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Blogs e amadorização em massa

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 35-38)

Pouco depois de reeleito em 2002, Trent Lott, o senador sênior pelo estado do Mississippi e então líder da maioria, fez um discurso no aniversário de cem anos de Strom Thurmond. Senador 

republicano pela Carolina do Sul, Thurmond aposentara-se havia pouco tempo, após uma longa carreira política que incluía uma candidatura à presidência em 1948 com uma plataforma abertamente segregacionista. Na festa do centenário do ex-senador, Lott evocou e louvou a campanha presidencial de cinquenta anos antes e lembrou o apoio que o Mississippi lhe dera: “Quero dizer isto sobre o meu estado: quando Strom Thurmond concorreu à presidência, nós votamos nele. Orgulhamo-nos disso. E, se o resto do país tivesse seguido nosso exemplo, também não teríamos tido todos esses problemas ao longo de todos esses anos.” Duas semanas mais tarde, tendo sido repreendido pelo presidente Bush, por políticos e pela imprensa tanto de direita quanto de esquerda por esse comentário, Lott anunciou que não procuraria continuar como líder da maioria no novo Congresso.

Essa teria sido uma história clássica de cobertura negativa da imprensa alterando uma carreira  política – a não ser pelo fato de que, na verdade, a imprensa não cobriu a história, pelo menos não de início. Na realidade, a história quase passou completamente despercebida dela. Isto não quer  dizer que a imprensa a tenha ignorado intencionalmente, ou mesmo suprimido de maneira ativa; vários repórteres da imprensa noticiosa nacional ouviram a fala de Lott, mas seu comentário simplesmente não se encaixava no paradigma tradicional das notícias. Como o aniversário de Thurmond foi coberto como uma homenagem, e não como um evento político, o conteúdo  propriamente dito da noite foi considerado de antemão relativamente sem importância. Uma suposição relacionada é que uma notícia que não é importante um dia também não é importante no dia seguinte, a menos que alguma coisa tenha mudado. A festa de aniversário de Thurmond aconteceu em uma noite de quinta-feira, e a imprensa deu aos comentários de Lott muito pouca atenção na sexta-feira. Não ter escrito sobre isso na sexta-feira, por sua vez, tornou-se uma razão  para não o fazer no sábado, porque, se não havia notícia na sexta-feira, haveria muito menos no

sábado.

William O’Keefe, do Washington Post , um dos poucos repórteres a julgar o comentário de Lott importante, explica assim o dilema: “Seria preciso ter havido uma reação” que a rede pudesse transmitir juntamente com o comentário de Lott, e “não tínhamos registro de nenhuma reação” disponível na noite da festa, quando a notícia ainda estava fresca. Na segunda noite, acrescenta ele, “você está lidando com o ciclo noticioso: 24 horas depois, isso é notícia velha”. Como uma mensagem atrasada para um amigo, a falta de reação inicial teria tornado obrigatório, em qualquer  versão posterior, um pedido de desculpas por não se ter escrito antes.

Dada essa supressão espontânea – histórias velhas nunca são revistas sem que surja um novo ângulo –, o que manteve o caso vivo não foi a imprensa, mas blogueiros liberais e conservadores,  para os quais lembranças afetuosas da segregação racial eram inadmissíveis, fossem ou não

mensagens de felicitação a um aniversariante, e que não tinham nenhuma noção do funcionamento do ciclo noticioso. No fim de semana que se seguiu ao comentário de Lott, blogs com milhões de leitores não se contentaram em relatá-lo, mas começaram a opinar a respeito. Entre os autores desses textos estavam alguns conservadores cultos, como Glenn Reynolds, do blog Instapundit, que escreveu: “Mas dizer, como fez Lott, que o país estaria em melhor situação se Thurmond tivesse vencido em 1948 é, bem, é prova de que Lott não deveria ser líder da maioria para os republicanos, para início de conversa. E isso só para início de conversa. É um sentimento tão  pernicioso e maluco como desejar que Gus Hall [um perene candidato comunista à presidência]

Outros começaram a ir mais fundo, causando dano ainda maior à imagem de Lott. Depois que a história surgiu, Ed Sebesta, que mantém um banco de dados de materiais relacionados à nostalgia da Confederação dos Estados Unidos, forneceu a blogueiros informações sobre Lott, incluindo uma entrevista do início dos anos 1980 no Southern Partisan, uma revista neoconfederada. A simples história da festa de aniversário começou a parecer parte de um padrão de dizer, há décadas, uma coisa ao grande público e outra a seus partidários.

Como o caso do telefone perdido de Ivanna (no Capítulo 1), a história do banco de dados de Sebesta envolve uma ligação entre esforço individual e atenção de grupo. Assim como Evan Guttman beneficiou-se do conhecimento especializado dos seus leitores, os blogueiros que  postavam sobre Lott se beneficiaram do profundo conhecimento de Sebesta sobre o passado racista

dos Estados Unidos, em particular sobre o histórico de louvores de Lott a esse passado. Um fato de especial relevância foi que os blogueiros não precisaram encontrar Sebesta – ele os encontrou. Antes de nossa atual geração de ferramentas de coordenação, um fissurado informal em política como Sebesta e comentaristas amadores como os blogueiros teriam tido dificuldade em até mesmo descobrir que possuíam interesses mútuos, mais ainda em conseguir fazer alguma coisa com essa informação. Agora, no entanto, o custo de encontrar pessoas de pensamentos afins caiu e, o que é mais importante, se desprofissionalizou.

Como os blogs mantiveram a história viva, sobretudo entre republicanos libertários, Lott acabou decidindo reagir. O momento fatídico veio cinco dias depois do discurso, quando ele divulgou um fraco pedido de desculpas por sua observação anterior, caracterizando-a como uma “escolha infeliz de palavras”. A declaração tinha a intenção evidente de pôr uma pedra sobre o assunto, mas Lott não havia levado em conta a nova dinâmica da cobertura da imprensa. Depois que ele se desculpou, os veículos de comunicação tiveram ensejo para cobrir as desculpas como fato noticioso, citando o discurso original como pano de fundo. Apenas três veículos de comunicação haviam coberto o comentário original, mas uma dúzia deles cobriu o pedido de desculpas no dia em que foi feito, e 21 o fizeram no dia seguinte. O ciclo noticioso tradicional simplesmente não se aplicou nessa situação; o caso de repente passara de “algo que não merece cobertura” para “furo”.

Até recentemente, “notícia” significava duas coisas diferentes: acontecimentos dignos de nota e acontecimentos cobertos pela imprensa. Naquele ambiente, o que identificava alguma coisa como notícia era o julgamento profissional. A posição do veículo de comunicação (a própria expressão atesta a escassez de instituições que eram capazes de publicar informação) era semelhante à do árbitro hipotético que diz: “Alguns lances são válidos, outros são inválidos, mas nada é coisa nenhuma até que eu diga o que é.” Esse sistema sempre provocou resmungos, em função de que algumas das coisas que a imprensa cobria não mereciam ser notícia (políticos em inaugurações) e que acontecimentos dignos de nota não recebiam a devida atenção (insira seu assunto favorito aqui). Apesar das queixas, porém, a ligação básica entre o que era digno de nota e o que era  publicado se mantinha porque não parecia haver alternativa. O que o caso de Lott nos mostrou é que agora essa ligação está rompida. Doravante uma notícia pode penetrar na consciência pública sem a ação da imprensa tradicional. Na verdade, a mídia jornalística pode acabar cobrindo a história porque ela penetrou na consciência pública por outros meios.

Há várias razões para essa mudança. A estruturação profissional da visão de mundo, tal como exemplificada pelas decisões de tratar o comentário de Lott como uma história de festa de aniversário, não se estendia aos amadores sob coordenação frouxa que publicavam por conta

 própria. A decisão de não divulgar o elogio de Trent Lott a uma campanha política racista demonstra uma uniformidade potencial na atitude da imprensa. Em um mundo no qual uma dúzia de editores, todos pertencendo à mesma classe profissional, pode decidir publicar ou abafar um evento nacional, uma informação que potencialmente seria de interesse geral pode deixar de ser   publicada, não devido a uma conspiração, mas porque os editores têm tendências profissionais

associadas aos desafios semelhantes que encontram e às ferramentas semelhantes que usam para abordá-los. A amadorização em massa da publicação anula as limitações inerentes à existência de um número restrito de veículos tradicionais de comunicação.

À medida que reconheceram o crescente volume de conteúdo publicado de maneira independente na internet, muitas companhias de mídia compreenderam corretamente que a credibilidade de cada veículo de comunicação era menor que a de veículos estabelecidos como o New York Times. O que não assimilaram, porém, foi que a facilidade de se publicar significa que há um número muito maior de veículos. A mesma ideia, publicada em dezenas ou centenas de lugares, pode ter um efeito amplificador mais importante que o veredito de um número menor de meios de comunicação  profissionais. (Isto não significa que a mera repetição torne uma ideia correta; a publicação amadora baseia-se mais ainda que a tradicional em argumentação corretiva.) A mudança não consiste na substituição de um tipo de instituição noticiosa por outro; está na definição de notícia: esta deixa de ser uma prerrogativa institucional para ser parte de um ecossistema de comunicações, ocupado por uma mistura de organizações formais, coletivos informais e indivíduos.

É tentador considerar os blogueiros que escreveram sobre Trent Lott ou as pessoas que fotografaram o tsunami no oceano Índico como uma nova safra de jornalistas. O rótulo tem óbvio apelo conceitual. O problema, porém, é que profissionalização em massa é um oximoro, já que uma classe profissional implica uma função especializada, testes mínimos de competência e uma minoria de membros. Nenhuma dessas condições está presente nos blogs políticos, no compartilhamento de fotos ou em várias outras ferramentas de autopublicação. Os blogs individuais não são apenas sites alternativos de publicação; eles são alternativas à própria publicação enquanto atividade própria dos editores, uma classe minoritária e profissional. Da mesma maneira que você não precisa ser um motorista profissional para dirigir, não precisa mais ser um editor   profissional para publicar. A amadorização em massa é um resultado da difusão radical de

capacidades expressivas, e o precedente mais óbvio foi aquele que deu origem ao mundo moderno: a difusão da imprensa cinco séculos atrás.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 35-38)