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Ferramentas comuns, efeitos extraordinários

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 83-87)

ressaltar que antes do e-mail tínhamos poucas ferramentas para a comunicação grupal, e nenhuma delas era muito boa. Que vantagens o e-mail apresenta em relação às demais tentativas de comunicação de “muitos para muitos”? Para começar, o preço. E-mails para o outro lado do oceano não custam mais que e-mails para o quarteirão vizinho, e um e-mail para dez pessoas não custa mais do que para uma só. Com ele, ter uma conversa longa, duradoura e distanciada geograficamente não acarreta nenhuma despesa. A entrega do e-mail é quase instantânea, diferentemente do correio comum, mas não exige que remetente e destinatário estejam sincronizados entre si, como ocorre com o telefone. Essa assincronia reduz os custos transacionais  para a comunicação grupal da mesma maneira como o modelo econômico do e-mail reduz os custos

financeiros. Essas vantagens ajudam a explicar o incrível sucesso do e-mail para conversas em grupo, se comparado a todas as tentativas anteriores.

Essas características não são de fato vantagens do e-mail em si. Os primeiros programas de e- mail, escritos na década de 1970, eram ferramentas de incrível simplicidade, mas as vantagens de custo e assincronia já existiam. Elas estavam incorporadas na rede em que o e-mail foi construído: a internet. A internet foi a primeira grande rede de comunicação a fazer da comunicação grupal  parte inerente de seu repertório. A lógica básica da internet, chamada “comunicação ponta a  ponta”, diz que ela própria nada mais é que um veículo para mover informação de um lado para outro – cabe aos computadores que a enviam e recebem lhe dar sentido. Enquanto a rede telefônica foi planejada para a transmissão de voz (e a companhia telefônica travou árduas batalhas legais  para impedir que ela fosse usada para qualquer outro fim), a internet não sabe para que está sendo usada. Esse fato tem muitas ramificações, mas duas das mais significativas são as comunicações de “muitos para muitos” a um custo quase nulo e a flexibilidade que permite às pessoas projetar e testar novas ferramentas de comunicação sem ter de pedir permissão a ninguém. O mais importante desses experimentos foi a web. Criada no início dos anos 1990 como esforço de pesquisa por sir  Tim Berners-Lee (nomeado cavaleiro, na verdade, por causa dessa invenção), a web tornou-se  parte essencial da vida moderna de maneira tão rápida precisamente devido a sua flexibilidade,

sendo um ambiente aberto a que pessoas experimentem coisas novas.

As ferramentas de comunicação de ampla adoção naquela década são as primeiras a se adequar   bem a redes sociais humanas e, como são facilmente modificáveis, podem ter sua adequação

melhorada com o tempo. Em vez de limitar nossas comunicações a ferramentas de “um para um” e “um para muitos”, que sempre se adaptaram mal à vida social, temos agora ferramentas de “muitos  para muitos” que sustentam e aceleram a cooperação e a ação.

E as possibilidades para a organização global proporcionadas por essas ferramentas continuam a crescer. Um desafio mais recente à Igreja católica veio nos calcanhares das revelações de Boston: em 2006, a BBC transmitiu um documentário, Sex Crimes and the Vatican, sobre a maneira como a Igreja lida com os casos de abuso sexual cometido por padres. Pouco depois, o canal de TV italiano RAI adquiriu os direitos para transmitir o vídeo, mas membros do partido do governo, a Igreja e diretores do canal opuseram-se à exibição. Acreditando que o documentário merecia ser  mais conhecido na Itália, um grupo de blogueiros que operavam no Bispensiero.it resolveu se encarregar disso. Depois de legendar o documentário de quarenta minutos em italiano, eles o  postaram em um site que hospeda vídeos, no qual foi visto mais de 1 milhão de vezes. Avvenire, o ornal da Conferência de Bispos da Itália, atacou o vídeo como calunioso, mas, depois que ele ficou disponível na Itália pela web, o assunto estava de fato decidido: a RAI levou sua versão ao ar 

no início de junho, vários dias depois que o Bispensiero a obrigou a isso. O primeiro desafio significativo que a comunidade leiga recém-organizada lançou para a Igreja não foi uma anomalia –  foi o início de uma era. A capacidade d0 VOTF de usar o artigo do  Boston Globe como ponto de união para a ação grupal foi o primeiro de muitos eventos semelhantes que a Igreja virá a enfrentar  nos próximos anos.

Uma maneira de pensar sobre a mudança na capacidade dos grupos de se formar e agir é usar  uma analogia com a disseminação de doenças. O modelo clássico para a disseminação de doenças considera três variáveis – probabilidade de infecção, probabilidade de contato entre duas pessoas quaisquer e tamanho total da população. Se qualquer uma dessas variáveis aumenta, a disseminação geral da doença aumenta também. Esse modelo também se aplica bem à difusão de fofoca e a outras comunicações boca a boca. O que aconteceu na arquidiocese de Boston entre 1992 e 2002 foi que tanto o tamanho do público quanto a facilidade de contato aumentaram enormemente. O resultado foi que a disseminação da informação e seu valor como força coordenadora também aumentaram muito. (Na verdade, grande parte do mundo da publicidade passou os últimos anos investindo em “marketing viral” baseado exatamente nessa analogia.) O que a ascensão de novas e poderosas organizações leigas nos mostra é que nos casos certos as pessoas estão dispostas e até ávidas por  unir-se e influenciar o mundo. Motivação, energia e talento para a ação estão todos presentes nesses tipos de grupo – o que não existia até recentemente era a capacidade de se coordenar com facilidade.

Vistas sob essa luz, as ferramentas sociais não criam ação coletiva – apenas removem os obstáculos a ela. Esses obstáculos, contudo, eram tão consideráveis e onipresentes que, à medida que vêm sendo removidos, o mundo tem se tornado um lugar diferente. É por isso que muitas das mudanças significativas se baseiam não nos lançamentos mais recentes e sofisticados da tecnologia, mas em ferramentas simples e fáceis de usar como o e-mail, os celulares e os sites de internet,  porque essas são ferramentas a que a maior parte das pessoas tem acesso e, sobretudo, que podem

ser usadas na vida cotidiana sem dificuldade. A revolução não acontece quando a sociedade adota novas tecnologias – acontece quando a sociedade adota novos comportamentos.

7. Cada vez mais depressa

 medida que mais pessoas adotam ferramentas sociais simples, e que estas permitem comunicação cada vez mais rápida, a velocidade da ação grupal também aumenta, e assim como mais é diferente, mais depressa é diferente .

Ação coletiva é diferente da ação individual – é mais difícil desencadeá-la e, quando em curso, também é mais difícil detê-la. Nas palavras do juiz Richard Posner: “As conspirações são punidas à parte de atos criminosos perpetrados por um só indivíduo, e muitas vezes com a mesma severidade ainda que a ação tenha fracassado, porque um grupo que possui um objetivo ilegal é mais perigoso do que um indivíduo que tem o mesmo objetivo.” Isso não se aplica apenas ao intento criminoso. Os grupos são capazes de exercer uma força diferente da que está ao alcance dos indivíduos, e quando essa força se volta para uma instituição existente, eles criam um tipo diferente de ameaça.

Para compreender a diferença, considere os eventos de 1989 em Leipzig, na Alemanha Oriental.  No início daquele ano, um punhado de cidadãos da cidade começou a protestar contra a República

Democrática Alemã (RDA), muitas vezes encenando esses protestos durante outro evento – um festival de música na rua, uma feira –, de modo a reunir um grande número de pessoas sem despertar suspeitas. A princípio os protestos eram pequenos – em janeiro, quinhentas pessoas compareceram, e o governo prendeu cinquenta delas. Mas isso não deteve os manifestantes. À medida que o ano avançou, os protestos tornaram-se mais regulares, ocorrendo todas as segundas- feiras. Com a sucessão de protestos, mais espectadores percebiam que não havia qualquer gesto sistemático do governo para impedi-los. Em consequência, a cada nova segunda-feira mais pessoas aderiam, o que por sua vez estimulava ainda mais cidadãos.

 No início as passeatas eram pequenas demais para o governo dispersá-las sem parecer histérico, e a cada semana cresciam só um pouquinho. Do ponto de vista do governo, uma pequena passeata  parecia insignificante demais para ser reprimida, e o mesmo valia para outra ligeiramente maior na semana seguinte. Só em setembro Erich Honecker instruiu os governos locais a “cortar essas atividades inimigas pela raiz” e “não permitir que tivessem uma base ampla”. Mas então já era tarde demais; as raízes estavam bem profundas. O que Honecker não teria como saber era que a “base ampla” era medida não pelo número de participantes, mas pelo de pessoas que compreendiam que os protestos não estavam sendo punidos. A historiadora Susanne Lohmann chama os protestos de Leipzig de “informação em cascata”. Para cada cidadão de Leipzig havia um limite a partir do qual poderia aderir a um protesto. Toda semana que a passeata acontecia sem repressão fornecia mais indícios de que as manifestações proporcionavam um meio de expressar a insatisfação; a cada passeata bem-sucedida, mais pessoas sentiam o medo diminuir.

Os militares costumam falar de “consciência compartilhada”, que é a capacidade que muitas  pessoas e grupos diferentes têm de compreender uma situação, e de compreender quem mais tem a

mesma compreensão. Se vejo um incêndio começar, e vejo que você também está vendo isso,  podemos coordenar nossas ações mais facilmente – você liga para o 193, eu pego um extintor – do

que se eu precisasse chamar sua atenção para o fogo, ou se eu tivesse alguma dúvida sobre como você vai reagir a um incêndio. A consciência compartilhada permite que grupos, que em outras circunstâncias não estariam coordenados, comecem a agir em conjunto de maneira mais rápida e eficaz.

Esse tipo de consciência social tem três níveis: quando todos sabem alguma coisa, quando todos sabem que todos sabem e quando todos sabem que todos sabem que todos sabem. Muitas pessoas na RDA perceberam por conta própria que o governo era corrupto e que a vida sob ele era ruim; essa era a condição “todos sabem”. Com o tempo, muitas daquelas pessoas descobriram que a maioria de seus amigos, vizinhos e colegas também sabia a mesma coisa – “todos sabem que todos sabem”. Nesse ponto o sentimento estava generalizado, mas, como ninguém falava a respeito do que todos sabiam, o Estado nunca precisava reagir de qualquer maneira formal. Por fim as pessoas em Leipzig puderam ver outras agindo com base no conhecimento de que a RDA estava podre –  “todos sabem que todos sabem que todos sabem”. Essa consciência compartilhada é o passo necessário para a verdadeira ação pública: quando as pessoas nas ruas de Leipzig sabiam a mesma coisa que as que assistiam a tudo das janelas.

Até setembro de 1989, a informação fluíra como uma cascata de um pequeno grupo para outro maior, e as passeatas haviam passado a reunir dezenas de milhares de pessoas. Em outubro, o número superou a marca dos 100 mil. Na primeira segunda-feira de novembro, 400 mil pessoas foram para as ruas em Leipzig. Quando o governo percebeu que estava sendo desafiado, ninguém no Exército se dispôs a enfrentar tantos cidadãos, e, sem o apoio de uma ameaça crível de força letal, o governo da Alemanha Oriental simplesmente desabou. No dia seguinte a esse primeiro  protesto de novembro, todos os membros do governo renunciaram. Dois dias depois a derrubada do

Muro de Berlim começou. A RDA desaparecera.

A lição legada a manifestantes posteriores aos eventos de Leipzig foi que era preciso protestar  de tal modo que fosse improvável uma interferência do Estado e divulgar amplamente as evidências das ações tomadas. Caso o Estado não reagisse, a divulgação serviria como prova de que o protesto era seguro. E se o Estado reagisse, o registro da repressão poderia ser usado para instigar um clamor internacional. A lição para os Estados repressivos foi o contrário: não permita que protestos, mesmo pequenos, se iniciem, pois eles podem crescer, e não permita que qualquer  registro se espalhe. Essas duas lições instalaram um jogo de gato e rato entre manifestantes e instituições contestadas que persiste até hoje. Como em tudo que envolve ação coordenada, as ferramentas sociais mudaram o equilíbrio de poder nesse jogo.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 83-87)