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A autoajuda que não aprovamos

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 106-109)

Em 2002, ministrei na pós-graduação da Universidade de Nova York uma disciplina chamada “Social Weather”, sobre a experiência de participar de grupos na internet. O título do curso era uma analogia com a maneira como as condições meteorológicas afetam nosso estado de ânimo; nele, examinávamos como grupos sociais criam um ambiente emocional que afeta todos os  participantes. Uma das alunas, Erika Jaeggli, trabalhava também no site da revista YM . A Y 

(antigamente Young Miss , depois Your Magazine , por fim só YM ) foi concebida para atrair  meninas adolescentes. Em 2002, como quase todas as outras revistas do país, a YM  enfrentava o  problema de como abraçar a web. Além de pôr os artigos da publicação na rede, a equipe criou um conjunto de fóruns de discussão que permitia às leitoras conectar-se e conversar umas com as

outras sobre qualquer coisa que lhes passasse pela cabeça. Assuntos populares incluíam roupas, escola, romance, saúde e beleza – um conjunto bem normal de interesses de adolescentes. O trabalho de Erika era em parte acolher e em parte vigiar, tentando estimular as meninas a se sentir à vontade ao conversar entre si, cuidando ao mesmo tempo para que o papo não degenerasse em xingamentos ou se desviasse para assuntos impróprios. Especialmente ao lidar com leitoras que estavam na idade de explorar assuntos antes proibidos como sexo e o uso de álcool e outras drogas, o papel de uma editora era alcançar um equilíbrio. Intervenção de menos, e a conversa se transformaria em confusão; intervenção demais pareceria uma tentativa desajeitada de disciplinar  as meninas – precisamente o tipo de tratamento por parte dos adultos do qual elas estavam tentando escapar no site da YM .

Alguns meses depois do início do semestre, Erika deteve-me no corredor e contou-me que a Y  ia encerrar seu fórum sobre saúde e beleza. Quando expressei surpresa ao saber que uma revista destinada a adolescentes decidira liquidar esse tipo de discussão, ela respondeu: “A maior parte das meninas estava bem, mas não conseguimos descobrir como impedir um grupo específico de ficar trocando sugestões sobre como se manterem anoréxicas.” Essas meninas Pró-Ana (abreviação de pró-anorexia) estavam postando fotografias de modelos e atrizes com caixas torácicas à mostra como “thinspiration” (inspiração para emagrecer) e exortando umas às outras com frases como: “Você tomou uma decisão – não vai parar. A dor é necessária, especialmente a dor da fome. Ela confirma que você é forte – capaz de suportar qualquer coisa – e que não é uma escrava do seu corpo; você não cede à pirraça dele.”

O mais perigoso era que as meninas Pró-Ana estavam trocando conselhos práticos (embora a  palavra “prático” pareça estranha neste contexto):

Você pode treinar para esquecer a fome socando suavemente o estômago cada vez que sentir fome, porque vai sentir dor  demais para comer.

Tome antiácidos para ajudá-la com as dores da fome; como eles têm cálcio, vão ajudá-la nessa área também. Limpe algo que você ache realmente nojento. Depois, passará mais umas duas horas sem vontade de comer.

O problema para a YM  não era o fórum ter fracassado em atrair o interesse de suas leitoras. Era que havia conseguido isso de uma maneira para a qual a revista estava despreparada.

Sempre que indivíduos querem se encontrar, a sociedade mais ampla na qual eles estão inseridos  pode fornecer ou recusar apoio para essa associação. Falamos sobre identidade em grande parte como se ela fosse um atributo pessoal, mas a sociedade mantém controle sobre o uso da identidade como ferramenta de associação. Um viciado em drogas passando por recuperação acharia muito arriscado pedir a colegas de trabalho ajuda para encontrar um grupo de apoio, tal como poderia ocorrer com alguém que estivesse procurando a comunidade gay da região. Contudo, se a sociedade fornece ou recusa esse apoio é uma questão que importa cada vez menos.

 Nisso reside o dilema que a equipe da YM   enfrentou. Para hospedar uma conversa entre suas leitoras mais ativas e engajadas, era preciso monitorar o site, mas se Erika e os outros editores on- line extirpassem todas as menções à anorexia, pareceriam tirânicos, sobretudo porque algumas das conversas eram genuinamente contra a anorexia. Para complicar ainda mais, as meninas Pró-Ana  pareciam muito determinadas a conversar abertamente. No fim das contas, o possível ponto ideal entre falta e excesso de intervenção passou a parecer ilusório, e a YM   simplesmente encerrou o grupo, em vez de empreender uma censura diária ou arriscar-se a comprometer a saúde das

meninas que haviam se reunido na YM . Mas o que exatamente as meninas fizeram que constituía um desafio tão novo? A anorexia vem sendo uma fonte de preocupação pública desde os anos 1960, e há décadas grupos de meninas reúnem-se e conversam sobre tudo, desde sexo e drogas até moda e comida. Teria a YM  agido em função do medo comum de que uma nova tecnologia pudesse destruir  a sociedade? Ou tratava-se de alguma coisa diferente?

Há alguma coisa de diferente. A formação de grupos sem aprovação social está mais fácil. Como era de se esperar, o movimento Pró-Ana simplesmente deslocou-se de espaços de conversa monitorados como o da YM   para ferramentas mais abertas, como blogs e sites de redes sociais como o MySpace. A YM  foi capaz de retirar seu apoio para o grupo em seu site, mas nem ela nem qualquer outra organização poderiam impedir as meninas de formar grupos e conversar entre si se elas assim quisessem. Antes que tivéssemos de fato qualquer tecnologia para a formação de grupos, a mera procura por pessoas interessadas nas mesmas coisas que nós era difícil, e a maioria das maneiras de que dispúnhamos para fazê-lo – de distribuir panfletos pela vizinhança a publicar um anúncio no jornal local – era cara e demandava tempo. Em razão dessas dificuldades, a aprovação social podia facilitar muito a formação de grupos, e a desaprovação pode torná-la muito mais difícil. Mecanismos formais como a lei são um fator: é mais fácil encontrar um grupo de pessoas com quem beber do que com quem fumar um baseado, porque a lei trata o álcool e a maconha de maneiras diferentes. Mas restrições legais só dão conta de um pequeno número desses casos: há muito mais mecanismos informais para criar o mesmo efeito.

Lembra-se dos fotógrafos da Mermaid Parade? Ou do Voice of the Faithful? Ou das ex- testemunhas de Jeová? Todos esses grupos, por mais que tenham integrantes, atitude e objetivos diferentes, compartilham duas características essenciais. Primeiro, todos nasceram como grupos latentes – seus membros tinham coisas em comum, mas o custo e o incômodo que enfrentariam para se encontrarem eram altos demais. Segundo, a sociedade em que viviam não facilitava seu encontro. Em alguns casos, como no das pessoas que compareciam à Mermaid Parade, isso decorria simplesmente da velha disparidade entre esforço e resultado. Em outros casos, porém, decorria do fato de as instituições em melhor posição para fazer as apresentações serem ativamente contrárias aos objetivos do grupo latente. Não se poderia esperar que as testemunhas de Jeová ou a Igreja católica despendessem tempo e dinheiro ajudando a coordenar pessoas que querem criticá- las ou obrigá-las a mudar suas maneiras de se conduzir.

Grupos como o das ex-testemunhas de Jeová e o das meninas Pró-Ana não precisam mais de apoio social para se reunir; todos eles operam abaixo do piso coaseano, em que custos transacionais reduzidos simplificaram a tal ponto a reunião de pessoas que qualquer um pode  promovê-la. Registrar, procurar e transmitir informação, sobretudo informação a respeito de nós

mesmos, é algo que nossas redes de comunicação fazem muito bem e sem nenhum esforço. A enorme visibilidade da vida social e a facilidade com que tudo pode ser procurado significam que a capacidade que as pessoas com ideias afins têm de encontrarem umas às outras, e de se reunirem e cooperarem entre si, existe agora independentemente da aprovação ou desaprovação social. A reunião das meninas Pró-Ana não é um efeito colateral de nossas ferramentas sociais, é seu efeito  precípuo.

Quando a sociedade está mudando, queremos saber se a mudança é boa ou ruim, mas esse tipo de ulgamento perde o sentido em se tratando de transformações tão grandes. É bom que os garotos na Bielo-Rússia tenham agora flash mobs como ferramenta para se opor à opressão política, mas para

outros grupos, seja o Voice of the Faithful ou os passageiros que exigem um tratamento melhor por   parte das companhias aéreas, a mudança parece diferente dependendo do ponto de vista. Católicos

leais podem ver as exigências do VOTF como uma ameaça à Igreja que amam, e membros de sindicatos podem não querer que a posição financeira das companhias aéreas seja enfraquecida  pelas exigências dos passageiros.

Distinguir entre o bom e o ruim é um desafio, em parte por estarmos acostumados a ver a reprovação social dificultar a formação de grupos. Os Alcoólicos Anônimos têm mais apoio da sociedade que as meninas Pró-Ana, mas ambos os grupos usam a linguagem da autoajuda para descrever o que fazem. O movimento Pró-Ana, da mesma maneira que movimentos afins como o Pró-Mia (bulimia) e o Cortadores (automutilação), demonstra que a definição de autoajuda sofreu o mesmo golpe que o jornalismo. Durante grande parte do século XX, os Alcoólicos Anônimos – a  primeira organização de autoajuda – deu o tom para o modo como a autoajuda era socialmente

concebida: era um lugar de devoção e cura e promovia um fim que contava com aprovação geral. O movimento Pró-Ana é chocante porque parece virar muitos desses aspectos pelo avesso, ajudando  pessoas a continuar doentes ou ficar ainda mais.

 Na verdade, o choque é injustificado: o movimento Pró-Ana é realmente um movimento de autoajuda, porque o conteúdo da autoajuda é determinado por seus praticantes. A lógica da autoajuda é afirmativa – um pequeno grupo reúne-se para defender seus valores contra desafios internos e externos. Quando o pequeno grupo é um punhado de bêbados tentando ficar sóbrios, contrariando as normas estabelecidas por seus companheiros de copo, a sociedade geralmente aprova. Quando o grupo é um bando de meninas adolescentes tentando ficar ou continuar   perigosamente magras, contrariando o juízo de seus pais e amigos horrorizados, nós reprovamos.

Mas o mecanismo básico de apoio mútuo permanece o mesmo.

O declínio de custos transacionais beneficia todos os grupos, não apenas aqueles que por acaso aprovamos. Antes, o que impedia fenômenos como o movimento Pró-Ana de se espalhar era o custo. Ao longo da história, os custos transacionais de reunir um grupo de indivíduos com ideias semelhantes, especialmente de maneira anônima, eram grandes, e grupos autofinanciados e aprovados pela sociedade como o AA eram os únicos capazes de arcar com esses custos. Com a queda dos custos transacionais, contudo, as dificuldades de se formar esses grupos desapareceram; agora os membros em potencial de um grupo assim podem se reunir e estabelecer seus próprios fins sem precisar de nenhum tipo de patrocínio ou aprovação social.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 106-109)