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Todo mundo é um veículo de comunicação

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 33-35)

Do compartilhamento à cooperação e à ação coletiva

3. Todo mundo é um veículo de comunicação

 Nossas ferramentas sociais removem obstáculos mais antigos à expressão pública, eliminando assim os gargalos que

caracterizavam os meios de comunicação de massa. O resultado é a amadorização em massa de esforços antes reservados a rofissionais da mídia.

Meu tio Howard era um jornalista de cidade pequena, publicando o jornal local de Richmond, Missouri (5 mil habitantes). O jornal, fundado por meu avô, era o negócio da família, e tinta corria em suas veias. Ainda me lembro dele bradando a respeito da ascensão do USA Today ; ele o criticava como “TV no papel” e o apontava como mais uma prova do emburrecimento da cultura americana, mas também compreendia o desafio que o grande jornal estabelecia, com sua impressão em cores e distribuição nacional. O Richmond Daily News e o USA Today   estavam no mesmo negócio; apesar da diferença de escala e alcance, Howard percebeu de imediato o que o USA Today pretendia.

A despeito da obsessão do meu tio, o USA Today acabou não sendo nem de longe a ameaça que o pessoal dos velhos jornais temia. Ele tomou uma fatia do mercado de outros jornais, mas o efeito não foi catastrófico. O catastrófico foi uma mudança menos visível, porém mais significativa, que á ganhava impulso quando o USA Today   foi lançado. A principal ameaça ao  Richmond Daily

ews, e de fato a todos os jornais, pequenos e grandes, não era a concorrência de outros jornais, mas mudanças radicais no ecossistema global da informação. A ideia de que alguém podia fabricar  impressoras de quatro cores que funcionassem 24 horas por dia era de fácil compreensão. A ideia de que a transmissão de notícias por meio de papel poderia se tornar uma ideia ruim, que todas aquelas imensas e barulhentas impressoras poderiam ser comparadas a motores a vapor nos tempos da combustão interna, era quase impenetrável. Howard podia imaginar alguém fazendo melhor o que ele fazia. Não podia imaginar alguém tornando o que ele fazia obsoleto.

Muitas pessoas na indústria jornalística, as mesmas que temiam os efeitos de uma concorrência como a do USA Today , não perceberam a significância da internet. Para pessoas com uma atitude  profissional, é difícil compreender como algo que não é produzido profissionalmente poderia

afetá-las – a internet não só não é um jornal, como também não é uma empresa, nem sequer uma instituição. Havia uma espécie de parcialidade narcísica na profissão; as únicas ameaças que os

ornalistas tendiam a levar a sério eram as representadas por outros meios de comunicação  profissionais, fossem jornais, canais de TV ou estações de rádio. Isso os levou a se defender contra a coisa errada quando os amadores começaram a produzir material por si sós. Mesmo quando sites como o eBay e o Craigslist já sugavam as receitas dos anúncios que sustentavam os jornais –  ofertas de empregos, anúncios classificados, imóveis – e blogs já permitiam que pessoas como gnarlykitty escrevessem para o planeta inteiro de graça, os executivos dos jornais do mundo todo demoraram a compreender a mudança, e demoraram ainda mais para reagir. Como isso pôde acontecer? Como pôde a indústria jornalística deixar escapar um desafio tão óbvio e grave para seu negócio? A resposta é o reverso da obsessão de Howard com o USA Today e tem a ver com a

natureza da autodefinição (e ocasional autoenganação) profissional.

Uma profissão existe para resolver um problema difícil que requeira algum tipo de especialização. Dirigir um carro de corrida requer treinamento especial – pilotos de corrida são  profissionais. Dirigir um carro comum, porém, não requer que o motorista pertença a determinada  profissão, porque é fácil o bastante para estar ao alcance da maioria dos adultos com um mínimo de treinamento. A maioria das profissões existe porque há um recurso escasso que requer  administração constante: bibliotecários são responsáveis pela organização de livros nas estantes, executivos de jornal são responsáveis pela decisão do que deve sair na primeira página. Nesses casos, a própria escassez do recurso cria a necessidade de uma classe profissional – há poucos  bibliotecários, mas muitos leitores, há poucos canais, mas muitos espectadores. Os profissionais

tornam-se porteiros [ gatekeepers]: ao mesmo tempo fornecendo e controlando acesso a informação, entretenimento, comunicação ou outros bens efêmeros.

Rotular algo como profissão significa definir as maneiras pelas quais aquilo é mais que um mero trabalho. No caso dos jornais, o comportamento profissional é guiado tanto pelo imperativo comercial quanto por um conjunto adicional de normas sobre o que são os jornais, como devem ser  guarnecidos de funcionários e administrados, o que constitui bom jornalismo e assim por diante. Essas normas são impostas não pelos clientes, mas por outros profissionais do mesmo ramo. A chave para qualquer profissão é a relação de seus membros uns com os outros. Em uma profissão, os membros são guiados apenas em parte pelo serviço ao público. Em seu magistral Bureaucracy, o sociólogo da UCLA James Q. Wilson propôs esta definição: “Um profissional é alguém que recebe importantes recompensas ocupacionais de um grupo de referência em que só são admitidas  pessoas que receberam uma educação formal especializada e aceitaram um código de conduta apropriada definido pelo grupo.” É uma definição complexa, mas as duas ideias principais aplicam-se a editores de jornal (bem como a jornalistas, advogados e contadores): um profissional aprende coisas de uma maneira que o diferencia da maior parte do povo e, ao decidir como fazer  seu trabalho, presta tanta atenção (ou mais) ao juízo de seus pares quanto ao dos clientes.

Uma profissão torna-se, para seus membros, uma maneira de compreender o mundo. Os  profissionais veem o mundo através de uma lente criada por outros membros de sua profissão; para os jornalistas, as recompensas de um Prêmio Pulitzer referem-se sobretudo ao reconhecimento de outros jornalistas.

Em geral, a consistência interna do juízo profissional é uma boa coisa – não queremos apenas  padrões elevados de educação e competência, queremos que eles sejam criados e impostos por 

outros membros da mesma profissão, uma estrutura que é quase a definição de profissionalismo. Por vezes, contudo, a atitude profissional pode se tornar uma desvantagem, impedindo as próprias  pessoas que mais têm em jogo – os profissionais – de compreender importantes mudanças na

estrutura de sua profissão. Em particular, quando uma profissão foi criada em função de alguma escassez, como no caso dos bibliotecários ou dos programadores de televisão, os profissionais costumam ser os últimos a perceber quando a escassez desaparece. É mais fácil compreender a ameaça da concorrência que a da obsolescência.

Em qualquer profissão, especialmente uma tão antiga que ninguém se lembra do tempo em que não existia, os membros tendem a confundir soluções provisórias para problemas particulares com verdades absolutas sobre o mundo. Isso se aplica aos jornais de hoje e aos meios de comunicação em geral. As indústrias da mídia foram as primeiras e as mais afetadas pela queda brusca que os

custos da comunicação sofreram recentemente. Antes, era difícil levar palavras, imagens e sons do criador para o consumidor, e a maioria das empresas de comunicação envolve um gerenciamento dispendioso e complexo desse problema de canalização, seja dirigindo uma gráfica ou uma gravadora. Em troca da ajuda que prestam na superação desse problema, as empresas de comunicação conseguiram exercer considerável controle sobre a mídia e extrair consideráveis receitas do público. Como a viabilidade comercial da maioria das empresas de comunicação envolve o fornecimento dessas soluções, a preservação dos problemas originais tornou-se um imperativo econômico. Agora, porém, os problemas de produção, reprodução e distribuição são muito menos sérios. Em consequência, o controle sobre a mídia está menos completamente nas mãos dos profissionais.

 No tocante às novas capacidades, a copiabilidade perfeita e ilimitada é algo extraordinário, e agora essa capacidade existe nas mãos de qualquer pessoa que tenha um computador. Os meios digitais de distribuição de palavras e imagens roubaram dos jornais a unidade que antes possuíam, revelando o objeto físico do jornal como uma solução meramente provisória: agora cada artigo é uma seção à parte. A questão de importância permanente é como a sociedade será informada das notícias do dia. O jornal costumava ser uma resposta bastante boa, mas, como todas as respostas semelhantes, ela dependia de quais outras soluções estavam disponíveis. A televisão e o rádio obviamente mudaram a paisagem em que o jornal operava, mas mesmo depois disso a mídia impressa detinha o monopólio da palavra escrita – até que surgiu a web. Ela não introduziu um novo concorrente no antigo ecossistema, como o USA Today fizera. Ela criou um novo ecossistema.

Durante muito tempo encaramos o jornal como um objeto coerente por ter se mantido estável por  tanto tempo, mas não há nenhuma conexão lógica entre seus muitos elementos: relatos do Iraque, resultados esportivos e classificados de tudo quanto há, de sapatos a imóveis – tudo isso existe lado a lado em um pacote idiossincrático. O que dá forma a um jornal é basicamente o custo do  papel, da tinta e da distribuição; um jornal é qualquer grupo de itens impressos que um editor 

consiga reunir e entregar de maneira lucrativa. O corolário também é verdadeiro: o que não entra em um jornal é qualquer coisa cara demais para ser impressa e entregue. O velho negócio do jornal  – notícias do mundo misturadas com horóscopos e anúncios de pizzaria – chegou ao fim. O futuro apresentado pela internet é a amadorização em massa da capacidade de publicação e uma mudança de “Por que publicar isto?” para “Por que não?”.

Os dois imperativos organizacionais básicos – adquira recursos, depois os utilize para perseguir  algum objetivo ou projeto – impõem a toda organização o dilema institucional, quer seu objetivo seja salvar almas ou vender sabão. A pergunta que a amadorização em massa faz à mídia tradicional é: “O que acontece quando os custos de reprodução e distribuição desaparecem? O que acontece quando não há mais nada exclusivo na atividade de se publicar, porque os próprios usuários podem fazer isso?” Estamos começando a ver a resposta a essa pergunta.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 33-35)