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Revolução e coevolução

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 57-62)

Há uma história na minha família sobre o primeiro encontro dos meus pais. Querendo impressionar  minha mãe, meu pai decidiu levá-la a um cinema drive-in. Não tendo carro para entrar no drive-in, ele teve de tomar emprestado o do pai dele. Uma vez lá, minha mãe, querendo impressionar meu  pai, pediu a bebida mais requintada disponível, uma espécie de vaca-preta. Acontece que minha mãe detesta aquela bebida, sempre detestou, e depois de tomá-la vomitou sobre o piso do carro do meu avô. Meu pai teve de levá-la para casa, perdendo a sessão para a qual ele dirigira quase 25 quilômetros e pagara um dólar. Depois teve de limpar o carro e devolvê-lo com uma explicação e um pedido de desculpas. (Felizmente para mim, houve um segundo encontro.)

Agora, que parte dessa história versa sobre o motor de combustão interna? Nenhuma, obviamente, mas, de certa forma, toda ela. Sem motores, não haveria carros. Sem carros, não seria  possível usá-los para namorar. (Seria difícil exagerar o efeito dos automóveis sobre o romance.)

Sem namoro no carro, não haveria cinemas drive-in. E assim por diante. Nossa vida é tão  permeada pelos automóveis que compreendemos de imediato, sem pensar nem um segundo sobre

combustão interna, como meu pai deve ter se sentido quando meu avô lhe emprestou o carro, e com que cuidado deve tê-lo limpado antes de devolvê-lo.

Esse padrão de coevolução de tecnologia e sociedade também está presente nas ferramentas de comunicação. Eis uma pergunta sobre história da tecnologia: o que se tornou de uso geral primeiro, o fax ou a web? Pessoas com mais de 35 anos de idade têm dificuldade de entender até a razão de ser da pergunta – é claro que a adoção geral da máquina de fax foi anterior à da web. Eis outra: o que se tornou de uso geral primeiro, o rádio ou o telefone? As mesmas pessoas muitas vezes  precisam pensar sobre essa pergunta, embora a demonstração prática do rádio tenha ocorrido quase

duas décadas depois da do telefone, uma lacuna maior do que a que separou o fax e a web. Temos de pensar sobre o rádio e o telefone porque, para todo mundo que está vivo atualmente, essas duas tecnologias sempre existiram. E para os universitários de hoje, o mesmo pode ser dito do fax e da eb. As ferramentas de comunicação só se tornam socialmente interessantes depois que se tornam tecnologicamente enfadonhas. A invenção de uma ferramenta não gera mudança; ela precisa ter  existido por tempo suficiente para que a maior parte da sociedade a esteja usando. É quando uma tecnologia se torna normal, depois onipresente, e por fim tão universal a ponto de ser invisível, que as mudanças realmente profundas acontecem, e para os jovens de hoje nossas novas ferramentas sociais já passaram pelo estado de normais, estão se encaminhando à onipresença, e a

invisibilidade aproxima-se.

Estamos vivendo no meio do maior aumento da capacidade expressiva na história da raça humana. Mais pessoas podem comunicar mais coisas para mais pessoas do que jamais foi possível no passado, e o tamanho e a velocidade desse aumento, que foi de menos de 1 milhão para mais de 1 bilhão de participantes no decorrer de uma geração, fazem da mudança algo sem precedentes, mesmo considerada contra o pano de fundo de revoluções anteriores nas ferramentas de comunicação. As mudanças verdadeiramente impactantes nessas ferramentas podem ser contadas nos dedos de uma mão: a imprensa e o tipo móvel (considerados como um longo período de inovação); o telégrafo e o telefone; conteúdo gravado (música, depois filmes), e por fim a utilização de sinais de rádio (para transmitir rádio e TV). Nenhum desses exemplos foi um simples melhoramento, ou seja, uma maneira melhor de fazer o que uma sociedade já fazia. Na realidade, cada um representou uma verdadeira ruptura com a continuidade do passado, porque qualquer  mudança radical em nossa capacidade de nos comunicarmos uns com os outros muda a sociedade.

Há, no entanto, um desequilíbrio persistente nessas mudanças anteriores. O telefone, a revolução tecnológica que pôs o poder mais expressivo nas mãos do indivíduo, não criou um público; telefones destinavam-se a conversas. Por sua vez, a imprensa tipográfica e a mídia gravada e de transmissão criaram públicos enormes, mas o controle desses meios permaneceu nas mãos de um  pequeno grupo de profissionais. Agora, com a crescente expansão e fusão dos telefones celulares e da internet, possuímos uma plataforma que gera ao mesmo tempo poder expressivo e tamanho de  público. Cada novo usuário é um criador e consumidor em potencial, e um público cujos membros  podem cooperar diretamente uns com os outros, de muitos para muitos, é um “antigo público”. Mesmo que o grupo não crie nada além de alguns torpedos ou e-mails, essas mensagens podem ser  destinadas não apenas a indivíduos, mas a grupos, e podem ser copiadas e reencaminhadas infinitamente.

 Nossas ferramentas sociais não são um melhoramento da sociedade moderna; são um desafio a ela. Uma cultura com gráficas é de um tipo diferente de uma que não as possui. Novas tecnologias  possibilitam novas coisas: em outras palavras, quando novas tecnologias aparecem, coisas antes impossíveis começam a acontecer. Se um número suficiente dessas coisas impossíveis tem importância e ocorre em quantidade, rapidamente, a mudança transforma-se em revolução.

O traço característico das revoluções é que as metas dos revolucionários não podem ser contidas  pela estrutura institucional da sociedade existente. O resultado é que ou os revolucionários são reprimidos, ou algumas dessas instituições são alteradas, substituídas ou destruídas. Estamos claramente testemunhando uma reestruturação do negócio da mídia, mas o sofrimento dela não é único, é profético. Todo negócio é de mídia, porque, seja qual for a área, todos dependem do gerenciamento de informação para dois públicos – os funcionários e o mundo. O aumento, fora das estruturas organizacionais tradicionais, do poder tanto dos indivíduos quanto dos grupos é inédito. Muitas instituições de que dependemos hoje não sobreviverão a essa mudança sem importantes alterações, e quanto mais uma instituição ou indústria baseia-se na informação como seu principal  produto, maior e mais completa será a alteração.

A ligação entre participação simétrica e produção amadora torna este período de mudança extraordinário. Participação simétrica significa que tão logo as pessoas adquirem a capacidade de receber informação, elas adquirem também a capacidade de enviá-la. Possuir uma televisão não lhe dá a capacidade de fazer programas de TV, mas possuir um computador significa que você pode

tanto receber quanto criar muitos tipos de conteúdo, seja com palavra escrita ou som e imagens. A  produção amadora, o resultado de toda essa nova capacidade, significa que hoje a categoria

5. A motivação pessoal vai ao encontro da produção colaborativa

 produção colaborativa, em que pessoas têm de se coordenar umas com as outras para conseguir fazer alguma coisa, é muito mais difícil que o simples compartilhamento, mas os resultados podem ser mais significativos. Novas f erramentas

ermitem a colaboração de grupos grandes, beneficiando-se de motivações não financeiras e admitindo níveis extremamente diversos de contribuição.

Talvez o exemplo mais famoso de colaboração distribuída que temos hoje seja a Wikipédia, a enciclopédia criada de maneira colaborativa que se tornou um dos sites mais visitados do mundo. Jimmy Wales e Larry Sanger fundaram-na em 2001 como uma experiência a partir de sua ideia original, uma enciclopédia on-line gratuita de alta qualidade chama Nupedia. A Nupedia seria escrita, revisada e gerida por especialistas que cederiam seu tempo gratuitamente. Wales tivera contato com trabalhos produzidos de maneira colaborativa ao dirigir a Bomis, uma companhia de internet que ele ajudara a fundar em 1996. O objetivo da Bomis era ajudar usuários (em geral do sexo masculino) a criar e exibir coleções de sites relacionados dedicados a assuntos como famosas seminuas ou carros tunados; era como uma Maxim  organizada por usuários. Ele vira com que rapidez e baixo custo os usuários podiam compartilhar informação entre si, e pensou que esse tipo de criação colaborativa poderia ser aplicado a outros domínios. Esboçou a ideia para a Nupedia, conseguiu investimento da Bomis no início de 2000 e contratou Sanger, um doutorando em filosofia que compartilhava o interesse de Wales por teorias do conhecimento, como funcionário número um. Sanger começou a planejar um processo para a criação de artigos da Nupedia, e após várias semanas de preparação, ele e Wales anunciaram o projeto com uma intrigante pergunta:

Suponhamos que acadêmicos do mundo todo descobrissem a existência de um sério esforço para criar uma enciclopédia on-line em que os resultados não seriam de propriedade dos enciclopedistas, mas livremente distribuíveis … em praticamente qualquer  meio desejado. Com que rapidez essa enciclopédia cresceria?

 Não muito depressa, como se verificou. Nove meses depois desse anúncio, a grande ideia de Wales e Sanger não estava funcionando; se os acadêmicos do mundo todo tinham descoberto a existência da Nupedia, sua reação por certo não havia sido acorrer para ajudar. Nos meses que se seguiram ao anúncio original, a maior parte do esforço fora despendida no recrutamento de um conselho consultivo voluntário e no estabelecimento de normas de política editorial e de um  processo para criação, avaliação, revisão e publicação de artigos. Esse processo, destinado a determinar um padrão mínimo de qualidade, havia também determinado uma taxa máxima de  progresso: lenta. Ao final desse período de gestação, havia menos de vinte artigos prontos e um  punhado de outros em vários estágios do preparo. (Não podemos dizer que eram estágios de

conclusão, pois conclusão era algo em que a Nupedia era visivelmente ruim.)

 publicado envolvia sete passos diferentes. Se um artigo estacionava em qualquer deles – para avaliação, checagem de dados, correção ortográfica, fosse o que fosse –, podia ficar parado indefinidamente. Cada vez mais frustrado com o ritmo lento, e consciente de que o próprio  processo erguera muitas novas barreiras para substituir aquelas que a web removera, Sanger 

sugeriu a Wales uma nova estratégia: usar uma ferramenta chamada wiki para criar o primeiro rascunho de artigos da Nupedia.

O primeiro wiki foi criado em 1995 por Ward Cunningham, um engenheiro de software. (O nome iki foi tomado da palavra havaiana para “rápido”.) Cunningham queria uma maneira de permitir à comunidade dos softwares criar um repositório de conhecimento compartilhado sobre  programação. Ele observou que a maior parte das ferramentas disponíveis para a colaboração  preocupava-se em criar complexos conjuntos de regras e requisitos – só autores designados podiam

criar textos, ao passo que só editores podiam publicá-los, mas não antes que revisores os aprovassem, e assim por diante. Cunningham fez uma suposição diferente e radical: grupos de  pessoas que querem colaborar também tendem a confiar umas nas outras. Se isso fosse verdade, um  pequeno grupo poderia trabalhar em um esforço compartilhado de redação sem precisar de

gerenciamento ou processo formal.

O wiki de Cunningham, o modelo para todos os wikis subsequentes, é um site editável por  usuários. Em cada página de um wiki há um botão em algum lugar no qual se lê “Editar isto”, que  permite ao leitor acrescentar, alterar ou apagar o conteúdo da página. Em um livro ou uma revista, a distinção entre leitor e autor é imposta pelo meio; em um wiki, é possível ir e vir à vontade entre esses dois papéis. (A flexibilidade de papel é um resultado comum da amadorização em massa.) Sempre que um usuário edita alguma coisa em determinada página, o wiki registra a mudança e salva a versão anterior. Assim, cada página wiki é a soma de mudanças acumuladas, com todas as alterações prévias armazenadas como registro histórico. Era uma aposta arriscada, mas o projeto de Cunningham funcionou às mil maravilhas; o primeiro wiki, chamado Portland Pattern Repository, tornou-se uma inestimável coleção de conhecimentos sobre engenharia de software sem exigir supervisão formal nem controles editoriais. Ao pôr o processo nas mãos dos usuários em vez de embuti-lo na ferramenta, o wiki livrou-se da lentidão que costuma caracterizar ambientes de trabalho de estrutura complexa. Vendo esse efeito, outros grupos começaram a adotar wikis.

 No início de 2001, um amigo de Sanger lhe falou sobre wikis, e ele por sua vez apresentou a ideia a Wales. Os dois montaram um wiki experimental no Nupedia como forma de criar rascunhos, o que teve dois efeitos imediatos. Primeiro, ficou muito mais fácil criar versões iniciais de artigos. O segundo efeito, que eles não tinham previsto, foi a pronta e veemente objeção por parte do conselho consultivo da própria Nupedia. O conselho fora recrutado para supervisionar um  processo rigoroso, projetado e dirigido por especialistas, e o wiki ofendia seu senso de missão. Alguns dias depois de lançá-lo, Wales e Sanger tiveram de retirar o wiki nascente do site da  Nupedia para aplacar o conselho. Como agora o wiki precisava de sua própria URL, resolveram

chamá-la de Wikipedia.com, e a Wikipédia nasceu.

Assim que a Wikipédia foi ativada, Sanger enviou uma mensagem para a lista de discussão da  Nupedia, que a essa altura tinha cerca de 2 mil membros, dizendo: “Façam-me um agrado. Vão lá e

acrescentem um artigo. Isso não vai levar mais que cinco ou dez minutos.” A mudança foi imediata e espetacular. Já em suas primeiras semanas de existência a Wikipédia superou a Nupedia em número total de artigos. No fim do ano, com 15 mil artigos e uma taxa de crescimento cada vez

maior, duas coisas ficaram claras: a Wikipédia era viável, e a Nupedia, não.

Vendo esse sucesso, Sanger transferiu-se para o esforço da Wikipédia, abandonando pelo caminho seu título de “editor-chefe” da Nupedia e passando a se dizer “organizador-chefe”. Apesar  da natureza apaziguante de seu novo título, ele conseguiu enfurecer os outros participantes quando disse, em uma mensagem à lista de discussão da Wikipédia: “Reservo-me o direito de suprimir  coisas em caráter permanente – em particular quando elas têm pouco mérito e quando foram  postadas por pessoas cujo principal motivo é evidentemente solapar minha autoridade e, portanto,

no que se refere a mim, prejudicar o projeto.” Ao reivindicar direitos especiais sobre o projeto e igualar essas prerrogativas com o sucesso do projeto, Sanger só agravou o atrito relacionado a seu  papel.

Em parte por causa desses conflitos, e em parte porque o crescimento da Wikipédia não gerou nem exigiu receita, Sanger foi dispensado no final de 2001. Mais tarde, como forma de cimentar  seu status não lucrativo, o projeto Wikipédia foi transferido para Wikipedia.org; a progressão da  Nupedia para a Wikipédia tal como a conhecemos hoje estava completa. O crescimento contínuo

não foi interrompido pela saída de Sanger; a Wikipédia continuou a crescer constantemente em número tanto de artigos quanto de usuários. A versão em língua inglesa superou a marca dos 2 milhões de artigos em setembro de 2007. A Wikipédia em língua inglesa é o único site não comercial na lista dos vinte sites mais visitados dos Estados Unidos.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 57-62)