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O amor como um material de construção renovável

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 75-78)

O santuário xintoísta em Ise, no Japão, ocupa o mesmo local há mais de 1.300 anos. Apesar dessa idade avançada, porém, a Unesco, agência cultural da ONU, recusou-se a incluí-lo em sua lista de sítios históricos. Por quê? Porque o templo é feito de madeira, material que nunca se destacou por   preservar a integridade estrutural numa escala de milênios, então ele não pode ter 1.300 anos de

idade. Os sacerdotes imbes, que cuidam do santuário, também sabem disso, mas eles têm uma solução. Periodicamente, demolem o templo e, em seguida, usando madeira cortada da mesma floresta de que o original foi construído, o reconstroem em um terreno adjacente segundo o projeto

original. Eles fazem isso de duas em duas décadas, e já o fizeram 61 vezes consecutivas. (A  próxima reconstrução será em 2013.) Como a finalidade do santuário é em parte ressaltar a diferença entre o espaço sagrado e o comum, do ponto de vista dos sacerdotes o santuário tem 1.300 anos de idade, feito de materiais renováveis. Esse argumento não convenceu a Unesco; os lugares que ela lista gozam da solidez da edificação, não do processo. Um castelo em ruínas que  passou quinhentos anos desocupado preenche os requisitos; um santuário reconstruído a cada

geração durante mais de mil anos, não.

A Wikipédia é um santuário xintoísta; ela existe não como um edifício, mas como um ato de amor. Tal como o santuário em Ise, ela existe porque um número suficiente de pessoas a ama e, mais importante, amam-se umas às outras no âmbito dela. Isso não significa que as pessoas que a constroem concordam em tudo, mas o amor não exclui o ato de discutir (como você mesmo com certeza confirmará a partir de sua experiência). O que o amor faz pela Wikipédia é fornecer a motivação tanto para seu aperfeiçoamento quanto para sua defesa. Se a companhia que faz a ncyclopaedia Britannica  fechasse as portas amanhã, seu principal produto iria decair pouco a  pouco, à medida que novos conhecimentos surgissem sem ser incluídos em edições subsequentes. Esse conceito, por vezes chamado de meia-vida do conhecimento (uma comparação metafórica com o decaimento radioativo), deixaria a Britannica  obsoleta com o passar dos anos. Se todas as  pessoas que amam a Wikipédia perdessem o interesse ao mesmo tempo, por outro lado, ela desapareceria de maneira quase instantânea. Os vândalos e os grupos de interesses especiais que lutam constantemente para alterar artigos só fracassam porque as pessoas se importam com a Wikipédia, tanto com seus artigos individuais quanto com ela como um todo, e porque a Wikipédia é uma ferramenta que lhes fornece as armas para combater esses grupos. Essas armas são empunhadas apenas pelas pessoas dispostas a lutar. Caso essa disposição desaparecesse, os artigos mais contenciosos da Wikipédia, os que tratam do aborto, da evolução, do islã, desapareceriam em uma questão de horas, e é improvável que todo o empreendimento sobrevivesse uma semana.

 Não costumamos falar sobre amor quando tentamos descrever o mundo público, porque parece  piegas e íntimo demais. O que aconteceu, porém, e ainda está acontecendo em nosso momento histórico, é que o amor se tornou muito menos piegas e muito menos íntimo. Ele tem uma meia-vida também, assim como um alcance, e estamos acostumados a que ambos sejam pequenos. Podemos comover as pessoas que amamos, mas a longevidade e a distância social do amor são ambas limitadas. Ou eram – agora podemos fazer coisas para estranhos que fazem coisas para nós a um custo baixo o bastante para tornar esse tipo de comportamento atraente, e esses efeitos podem  persistir muito além de nossa contribuição original. Nossas ferramentas sociais estão transformando o amor em um material de construção renovável. Quando se importam o suficiente, as pessoas podem reunir-se e realizar coisas de um alcance e uma longevidade que antes eram impossíveis; podem fazer grandes coisas por amor.

6. Ação coletiva e desafios institucionais

 ação coletiva, em que um grupo age como um todo, é ainda mais complexa que a produção colaborativa, mas também aqui novas ferramentas dão vida a novas formas de ação. Isso por sua vez desafia instituições existentes, erodindo o monopólio institucional da coordenação de grande escala .

 No início de 2002, o Boston Globe publicou uma matéria de duas partes detalhando a história do  padre católico John Geoghan. Geoghan havia trabalhado em várias paróquias da arquidiocese de

Boston desde os anos 1960 e durante esse tempo acariciara ou violara mais de cem meninos. Os repórteres do Globe examinaram documentos que a Igreja havia sido obrigada a entregar sobre o caso, que revelavam que as acusações contra ele remontavam à década de 1960. A reação da Igreja tinha sido transferi-lo de paróquia em paróquia, por vezes com períodos de terapia entre uma e outra. Se esses tratamentos ajudaram, seu efeito foi temporário; os abusos continuaram ao longo de 35 anos. O cardeal Bernard F. Law, então arcebispo da diocese de Boston, tinha conhecimento do  problema de Geoghan desde 1984, mas manteve o padrão de transferências periódicas; Geoghan só

foi afastado do sacerdócio em 1998.

A matéria do Globe  desencadeou uma tempestade de controvérsias no seio de uma chocada comunidade católica leiga. Algumas semanas depois da publicação dos artigos, um médico chamado James Muller promoveu uma reunião com pessoas determinadas a transformar o choque e a ira em algum tipo de mudança produtiva. O grupo encontrou-se pela primeira vez em uma gélida noite de janeiro no porão de uma igreja de Wellesley, um subúrbio de Boston; trinta pessoas apareceram. O impulso do encontro original era reagir de alguma maneira ao horror do abuso sacerdotal e do fracasso dos bispos em lidar com ele, mas, analisando-se o assunto naquela noite, foi decidida a adoção de uma estratégia mais coordenada de ativismo, e assim nasceu um grupo chamado Voice of the Faithful (VOTF).

 Não existia nada de extraordinariamente novo na fundação do VOTF. Havia muito tempo que  pequenos grupos de cidadãos interessados reuniam-se em porões de igrejas e bibliotecas públicas, e Muller, o fundador, possuía experiência com organizações, tendo ajudado a fundar o International Physicians for the Prevention of Nuclear War nos anos 1980. O crescimento do VOTF, porém, foi novo. Depois de apenas dois meses de existência, suas reuniões atraíam grandes multidões. Mais tarde, Muller escreveu sobre uma reunião realizada em março: “Não consegui estacionar o carro a menos de quatro quadras de distância, pois mais de quinhentas pessoas lotaram nossas pequenas salas de reuniões.” No verão de 2002, quando realizou sua primeira convenção, o VOTF já contava com 25 mil membros, dos quais 4 mil viajaram até Boston para comparecer. O crescimento da organização foi também internacional: ela ganhou membros em mais de vinte países durante seu  primeiro ano de existência. É difícil qualificar a velocidade desse ritmo de crescimento – passar 

de trinta pessoas em um porão de igreja para 25 mil é crescer quase mil vezes. Fazer isso em meio ano significou duplicar o tamanho da organização a cada quinzena. Grupos não são capazes de sustentar um crescimento rápido assim, ou melhor, não o faziam até que as barreiras para isso

fossem removidas.

O VOTF adotou um slogan – “Conserve a fé, mude a Igreja” –, que deixava claro que a mera expressão de indignação não seria suficiente. Os membros queriam mudança estrutural. A ousadia de suas exigências deixou a Igreja sem saber como reagir. Em abril, quando ficou patente que o VOTF continuava a arrebanhar membros, o cardeal Law pediu ao bispo Walter J. Edyvean, um de seus assistentes, que marcasse uma reunião com o grupo. Ela não transcorreu bem. Durante o encontro, Edyvean disse que ele e Law tinham “questões” com o VOTF e admitiu, após constante questionamento, ter tentado impedir a realização de reuniões do grupo em dependências da Igreja. Essa oposição tão completa estarreceu os membros do VOTF, mas, no final do encontro, em espírito de civilidade, foi concordado que se emitiria uma declaração conjunta afirmando que aquele tinha sido um encontro produtivo. Foi o máximo de cordialidade entre os dois grupos.

Após o encontro, a Igreja fez pronunciamentos públicos. Edyvean disse que nenhuma paróquia deveria permitir reuniões do VOTF em dependências da Igreja, e que toda organização leiga válida devia operar “exclusivamente no âmbito da paróquia em que foi estabelecida” e “ser presidida  pelo padre dessa paróquia”. A posição da Igreja era de que até a comunidade leiga estava contida na sua estrutura hierárquica; não deveria haver conversa entre leigos de diferentes paróquias. À medida que o ano foi chegando ao fim e o escândalo não, houve apelos cada vez mais amplos e  públicos para que Law renunciasse. Law recusou-se a considerar tanto uma conversa com o VOTF

quanto a renúncia da arquidiocese, mas suas objeções provaram-se ineficazes nos dois aspectos.  No dia 26 de novembro, quase um ano depois de inabaláveis recusas, Law encontrou-se pela  primeira vez com o VOTF. A conversa foi cordial, mas inconclusiva; ambos os lados repetiram que desejavam um resultado positivo para o diálogo. O que ninguém sabia, exceto talvez Law, era que esse primeiro encontro seria também o último dele. O cardeal viajou a Roma para oferecer sua renúncia ao papa João Paulo II, que a aceitou no dia 13 de dezembro.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 75-78)