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Exercitando competências: estratégias e práticas educativas em análise

Na perspectiva parental há, com efeito, um inequívoco carácter de

exercício no modo como encaram o desenvolvimento de certas compe-

tências por parte dos filhos. Ir e voltar para a escola sozinho é inicial- mente uma novidade que, depois de banalizada, se transforma em res-

ponsabilidade. Nessa medida, o filho é livre para desempenhar uma tarefa

em que revela independência, porque exercitou as competências neces- sárias à sua concretização.

Há relevantes variações nos calendários (que situam o início desta prática desde os 10 anos ou antes mesmo, até aos 15, 16 anos). Não obs- tante, os argumentos que justificam por parte dos pais a sua postura pe- rante o modo como se faz o percurso casa-escola tendem a ser semelhan- tes e a espelhar a relação contingente (dir-se-ia mesmo dialéctica) entre os processos de concessão/conquista de liberdade e de aquisição de in- dependência, neste como noutros domínios. Note-se que as lógicas de acção podem variar, numa mesma família, consoante os territórios que

são objecto de discussão, embora a maneira como o jovem faz os seus trajectos diurnos seja bastante reveladora.

Na óptica da maioria dos pais é preciso a partir de certa altura apren- der a fazer alguns percursos (físicos e simbólicos) a sós como parte de um processo de aprendizagem mais amplo da responsabilidade (cum- prindo as determinações parentais) e da independência (ser capaz de fazer um trajecto sem a intervenção de um adulto). É precisamente essa a con- vicção de Isabel (técnica superior, 42 anos, periferia) que acredita que só exercitando as competências elas se tornam, de certa forma, reais. Atente- -se nalguns pormenores da dinâmica desta família.

Isabel e Hugo: «eu estava lá sozinho sempre e tentava...»

Isabel acredita que há coisas que não se transmitem, pelo que é ne- cessário cada um aprendê-las. Cabe aos pais a tarefa de criar as condições para tal aprendizagem, sob pena de os filhos nunca serem verdadeira- mente independentes. No caso do seu filho (Hugo, 18 anos, estudante do ensino superior, periferia) salienta como a falta de sinais fisiológicos de amadurecimento (começou a desenvolver-se fisicamente bastante tarde, confirma a certa altura) nada informa sobre aquilo que entende

ser a grande autonomia2do filho na gestão do seu quotidiano e dos per-

cursos a que ele obriga. Afirma que «desde os 10 anos que começou a vir sozinho da escola. Não parece, há coisas que o Hugo com aquela im- berbidade que ele tem que não imaginam... só as pessoas que o conhe- ciam muito bem. E depois revela assim aquela faceta tão autónoma, as pessoas admiram-se». Desde cedo que, a par dos percursos, o incumbiu de pequenas tarefas que se foram complexificando à medida que crescia. Aos 10 ia e vinha da escola, já se viu, aos 12 (com a introdução da me- sada) passou a ser responsável por comprar o pão diariamente. Mais tarde passou a ser responsável por outras coisas, inclusivamente tarefas que im- plicam cuidar da irmã mais nova. Diz que cumpre todas as tarefas de forma independente: «há uma das tarefas que é ele trazer o pão todos os dias, nós gostamos de pão todos os dias fresco, não andar a descongelar. Como ele ou vem da biblioteca ou sai – porque ele sai muito... – ou vem buscar a irmã ou vai pôr o lixo, traz sempre o pão, temos ali os cafezinhos não é? Traz sempre o pão e nunca me pede o dinheiro». Se o fez por convicção também teve disso necessidade, até porque, como sublinha,

2À luz das distinções conceptuais que servem de norte à análise dos dados, o sentido

dado à autonomia de que Isabel fala corresponderá melhor ao conteúdo identificado na noção de independência. Ainda assim, note-se como a sobreposição dos significados entre os vários conceitos (liberdade, autonomia, independência) é uma constatação teó- rica, mas também empírica, facto a que aliás já se fez referência.

«o pai estava ausente e eu não podia estar sempre a faltar» o que reforça a ideia de que as estratégias educativas também resultam de contingências práticas.

O testemunho de Hugo sublinha também como a capacidade de se desenvencilhar sozinho, nos percursos como noutras dimensões da vida, é um motivo de orgulho, um recurso identitário que estimula quer a au- toconfiança quer uma certa dose de auto-estima. Diz que, para além de ir e vir sozinho da escola, «[...] a partir dos 12, 11/12, ia para campos de férias aqui organizados pela Câmara, ia mas aquilo era bastante longe, no meio daquelas vivendas todas e eu ia sozinho. E não tinha medo ne- nhum». Mais à frente comenta como, com alguma frequência, constatava que era dos poucos que entre os seus pares faziam certas coisas sozinhos, como as inscrições na escola, por exemplo. Contingência prática ou não, o certo é que ia e, como diz, tentava: «[...] eu acho que eu nunca fui assim agarrado muito à mãe, assim naquela coisa de, por exemplo, a minha mãe dá-me tarefas e eu faço. Já quando era mais jovem ia para sí- tios e quando se vê assim os pais com os filhos, eu estava lá sozinho sem- pre e tentava...»

Impõe-se, nesta fase, fazer um pequeno parêntesis para salientar que nem sempre à necessidade (a falta de tempo devido às responsabilidades profissionais) se associa uma convicção normativa. Outros jovens cedo foram forçados a tornarem-se independentes em certas tarefas (inscrições na escola e outros procedimentos escolares, por exemplo) em virtude da ausência física dos pais (nos respectivos trabalhos) sim, mas também devido a um certo grau de ausência simbólica destes em certos territó- rios, nomeadamente o escolar (sobretudo a partir do 2.º ciclo). Nesses casos e neste território em particular, a haver um treinamento de compe- tências, este é feito sem treinador, ou, pelo menos, havendo um, este não é nenhum dos progenitores. Um dos traços da cultura escolar em con- textos onde o hiato intergeracional de escolarização é significativo passa pela assunção da incompetência parental (em virtude da sua baixa escola- ridade) para lidar com certas dimensões da vida escolar dos filhos. Muito embora a escola ocupe um lugar central na estratégia educativa dos pais, os filhos trilham caminhos escolares que nunca foram experimentados pelos pais, não havendo por isso grandes referências (mesmo que no li- mite contestáveis pelos filhos) de comportamento e desempenho que não o estritamente ético-moral ou interaccional (a questão da boa edu- cação, recorde-se).

O exemplo de Sónia (18 anos, estudante do ensino superior, mãe do- méstica, pai pequeno patrão, periferia) é paradigmático. Lembra, com particular clareza, a angústia que sentiu na entrada do 5.º ano quando

nem sabia que tipo de material comprar, nem tinha nenhuma informa- ção acerca da nova dinâmica escolar que ia encontrar (mais professores, muitas salas). Estavam elas, Sónia e a mãe, a experimentar a mesma sen- sação de ignorância e impotência. Odete (doméstica, 44 anos, periferia), a mãe, confessa ter-lhe dito muitas vezes que «se tu não sabes, eu muito

menos» a propósito das dúvidas daquela em relação a assuntos relaciona-

dos com a escola, pelo que este sempre constituiu um território de liber- dade (ainda assim vigiado a uma certa distância através dos desempenhos, positivos no seu caso). Na verdade, muitos jovens ver-se-ão forçados a de- senvolver competências para gerir não só um, como todos os aspectos da sua trajectória escolar, o que pode indiciar que para esses jovens os desafios públicos que a abertura ao mundo implica na adolescência, neste caso num território institucional como a escola (cujos códigos e lingua- gens são, especialmente para indivíduos menos familiarizados, herméti- cos e opacos), se fazem com um suplemento de intensidade, em virtude da ausência ou das limitações ao suporte e à orientação parentais.

Com referência àquele que é um dos objectivos deste capítulo (dife- renciar processos e conceitos tomados habitualmente como sinónimos), é legítima a hipótese de que, com maior ou menor angústia e mesmo que involuntariamente, muitos jovens oriundos de famílias menos favorecidas, no que diz respeito à escola (e às muitas tarefas que ela exige), acabam por mais precocemente ter liberdade para percorrer os percursos dentro do que fora da escola. Evocando as muitas tarefas que ela exige, tornar-se-ão os jovens nesta situação mais independentes para agir, o que significa que também podem constituir condições favoráveis ao desenvolvimento do reportório de competências que lhes permitirá construir, ainda, autonomia para escolher e decidir. Decisões que, todavia, podem não obedecer à ló- gica escolar (do diferimento de recompensas), mas a outras racionalidades (mais imediatas e contingentes, nomeadamente).

Importa, pois, reter a constatação de alguma diversidade nas lógicas de acção parental que, embora reportando a condicionantes de ordem socioeconómica e cultural, não se reduzem a elas. Com efeito, para além da questão do exercício de competências preparado antecipadamente pelos pais a que se tem feito referência, em alguns casos parece mais ajus- tado falar de uma lógica de atribuição de liberdade por omissão e/ou delega-

ção de responsabilidades, muito mais do que de uma lógica de concessão de li- berdade por convicção e com vigilância moderada, que mais facilmente confere

um cariz de conquista na perspectiva dos filhos.

Retomando o fio à discussão do carácter de exercício e experimenta- ção que justifica a acção parental, como se viu no caso de Isabel e Hugo,

inscrevem-se nesse processo de treino o ser capaz de cumprir outro tipo de tarefas fora de casa, mais ou menos ocasionalmente, como os recados. Outra necessidade prática, que se converte (discursivamente, pelo menos) num exercício educativo para o desenvolvimento de virtudes e compe- tências, que podem render (caso sejam demonstradas essas mesmas vir- tudes e competências) acrescidas doses de liberdade. Nem sempre com sucesso, pelo que um desempenho desfavorável nesses exercícios pode sig- nificar um interregno, o que não implica, ainda assim, que a desistência de proceder a tais experiências educativas (testar até que ponto se é capaz de fazer determinada tarefa ou percorrer determinado percurso) se man- tenha eternamente.

Eventualmente as coisas mudam e evoluem à medida que o filho cresce, ou não fosse justamente a dimensão processual um dos elementos mais interessantes dos percursos de aquisição de liberdade. Com efeito, Rodrigo (19 anos, estudante do ensino superior, mãe auxiliar de educação de infância, pai engenheiro, capital) também é dos que só no 7.º ano co- meçaram a voltar sozinhos para casa, tendo-lhe então sido confiada a chave de casa (outro interessante indicador que representa, por vezes, um momento biográfico relevante). Não que não se sentisse capaz de o fazer antes, mas os receios da mãe impediram-no de o fazer mais cedo (a aferição do grau de risco e perigo é das tarefas parentais mais complexas como nota Kurz 2002, 753-755). A sua posição relativa na dinâmica fa- miliar, com os 12/13 anos que marcam a altura em que passou a vir da escola, de vez em quando, sozinho, forçavam-no a resignar-se às determi- nações parentais, sustentadas nos desejos de protecção, conquanto não concordasse com elas. Como salienta: «os meus pais sempre foram muito galinhas». No seu sistema de gestão partilhada do quotidiano, a relação de forças (ainda) pendia, à época, sobretudo para o lado dos pais, sendo que as suas próprias convicções e auto-representações ainda não consti- tuíam a referência principal para a concessão de liberdades pelos pais.

Gestão do quotidiano e controlo à distância: confiança