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Publique, depois filtre

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 46-50)

A amadorização em massa desintegra categorias profissionais

4. Publique, depois filtre

 paisagem da mídia transformou-se, porque comunicação pessoal e publicação, antes funções separadas, agora se confundem. Um resultado é a ruptura do velho padrão de separação profissional entre o bom e o medíocre antes da

ublicação; agora essa filtragem é cada vez mais social e acontece  a posteriori.

Aqui está o que a massa de amadores do mundo oferece na tarde de uma terça-feira qualquer de maio.

 No LiveJournal, Kelly diz:

ontemmmm, depois da tempestade da m… desse século, fui no shopping com deanna, dixon e chris. a gente encontrou o mundo todo lá, comeu e acabou escolhendo umas roupas pra dixon. vi katie e ryan e forcei katie a voltar pra minha casa comigo e dixon. um pouco depois deanna veio, depois jimmy pezz, e depois lynn. que noite. hoje acordei com meu cachorro latindo feito maluco e alguém batendo na minha janela. fiquei tão nervosa, mas depois jackii me disse que era jack então fiquei normal e dormi de novo. não tenho a menor ideia do que vou fazer hoje mas tem feeesta à noiteeee.

 No YouTube, o vídeo de 26 segundos postado por texasgirly1979 sobre um pit bull acarinhando uns pintinhos com o focinho foi visto 1.173.489 vezes.

 No MySpace, um usuário que se identifica como Loyonon posta uma mensagem na página de Julie:

Julieeeeeeeeeee não acredito que não te vi ontem à noite!!!! O Trac falou com vc e disse que vc tava completamente chapada! Droga, perdi essa. kkkk 

 No Flickr, o usuário Frecklescorp postou a foto de uma mulher usando um elegante vestido de festa e tocando uma guitarra havaiana.

 No Xanga, o usuário Angel_An_Of_Lips diz:

Ei todomundo, malz que não tenho tado on-line um tempo andei enrolada com um monte de coisa como softball e vôlei e meu cachorro novo e tou indo pro Tenn. na quinta-feira então não vou aparecer aqui mais ou menos uma semana mas prometo que vou voltar e mostrar foto. e michigan foi tão maneeeiro! bem, a gente arrumou um jack russel terrier e a cara dele é assim!! ……… não é liiiindo…… eu sei!!! bem era só isso que eu tinha pra dizer ah ah eu cortei o cabelo tá na minha foto. maneiro neh…!

E isso, claro, é uma gota no balde. Examinando essa vasta coleção de posts pessoais, fotos que são piadas internas, e vídeos malfeitos, é fácil concluir que, embora pudesse ter algumas desvantagens, o velho mundo da escassez nos poupava do pior da produção amadora. Com certeza

empanturrar-se de lixo é tão ruim quanto passar fome, não é?

O rótulo geral para esse tipo de material é “conteúdo gerado por usuários”. Mas a expressão é um tanto inadequada. Quando você cria um documento no computador, isso se encaixa em um sentido genérico da expressão, mas não é isso que ela realmente quer dizer. Da mesma maneira, quando Stephen King escreve um romance em seu computador, isso tampouco é conteúdo gerado  por usuários, embora o sr. King seja um usuário de software como qualquer outro. “Conteúdo gerado por usuários” não é apenas a produção de pessoas comuns com acesso a ferramentas criativas como processadores de texto e programas de desenho; requer também o acesso a ferramentas re-criativas – como o Flickr, a Wikipédia e os blogs – que lhes forneçam a capacidade de distribuir sua criação para outras pessoas. É por isso que o arquivo no seu computador não conta como conteúdo gerado por usuários – ele não chega até um público. É também por isso que o romance em andamento do sr. King não conta – ele é pago para obter um público. Conteúdo gerado  por usuários é um fenômeno grupal e amador. Quando as pessoas falam sobre ele, estão

descrevendo as maneiras como os usuários criam e compartilham mídia uns com os outros, sem que haja nenhum profissional à vista. Sob essa óptica, a ideia de conteúdo gerado por usuários na verdade não é apenas uma teoria pessoal das capacidades criativas, mas uma teoria social das relações de mídia.

O MySpace, site de relacionamento de estrondoso sucesso, tem dezenas de milhões de usuários. Sabemos disso porque a administração do site (e sua companhia-mãe, a News Corp) não perde uma oportunidade de informar ao público o número de seus usuários. Muitos deles, porém, não vivenciam o MySpace na escala de dezenas de milhões. A maioria dos usuários interage apenas com poucos outros – a mediana de amigos no MySpace é dois, ao passo que o número médio de “amigos” é 55 (a palavra está entre aspas porque a média é distorcida para cima por pessoas que se apontam como amigas de bandas famosas ou do fundador do site, Tom). Mesmo essa média de 55, por mais que esteja distorcida, demonstra o desequilíbrio: o site tem mais de 100 milhões de contas criadas, mas a maioria das pessoas associa-se no máximo a algumas dezenas de outras.  Ninguém (exceto a News Corp) pode se dirigir com facilidade aos milhões reunidos no site; a maioria das conversas ocorre em grupos muito menores, ainda que interconectados. Esse padrão é geral em serviços de redes sociais como o Facebook, o LiveJournal e o Xanga. Ele se aplica até ao mundo dos blogs – dezenas de blogs têm um público de 1 milhão de pessoas ou mais, e milhões têm um público de uma dezena ou menos.

É fácil ver isso como uma espécie de fracasso. Quem iria querer publicar algo para apenas uma dezena de leitores? É também fácil ver por que o público para a maior parte do conteúdo gerado  por usuários é tão pequeno, cheio como está de comentários tacanhos em ortografia estropiada

sobre ir ao shopping e escolher roupas para Dixon. E é fácil zombar desse tipo de coisa como  publicação egocêntrica – por que alguém haveria de expor essas bobagens em público?

É simples. Essas pessoas não estão falando com você.

Interpretamos mal esses posts aparentemente banais por estarmos tão desacostumados a ver em  público material escrito que não se destina a nós. As pessoas que postam mensagens umas para as outras em pequenos grupos estão fazendo um tipo de comunicação diferente do daquelas que  postam mensagens para ser lidas por centenas ou milhares de pessoas. Mais é diferente, porém menos é diferente também. Um público não é apenas uma comunidade grande; ele pode ser mais anônimo, com muito menos laços entre os usuários. Uma comunidade também não é apenas um

 público pequeno; tem uma densidade social que o público não possui. Os blogueiros e usuários de redes sociais que operam em pequenos grupos são parte de uma comunidade e desfrutam de algo análogo à privacidade do shopping. A qualquer dia você pode ir à praça de alimentação de um shopping e encontrar um grupo de adolescentes matando o tempo e batendo papo. Eles estão em  público, e, se você quisesse, sem dúvida poderia sentar-se na mesa vizinha e escutar a conversa. E o que estariam eles dizendo uns aos outros? Estariam dizendo: “Não acredito que não te vi ontem à noite!!! O Trac disse que vc tava completamente chapada!” Isto é, estariam fazendo algo parecido com o que fazem no LiveJournal ou no Xanga, mas se você estivesse ouvindo a conversa no shopping, em vez de estar lendo seus posts, ficaria claro que você é que é esquisito.

A maior parte do conteúdo gerado por usuários não tem nada de “conteúdo” no sentido de ser  criado para consumo geral, assim como um telefonema entre você e um parente não é “conteúdo gerado por família”. Muita coisa criada a cada dia é apenas a matéria comum da vida – mexerico,  breves informações, pensamentos em voz alta –, mas agora isso é feito no mesmo meio que material  profissionalmente produzido. De maneira semelhante, as pessoas não vão preferir conteúdo  produzido profissionalmente em situações em que a comunidade importa: eu tenho uma péssima voz, mas meus filhos ficariam chateados se eu pusesse uma versão bem-executada de “Parabéns pra você” para tocar no aparelho de som, em vez de cantar eu mesmo a música, e mal.

Dizer alguma coisa para umas poucas pessoas que conhecemos costumava ser algo muito diverso de dizer alguma coisa para muitas pessoas que não conhecemos. A distinção entre mídia de comunicação e mídia de transmissão sempre foi uma questão de tecnologia, não uma verdade  profunda sobre a natureza humana. Antes da internet, quando falávamos sobre mídia, estávamos tratando de duas coisas diferentes: mídia de transmissão e mídia de comunicação. A mídia de transmissão, como o rádio e a televisão, mas também os jornais e o cinema (o termo refere-se à ampla distribuição de uma mensagem a partir de um lugar central, seja qual for o meio), destina-se a publicar mensagens para que todos vejam (ou, em alguns casos, para que todos os compradores ou assinantes vejam). Conceitualmente, a mídia de transmissão tem a forma de um megafone, amplificando uma mensagem unidirecional de um emissor para muitos receptores. Já a mídia de comunicação, dos telegramas aos telefonemas, passando pelos fax, destina-se a facilitar conversas de mão dupla. Conceitualmente, ela é como um tubo; a mensagem inserida em uma ponta é endereçada a um receptor específico na outra ponta.

A mídia de comunicação ligava um emissor a um receptor. Trata-se de um padrão de “um para um” – eu falo e você ouve, depois você fala e eu ouço. A mídia de transmissão ligava um emissor a muitos receptores, e estes não podiam responder. É um padrão de um para muitos – eu falo, falo, falo, e a única escolha que você tem é ouvir ou dessintonizar. O padrão que não  tínhamos até recentemente era o de “muitos para muitos”, em que as ferramentas de comunicação permitem a conversa grupal. O e-mail foi a primeira ferramenta realmente simples e global para esse padrão (embora muitos outros, como torpedos de celular e mensagens instantâneas, tenham sido inventados depois).

Agora que nossa tecnologia de comunicação está mudando, as distinções entre esses padrões de comunicação estão evaporando; o que era antes uma ruptura brusca entre dois estilos de se comunicar está se tornando uma transição suave. A maior parte do conteúdo gerado por usuários é criada como comunicação em pequenos grupos, mas estamos tão desacostumados à mistura de mídia de transmissão e mídia de comunicação que pensamos que todo mundo agora está falando

 para o grande público. Isso é um erro. Se ouvíssemos as conversas telefônicas de outras pessoas, saberíamos que depararíamos com conversa fiada, piadas internas e coisas do gênero, mas as conversas telefônicas das pessoas não são públicas. Uma das forças motrizes por trás de grande  parte do conteúdo gerado por usuários é que a conversa não está mais limitada a becos sem saída

sociais como o telefone.

A distinção entre transmissão e comunicação, isto é, entre ferramentas de “um para muitos” e “um para um”, costumava ser tão clara que podíamos distinguir uma mensagem pessoal de uma impessoal apenas pelo tipo de meio usado. Alguém poderia lhe dizer “eu amo você” em uma carta, e alguém poderia dizer “eu amo você” na televisão, mas não haveria dificuldade em compreender  qual dessas mensagens realmente se destinava a você. Atribuímos considerável valor a mensagens dirigidas a nós pessoalmente e somos bons para distinguir entre as mensagens destinadas a nós individualmente (como cartas de amor) e aquelas destinadas a pessoas como nós (como as emitidas  por pregadores religiosos e garotos-propaganda na programação da TV). Toda uma indústria, a mala direta, surgiu em torno da tentativa de induzir pessoas a acreditar que mensagens em massa são na verdade destinadas pessoalmente a elas. Gastaram-se milhões de dólares para desenvolver e testar maneiras de fazer anúncios a granel parecerem correspondência pessoal, inclusive dirigindo- se ao destinatário pelo nome e imprimindo recados aparentemente escritos à mão pelo remetente nominal. Minha irritação quando recebo correspondência exortando alguém chamado Caly Shinky a “Agir agora!” vem do fato de reconhecer o truque e vê-lo fracassar. Programas de vendas pela televisão usam um truque relacionado, instruindo os representantes de vendas que atendem às chamadas a ser simpáticos com a pessoa que telefona e felicitá-la por seu bom gosto ao escolher  seja o que for que estiver comprando, porque sabem que pelo menos parte da motivação da compra vem de um desejo de aliviar a solidão de ver televisão. Embora essa simpatia aumente o tempo médio de duração das chamadas, também deixa o espectador feliz, ainda que a motivação original  para telefonar viesse de ver pessoas na TV – pessoas que não podem, por definição, importar-se  pessoalmente com você.

Claro que alguns conteúdos gerados por usuários são conscientemente dirigidos para o público. Blogs populares como o Boing Boing (cultura da internet), o Huffington Post (política americana de esquerda) e o Power Line (política americana de direita) são todos reconhecíveis como veículos de comunicação, com públicos enormes em vez de grupinhos de amigos. Mas entre o pequeno  público leitor da jogadora de vôlei Angel_An_Of_ Lips no Xanga e o público de mais de 1 milhão do Boing Boing, não há um ponto óbvio em que um blog (ou, na verdade, qualquer material criado  por usuários) pare de funcionar como um diário para amigos e comece a agir como veículo de

comunicação. Alisara Chirapongse (também conhecida como gnarlykitty) escrevia sobre o que interessava a ela e a seus amigos tailandeses fissurados em moda, e depois, durante o golpe, tornou-se por um breve período uma voz global. Atualmente a comunidade confunde-se com o  público; é como se seu telefone pudesse se transformar em uma estação de rádio ao girar de um  botão.

O mundo real nos fornece muitas maneiras de manter expressões públicas, privadas e secretas separadas umas das outras, a começar pelo fato de que, até pouco tempo atrás, os grupos estavam quase totalmente limitados a se encontrar no mundo real, e as coisas que dizemos no mundo real só são ouvidas pelas pessoas com quem falamos, e apenas enquanto lhes falamos. Na internet, em contraposição, o modo usual para muitas formas de comunicação é instantâneo, global e quase

 permanente. Nesse mundo, o registro privado fica em desvantagem – para nós que crescemos com uma forte distinção entre mídia de comunicação e de transmissão, é difícil ver algo postado em um  blog como pertencendo a um registro privado, mesmo quando o conteúdo é obviamente uma piada

interna ou um mexerico banal, porque, se algo está ao nosso alcance, supomos que deve ter sido escrito para nós.

O fato de as pessoas estarem conversando umas com as outras nesses grupinhos também explica  por que blogueiros com uma dezena de leitores não têm um público pequeno: eles não têm público

nenhum, têm apenas amigos. Na verdade, no início da década de 2000, quando escrever blogs estava se tornando uma atividade popular, o software de blog com mais usuários leais não era outro senão o LiveJournal, que reunia mais grupinhos de amigos blogando uns para os outros que qualquer outra ferramenta do gênero. Se o interesse principal das pessoas fosse conquistar um grande público com seus blogs, o LiveJournal teria sido o mais afetado pelo abandono do serviço  por parte de usuários decepcionados, mas ocorreu o contrário. Escrever coisas para os amigos lerem e ler o que eles escrevem gera um tipo de prazer diferente do de escrever para um público. Como, antes que a internet se tornasse comum, era preciso considerável esforço para dizer algo que  pudesse ser ouvido por um número significativo de pessoas, tendemos a considerar que qualquer 

material disponível publicamente está sendo oferecido para nós. Agora que o custo de postar  coisas em um meio global despencou, grande parte do que é postado em qualquer dia é público, mas não se destina ao público.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 46-50)