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n «Com quem vais?»: as companhias como recurso e como obstáculo

Desde a altura em que se evocaram os argumentos dos jovens para justificar a legitimidade das suas pretensões (da sincronia à integração), que as companhias (o grupo de pares em geral) têm estado relativamente ausentes. Terá, inclusivamente, estranhado o leitor por o assunto compa-

nhias não ter surgido senão ao de leve, quando se procuraram sistematizar

os argumentos parentais utilizados para rebater ou suster as pretensões filiais. Ainda assim, as companhias que se escolhem ou que se querem para sair não são um elemento secundário neste processo. Se não se ana- lisou o seu papel então, foi porque, mais do que um argumento, elas constituem um recurso fundamental nas estratégias de controlo e vigi- lância. Senão, veja-se.

Para a maioria dos pais, os amigos constituem uma dimensão funda- mental a tomar em consideração quando ponderam concessões, regras e limites. «Vais sair, vais com quem, onde vais? Quero a lista, o número de telefone» é a regra básica número um que as filhas de Sofia (47 anos, pro- fessora do ensino secundário, capital), como muitos outros, embora tal- vez com menos rigor, têm de cumprir se querem sair à noite com os ami- gos, um compromisso que apesar de alguma reacção inicial acabou por se tornar uma norma de comportamento aceite e cumprida (ou pelo

menos a mãe acredita que sim). Faz parte, aliás, do sistema de notificação que gere o quotidiano. Esta regra aplica-se à partilha de informação sobre as configurações relacionais para os momentos concretos. Mas o conhe- cimento do grupo de pares enquanto mecanismo de controlo vai muito para além dos momentos concretos que são as saídas à noite. Para o bem e para o mal.

Na verdade, havendo confiança no grupo de pares, que decorre da ava- liação parental, mais ou menos superficial, da imagem, carácter e percurso (escolar), esta é vista como um enquadramento de segurança e suporte para o filho(a) que, em prol da integração e da sincronia, orienta frequen- temente a sua acção pela dos outros. Da parte dos pais, portanto, é maio- ritária a perspectiva de que o conhecimento do grupo de pares em geral (que se estende ao conhecimento das respectivas famílias) constitui um mecanismo de controlo, que tem como benefício reduzir os efeitos da ansiedade perante riscos e perigos. A rede social que efectivamente se constrói em muitos casos, em torno das sociabilidades juvenis, entre pares mas também entre os pais desses pares, traduz-se simbolicamente numa rede de segurança psicológica para os pais, como se o controlo parental (ou a sensação de deter esse controlo) se estendesse de forma tentacular através do olhar vigilante dos outros, sobre os filhos de todos, facto for- talecido muitas vezes pelos anos de convívio.

Até agora isso tem acontecido com pessoas que temos, que conhecemos, porque esses amigos são amigos da escola, até acabámos por conhecer os pais, um que conheço do basquete, o outro foi meu colega, o outro não sei quê... [Susana, quadro superior, 48 anos, capital].

Forma-se desta maneira a crença na existência de uma espécie de cir- cuito fechado de protecção, controlo e vigilância. Ainda assim, o efeito da passagem do tempo (e da rotinização das práticas que ele acarreta) deve ser assinalado, pois a rede de pais foi seguramente mais densa na fase inicial do que no momento da entrevista. Os testemunhos, como o de Sofia, assim o indicam.

Sempre muito controladas, as saídas com os amigos, sempre, sempre, sem- pre. Como elas estiveram no colégio, entretanto com os próprios pais dos outros miúdos estabeleceu-se também uma relação de alguma amizade. [...] Os actuais já não. Não faço a mínima ideia. Mas também não apetece já muito agora estar a dizer «olha, quero conhecer o pai de fulano», que entre- tanto já tem 24 ou 25, que até já mora sozinho. Elas agora neste momento estão inseridas num grupo de pessoas que inclusive já vivem sozinhas [Sofia, 47 anos, professora do ensino secundário, capital].

Não deixa de ser curioso assinalar como os pressupostos que se criam sobre as práticas do grupo e em grupo podem desviar o olhar dos com- portamentos individuais, assim protegidos pelo véu de confiança que cobre o grupo que se conhece bem. Isto acontece, claro, quando a avaliação global dos elementos do grupo de pares é positiva, assente no pressuposto de que percursos escolares relativamente bem-sucedidos, a pertença a fa- mílias normais com quem se mantém um relacionamento mais ou menos superficial e uma aparência considerada igualmente aceitável são um si- nónimo de razoabilidade nos comportamentos.

Conhecer o grupo de pares é...

Isso sempre foi importante, ver quem eram as pes- soas. Eu acho que era importante eu ir conhecendo os amigos, eles virem cá a casa, nem que fosse só uma vez, que era também para os amigos me verem. Para eu os ver e para eles me verem. Pronto. E depois, a partir daí, eu confio no Rodrigo [Teresa, auxiliar de educação de infância, 48 anos, capital].

E acho que, por acaso aí é comum a todos, então no caso dele fez muito bem, é um grupo que é, quer dizer, no fundo são porreiros nesse sentido, ou seja, vão atingindo os seus objectivos, algo que eles defi- nem, gostam de estar, andam, que mal é que pode daí advir, não é? [Susana, quadro superior, mestrado, 48 anos, periferia].

Não, os meus filhos nisso [drogas] não se metem. Não, isso não ligam, nisso estou à vontade, estou des- cansado, nem se metem, nem ligam. Não serão in- duzidos e também sei que o grupo de pessoas [com] que andam não é por aí [António, professor do en- sino secundário, 47 anos, periferia].

Elas agora andam com um grupo que é do corfe- bol, são miúdos... alguns já com vinte e quatro, e já crescidinhos, já estão a trabalhar, é um grupo bem mais velho do que elas, mas que são muito ligados ao desporto, e portanto, em princípio, são um grupo saudável [Sofia, 47 anos, professora do ensino secun- dário, capital].

Na verdade, o estar em grupo, com um grupo que se conhece, consti- tui para alguns pais uma garantia de segurança. Até que ponto é ilusória

... uma estratégia de controlo? ... uma garantia de razoabilidade nos comportamentos?

é difícil saber, pois a haver transgressões ou excessos (relacionados com consumo de drogas, álcool, ou mesmo relativos à sexualidade) é muito provável que não haja partilha dessa informação com os progenitores, mantendo-se a aura de confiança e bom comportamento. Com efeito, apenas em dois casos as mães entrevistadas se referiram ao diálogo constante como estratégia de controlo. Nessa medida, entendem estas mães, há que manter os canais comunicacionais abertos, o que também constitui uma razão para a adopção de uma lógica de acção parental que preza prefe- rencialmente a negociação em detrimento da imposição (embora esta opção se mantenha sempre no léxico de intervençõe possíveis, como se pôde observar). Implícita a esta forma de agir está também a orientação normativa que obriga ao exercício de um respeito fundamental pela pessoa do filho, aceitando as suas opções (com limites ainda assim) e a confiança na eficácia das ferramentas de auto-estima e segurança como forma de re- sistência aos eventuais riscos e perigos. Uma confiança que não é de modo algum cega, tornando-se a intimidade relacional uma forma de vigilância subtil, como aliás sublinha o estudo de Solomon e colegas (2002), salien- tando que a adesão normativa e a materialização prática da abertura de- mocrática nas relações familiares são, simultaneamente, uma eficaz (em- bora encoberta) ferramenta de controlo. Mais, em caso de dúvidas ou suspeitas, pergunta-se. Atente-se no testemunho de Alice a este propósito: Vou perguntando e tal, o que está a fazer e depois lá vou sabendo, se se metem nas ganzas, se não se metem nas ganzas... É preciso falar muito, é preciso andar muito em cima do assunto, é preciso ouvir muito [Alice, 54 anos técnica superior, capital].

Por outro lado, também é forçoso notar que os pais poderão certifi- car-se acerca do grupo com quem se vai (e volta), mas, não podendo estar presentes sempre, não podem garantir que são exactamente as mesmas pessoas com quem se está. Como já se pôde argumentar aquando da aná- lise dos tempos diurnos, há muito neste processo que se resume à crença e à confiança. Com efeito, do lado dos filhos, os pares que apresentam aos pais como companhias privilegiadas emergem, pois, como um re- curso igualmente relevante, com vista à redução de limitações e aumento do campo das práticas e locais possíveis num dado momento. Os jovens saberão quais os pares que inspiram mais confiança aos pais e os que, pelo contrário, podem suscitar reservas, sabendo jogar com as (des)con- fianças dos progenitores em seu benefício.

Continuando, é forçoso referir que se no grupo de pares se incluir a presença de irmãos mais velhos ou outros parentes como primos, o grau

de confiança dos pais aumenta consideravelmente, sublinhando (como aliás alguns jovens entrevistados salientam) como a posição na fratria é uma variável relevante a tomar em consideração quando se comparam tra-

jectórias de reivindicação e concessão de liberdade.14No caso de João,

como atesta o testemunho da mãe, Conceição, as divergências (de horários, nomeadamente) que marcaram o período de turbulência característico do início do processo de reivindicação de quase todos os jovens entrevistados, foram de certa forma contornadas pelo facto de ter começado a sair com o irmão (com quem tem, afirma, uma relação muito próxima) e as primas mais velhas uns anos, aproveitando as fronteiras conquistadas por estes. Quando sai só com os amigos sujeita-se aos limites destes.

As regras é assim, [...] gostava sempre que ele saísse com as pessoas que eu conhecesse, não quer dizer todas, algumas. Por exemplo, com as primas ia descansada porque conhecia-as, com o irmão também à hora até que fosse também... conhecia. Portanto que é uma preocupação que eu tenho, porque eu uma... eu disse-lhe a eles que é assim, eu tenho confiança neles, eu co- nheço-os mas não conheço as pessoas com quem eles vão, ou se conheço é só alguns [Conceição, empregada doméstica, 47 anos, periferia].

É certo que os casos até agora citados situam os jovens em contexto urbano, muitos deles beneficiando de condições socioeconómicas rela- tivamente favorecidas, o que pode sugerir que as estratégias empregues por estes pais podem estar de algum modo associadas à sua condição so- cial (a frequência prolongada de colégios aonde se forjam com mais fa- cilidade as redes de pais e uma maior abertura ao exterior da unidade fa- miliar, por exemplo). Também é verdade que se trata de redes de controlo social que, em virtude da dispersão residencial, nomeadamente, têm de ser construídas e alimentadas relacionalmente para poderem funcionar e serem eficazes. Já em contextos mais pequenos, como uma pequena vila no interior semi-rural de Portugal, as redes de controlo social (que já se

14Aqueles que têm a experiência de ter mais do que um filho reconhecem a frequente

diminuição do rigor, a flexibilização de princípios e práticas educativas a partir do se- gundo filho. O testemunho de Conceição (empregada doméstica, 47 anos, periferia) é apenas um exemplo: «Às vezes ponho-me a pensar e acho que com o Bruno talvez fosse mais rígida... por ser o primeiro. Que ele foi o primeiro em tudo. E como aprendi, no fundo, também o que é aprender com ele, também já modifiquei um bocado em relação ao João. [...] há coisas que... que era mais rigorosa com o Bruno e com o João hoje já não sou...» Na verdade trata-se de uma condição irredutível, pois só os irmãos mais novos têm irmãos mais velhos que podem acompanhar, enquanto estes têm, como dizem, de abrir o caminho ou, como diz Cátia (19 anos, lojista, 10.º ano, mãe empregada de balcão, pai operário, vila), «aí está, eu sou a mais velha, tenho que habituar os meus pais...».

referiram brevemente como penalizando mais as raparigas) são de outra natureza, mais tradicional e involuntária. Com efeito, existem indepen- dentemente das relações de amizade entre os pais, sendo do conheci- mento comum (de pais e filhos), que tudo se sabe sobre o que cada um faz, aonde vai e com quem. Mesmo que haja um hiato entre a prática o conhecimento que dela se venha a obter. O testemunho de Cátia (19 anos, lojista, 10.º ano, mãe empregada de balcão, pai operário, vila) é claro a este respeito:

Como é um lugar pequeno tudo se sabe, portanto, de uma maneira geral não, mas se alguma coisa de estranho se passar, mais cedo ou mais tarde eles vão saber, portanto... e sendo também um ambiente pequeno, toda a gente sabe quem é quem e... portanto, sabem mais ou menos sempre com quem é que as filhas se relacionam.

Sublinhe-se, ainda assim, que um contexto rural é muito diverso nas suas geografias, pois há que referir, por exemplo, as dificuldades acrescidas para quem mora fora da vila para frequentar alguns territórios conviviais, pois não havendo transportes públicos regulares, ou se depende total- mente de boleias de outros ou se é forçado a esperar por poder usufruir de transporte próprio (o que não será acessível a todos, certamente). Este é um dos elementos que recordam a cada instante que não é despiciente a variável localização geográfica (que insere o sujeito num contexto es- pacial, e muitas vezes cultural também, específico) na modelação das es- truturas de oportunidades objectivas disponíveis aos jovens. De qualquer forma, mesmo sabendo que há fontes de informação alternativas aos pro- tagonistas da acção, a maioria dos progenitores procura impor o ritual de notificação do paradeiro e da companhia. Diz Luz (empregada de balcão, 44 anos, vila) que

ela diz-me, porque é costume e compreende porque eu gosto de saber com quem estão.

Rita, a filha de 19 anos, confirma e acrescenta compreender em parte os anseios da mãe. Sabe que ela «quando me diz isso [que tenha cuidado com as companhias], [...] é mais para me proteger, se calhar, de boatos ou de coisas desse género».

Voltando à apreciação geral do grupo de pares, nem sempre, no en- tanto, a avaliação de carácter, aspecto e/ou percurso que os pais fazem dos pares é positiva. E quando a desconfiança se instala não raras vezes surgem fricções e/ou conflitos. Alguns pais crêem poder intervir no do- mínio relacional dos seus filhos, no sentido de reduzir ou eliminar as

ameaças que do grupo de pares podem surgir. De facto, é preciso subli- nhar que as companhias constituem um eixo fundamental de negociação no quadro do sistema de gestão partilhada dos quotidianos. Neste do- mínio as técnicas de influência (Kellerhals et al. 1992) utilizadas pelos pais variam, bem como os resultados. Desde a motivação, ou seja, a ten- tativa de, através do diálogo, transformar as atitudes do sujeito, conven- cendo-o da justeza dos argumentos parentais e deixando ao seu critério a tomada de decisões, à intervenção directa por via da mobilização da rede de relações (tentando chegar ao sujeito através daqueles que lhe estão próximos) ou, mais raramente, recorrendo à adopção de medidas que se socorram da autoridade decorrente da hierarquia estatutária familiar.

Más companhias, más influências: diferentes abordagens parentais

Sim... eu já soube que ele não andou com com- panhias boas... e... ou que não eram... não sei... por- que era também o que eu via, não é? E então em casa alertava [Manuela, assalariada agrícola, 45 anos, vila]. É assim que eu estou a dizer, quando ele se fecha, porque foi numa dessas coisas, porque ele tinha uns amigos lá mesmo em Cascais e foram os primos que vieram dizer que havia essas amizades que não são boas, são pessoas que já foram presas por roubo e por essas coisas e então não são boas do Walter andar e eu fui falar com ele acerca disso. [...] o que eu tentei passar para ele «é assim Walter, se a polícia estiver à procura deles vai carregar quem está do lado e sofres mesmo sem teres nada»... [Laura, auxiliar de acção educativa, 45 anos, periferia].

Eu, por exemplo, no ano passado tive um pro- blema um bocado, para mim foi grave para o Luís diz que não... o Luís dá-se bem com toda a gente tanto faz ser drogado como passador de droga, como uma pessoa séria, como doutora, para ele é tudo igual. E no ano passado começou a sair com um moço que passava droga, e eu comecei a entrar em paranóia porque me apercebi, não que ele se metesse na droga, vamos lá ver se a gente se entende, mas não era uma boa companhia. E aí trabalhámos até todos, até trabalhei eu, trabalhou o meu marido e trabalhou a namorada, o pai da namorada do meu filho, porque

Recomendar e alertar, não hostilizando: trabalhar o sujeito e a sua forma de avaliar os outros Intervir, mobilizar, convencer: trabalhar o ambiente para desmotivar o sujeito e conduzir ao afastamento voluntário

ficámos um pouco assustados. E o Luís percebeu e afastou-se e pronto, mas é assim, eu quando não con- sigo chegar eu mobilizo, eu vou mobilizar toda a gente a que eu tenha acesso e não fico parada à espera que as coisas aconteçam [Ilda, professora do ensino secundário, ensino médio, 46 anos, periferia].

Ela [namorada ] dez minutos depois parou à porta de casa, eu só lhe disse «Luís tens dez minutos, ou resolves o problema com a menina, ou vou lá eu», «não, não, não mãe eu vou lá», «então vai lá resolver o problema», nunca mais a miúda apareceu lá em casa. Nem teve oportunidade de sequer se chegar a ele, porque eu comecei a andar em cima dele [Ilda, professora do ensino secundário, ensino médio, 46 anos, periferia].

Subjacente à ideia de que certos elementos do círculo de relações dos jovens constituem um perigo está a convicção de que constituem uma má influência, que podem levar o filho(a) a transgredir, para além dos li- mites parentais, limites jurídico-legais (como o consumo ou mesmo o tráfico de drogas, por exemplo). Há pois, como sublinhou Baraldi (1992), uma clara distinção entre transgressões toleradas (que evocam a experi- mentação e a descoberta de si) e não toleradas (que podem pôr em causa a situação pública do sujeito ou mesmo a sua saúde e a segurança). Isso significa, por outro lado, que os pais crêem que o filho pode ser influen- ciado, denunciando, de certa forma, uma representação do filho como um ser frágil e manipulável por outros – heterónomo, portanto. Nessa medida, raramente é tido como o autor da eventual transgressão, mas antes uma vítima da acção e influência de outros, o que pode ser, em muitas situações, questionável. Em qualquer dos casos, todavia, mais do que práticas parecem ser mobilizadas representações do filho enquanto su- jeito na aferição dos riscos que este pode correr.

É também desta forma que é possível aferir na prática o estatuto am- bíguo do jovem que cresce na família, a quem se exigem características de um indivíduo autónomo, responsável e independente (que tem con- trolo sobre as suas acções de forma a conformá-las às normas), por um lado, e a quem se atribuem amiúde traços de fragilidade e incompetência, por outro. Uma ambiguidade particularmente visível quando se perscru- tam as formas como nas várias famílias se gerem os percursos (que mo- tivam, como se viu, uma proporção significativa de receios e ansiedades).

Impor, proibir: invocar a autoridade parental provocando afastamento involuntário