à frente recorda como nem sempre a posição indi- vidual acerca do dilema protecção/emancipação se pode traduzir numa verdadeira opção por uma ou outra estratégia de acção, quando justifica a sua acção como mãe, não sem fazer o paralelo com a sua própria expe- riência. O recurso à justificação auto-referencial, que sustenta a reprodu- ção de modelos ou pelo contrário a sua (re)formulação, é uma constante nos discursos parentais. Lembra Susana que:

[Hoje] é um contexto diferente, não é? Uma das coisas que às vezes se fala muito que é, que [se] pode cair na superprotecção em vários casos, que

eu sou um bocado contra mas isso, quer dizer, contra quando é exagerado [...]. Depois disse logo, mas o mundo era diferente e tal, porque eu, quando eu cresci não se ia levar e buscar, quer dizer, nós aos 10 anos... vivia num sítio que comecei a apanhar o autocarro aos 10 anos, porque o liceu era mais longe, mas não era única, quando chovia havia umas mães generosas e que podiam e que não era o caso da minha coitada, que as iam buscar e depois davam boleia às meninas [por]que estava a chover. Portanto e isso acho que foi bom para mim, é bom as pessoas começarem a fazer os seus percursos, a ter a sua vida porque os pais estão a trabalhar e têm a sua vida, quer dizer, não é porque os pais não queiram, não podem.

Fixação de novas fronteiras de liberdade durante o dia: