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Um futuro possível para a ação coletiva

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 161-165)

Eis uma breve descrição de uma cena que teve lugar no saguão de um cinema em Dallas após uma sessão do filme Sicko: SOS saúde, de Michael Moore:

Junto às portas do banheiro … o cinema estava em polvorosa. Toda a plateia de Sicko parecia ter formado uma assembleia improvisada em frente à porta do toalete feminino. Nunca vi nada parecido. Aqui é o Texas, diabos, não a França ou o campus de uma faculdade liberal … A conversa acabou se concentrando em um núcleo de dez ou doze desconhecidos agrupados, enquanto os demais ficamos em volta, ouvindo atentamente aquilo que parecia estar acontecendo do nada. O senhor negro com quem meu caipira começara a conversar no banheiro gritou, chamando a atenção de todos. A conversa parou de repente, e todos os olhos desse grupo de trinta ou quarenta pessoas estavam agora voltados para ele. “Se simplesmente virmos isso e não fizermos nada”, disse ele, “então de que adianta?” Fez-se silêncio, e então a mulher do caipira começou a pedir endereços de e- mail. De repente, todos estavam anotando os endereços uns dos outros, prometendo se unir e fazer alguma coisa … embora ninguém parecesse saber exatamente o quê.

Essas observações, feitas por Josh Tyler no site de críticas de cinema CinemaBlend.com, são uma amostra do nosso ambiente social modificado. Esse grupo de pessoas, de diferentes  proveniências e reunidas apenas pelo acaso de uma sessão de cinema vespertina no shopping

center, foi capaz de trocar e-mails, sabendo que, diferentemente de uma troca de endereços ou números de telefone, isso lhes permitiria aproveitar o momento de inspiração coletiva no saguão e guardar uma parte dele para mais tarde. Esforços desse tipo não tendem a ser duradouros ou autossustentáveis – não têm um escritório em Washington, não têm orçamento nem recebem doações  –, mas sua imprevisibilidade faz deles um sinal de um tipo de compromisso que qualquer 

organização formal tem dificuldade para produzir de maneira efetiva.

A notícia dos protestos coordenados rapidamente por cidadãos comuns é uma das que nos chegam com mais frequência sobre a mídia social. Desde as descrições de Howard Rheingold sobre o protesto político coordenado por torpedos de celular nas Filipinas, tivemos inúmeros exemplos, indo das flash mobs promovidas por jovens na Bielo-Rússia até a greve dos estudantes latinos em Los Angeles, passando pelo protesto dos clientes do HSBC no Reino Unido. Apesar da variedade de histórias sobre ação coletiva, porém, elas têm uma coisa em comum: todas se baseiam em uma “energia para deter”, um esforço para fazer uma organização ou grupo capitular às exigências daquele grupo reunido.

Por que há tanta ação coletiva voltada para protestos, com ênfase em objetivos relativamente negativos e de curto prazo? Uma explicação possível é que é simplesmente mais fácil destruir que criar; começar coisas em grupo exige muito mais energia que tentar detê-las. Mas não é fácil sustentar essa explicação, dada a fecundidade de outros tipos de mídia social. Quando sabemos o que procurar, encontramos evidências de criatividade de grupo em toda parte. Recentemente me deparei com um site criado por um tal NickGreat, membro da comunidade de modificação de  bonequinhos Lego, que consiste em imagens de bonequinhos comuns de Lego adaptados com tinta e

mitologia. Vendo o site, dá para se ter uma ideia de como modificar um bonequinho para que fique  parecido com personagens diversos de animês, como Dragonball Z. Esse pode parecer um exemplo  banal, mas é a banalidade que interessa aqui – a mídia social é tão onipresente e barata que até os membros da comunidade de modificação de bonequinhos de Lego acham que essa atividade merece ser compartilhada. Compare isso com a atividade de pessoas que compartilham fotos engraçadinhas de seus gatos, às vezes seguidas de legendas engraçadinhas. Ou com o Tax Almanac, um wiki para conselhos sobre impostos nos Estados Unidos. Ou a rede de revenda de livros didáticos para o ensino em casa. Onde quer que olhemos, a mídia social torna a criatividade não só  possível, mas desejável o suficiente para que esses e milhões de outros exemplos existam,

crescendo em número a cada dia. Isto é, em toda parte, menos em ações coletivas.

Talvez a ação coletiva seja mais voltada para protestos que para a criação porque é simplesmente mais difícil que o compartilhamento ou a colaboração. Isso pelo menos tem um pouco de verdade – é mais difícil empreender uma ação coletiva porque o sucesso depende de todos os  participantes. O governo Lukashenko não vai cair só para algumas flash mobs de manifestantes; ele ou vai cair, ou não vai, e todos no país se beneficiarão, ou não, da mesma maneira. Portanto, a ação coletiva requer um compromisso muito maior com o grupo e seus objetivos do que o compartilhamento de fotografias ou mesmo a criação colaborativa de softwares.

Apesar dessa dificuldade, porém, temos exemplos de pessoas se reunindo e promovendo ações coletivas que são ao mesmo tempo de longo prazo e criativas. O exemplo canônico é aquele em que todos os membros de uma aldeia rural aparecem para ajudar um vizinho a construir um novo celeiro, muitas vezes levantando-o em um só dia. É preciso um grupo para construir um celeiro; trinta pessoas podem fazê-lo em um dia só, mas uma pessoa sozinha não consegue fazer o mesmo em um mês. A montagem de celeiros requer grupos.

Como os softwares de código aberto e os wikis, a construção de celeiros não envolve transações comerciais, e mesmo assim ela acontece. Por que eu deveria aparecer na sua fazenda para ajudá-lo a construir seu celeiro quando tenho meu próprio trabalho a fazer? Há duas respostas básicas para essa pergunta: ou devo um favor a você, ou quero que você me deva um. E se uma dessas opções for verdadeira em relação a um número suficiente de indivíduos, um grupo inteiro pode entrar em um estado chamado “altruísmo recíproco”. Com altruísmo recíproco, favores são trocados sem registros formais – se Alice faz um favor a Roberto, que faz um favor a Carolina, que faz um favor  a Dora, e assim por diante, então fica tudo bem. Em vez de cada membro do grupo listar favores feitos ou recebidos diretamente por outros, certos tipos de ajuda tornam-se simplesmente normas sociais.

Mas a construção de celeiros tem uma limitação importante – ela só funciona em comunidades relativamente pequenas. As cidades não têm nada que lembre a construção de um celeiro – alguns  bairros podem alcançar algo próximo da densidade social necessária para isso, mas não a cidade como um todo. E aqui voltamos a ter a questão da escala – a condição de altruísmo recíproco depende de duas coisas: densidade social e continuidade. A densidade é necessária para fazer do altruísmo recíproco uma norma social forte. Qualquer pessoa para quem faço um favor tem de conhecer outras pessoas que também me conhecem, e esse padrão precisa ser comum o bastante  para que favores possam circular pela comunidade sem registro formal. Quando a comunidade é  pequena, isso pode acontecer; quando é grande, fica fácil para os aproveitadores receber favores que simplesmente não retribuem. A outra exigência, continuidade, não passa de densidade social no

tempo. O altruísmo recíproco requer uma espécie de memória comunal, de modo que qualquer   pessoa para quem eu faça um favor tenda a permanecer nas proximidades tempo suficiente para

retribuí-lo para mim ou qualquer outro membro da comunidade.

Comunidades pequenas com moradores de longa data têm a densidade social e a continuidade necessárias para acumular suficientes favores mútuos e se tornar um terreno fértil para o altruísmo recíproco. Comunidades grandes e efêmeras não têm – os favores “vazam” da comunidade com demasiada rapidez. Assim, eis uma hipótese com relação ao futuro próximo, baseada em pouco mais que um palpite e alguns exemplos sedutores: estamos prestes a presenciar uma revolução na ação coletiva, e o motor dessa revolução serão novas estruturas legais que darão suporte à ação coletiva produtiva.

Todos os exemplos atuais que temos de criatividade em grande escala e duradoura, como a Wikipédia e o Linux, estão na esfera da propriedade intelectual; a Wikipédia, o Linux e 1 milhão de outros projetos criados em conjunto são, de maneira quase literal, ideias congeladas. O que faz a maioria desses esforços colaborativos funcionar é a lei de direitos autorais, pela qual é criada alguma forma de licença que permite às pessoas se reunir e compartilhar seu trabalho livremente, sem medo de que depois ele lhes seja tomado. Há dezenas de licenças assim, como a GPL original de Richard Stallman, atualmente usada pelo Linux e um grande número de outros projetos colaborativos, ou as licenças Creative Commons, que permitem o compartilhamento de trabalho escrito de uma maneira análoga.

Em seus 25 anos de existência, a GPL e suas parentes transformaram o desenvolvimento de softwares precisamente por terem proporcionado segurança a grupos de programadores que queriam unir esforços, mas estão transformando também muitas áreas do restante da indústria de softwares, pois as ferramentas amparadas pela licença GPL se tornaram uma grande parte do ecossistema. Nos últimos dez anos, a Microsoft tem deixado de ser adversária implacável dos esforços para o Código Aberto e adotado uma postura de acomodação relutante, mas genuína. De maneira semelhante, a Wikipédia forçou a Encyclopaedia Britannica a tentar se abrir, permitindo acesso gratuito a alguns usuários e recebendo sugestões de colaboradores externos. Em vez desse tipo de mudança, imagine se Linus Torvalds, o originador do Linux, estivesse limitado a protestar  contra a Microsoft para obter um sistema operacional gratuito de alta qualidade, ou se a única maneira de Jimmy Wales e Larry Sanger conseguirem a enciclopédia que queriam fosse exigindo que a Encyclopaedia Britannica se tornasse gratuita. Em outras palavras, imagine se eles estivessem limitados às ferramentas da cultura de protesto que vemos tantas vezes na esfera  política. Eles teriam despendido muito mais esforço e realizado muito menos, ou nada. O que a GPL e licenças afins permitiram a esses grupos não foi simplesmente protestar contra estruturas existentes, mas competir com elas.

Essa é uma das diferenças mais interessantes entre o uso da mídia social para trabalho criativo e colaborativo, como a Wikipédia, e para a coordenação de ação coletiva. Não há nenhuma licença  para a ação coletiva que seja análoga à GPL, nenhum meio de um grupo de pessoas assegurar a

liberdade de trabalhar em conjunto de maneiras respeitadas pelo governo. Para ver o que isso significa na prática, imagine que você e um grupo de cinco amigos entram em um banco e dizem: “Estamos todos contribuindo juntos para realizar alguma coisa, e combinamos entre nós a maneira como queremos trabalhar em conjunto. Por favor, deem-nos uma conta bancária, de modo que nosso grupo possa começar a receber, levantar e gastar dinheiro.” Vocês sairiam do recinto sob risos. O

máximo que vocês poderiam fazer é um de seu grupo abrir uma conta e acrescentar os outros como consignatários, e, se o membro original desaparecer, a conta desaparece com ele.

Agora imagine que você e esses cinco amigos saiam, formem uma empresa e depois voltem àquele banco dizendo: “Somos uma empresa. Por favor, deem-nos uma conta bancária.” Um grupo que forma uma empresa ou uma associação pode fazer várias coisas que um grupo informal não  pode, como firmar contratos e criar estatutos com valor legal, levantar e despender dinheiro, contratar e demitir funcionários e assim por diante. Essas coisas são possíveis em parte porque o estabelecimento de uma sociedade comercial cria tanto densidade social quanto continuidade.

O estabelecimento de uma corporação, literalmente sua “corporificação”, é a maneira como o governo reconhece o trabalho de grupos, assim como ele reconhece autores mediante o direito autoral. Então por que um número maior de grupos que usam a mídia social para objetivos de longo  prazo não se transforma em empresa? Pelo menos parte da resposta parece ser que as atuais estruturas empresariais exigem coisas como arquivamento de papéis, sede física, reuniões  presenciais de conselho, estruturas administrativas hierárquicas e assim por diante. Nenhuma dessas barreiras é fatal em si mesma, mas tudo que eleva o custo de se fazer alguma coisa reduz o que é feito. (Coase novamente.) Se houvesse uma estrutura que permitisse uma empresa compatível com a internet, poderíamos ver um aumento do número de ações coletivas dirigidas para a criação e a preservação de coisas, em vez de serem dominadas pelo protesto, como é na atualidade.

Hoje em dia, há vários exemplos interessantes precisamente desse tipo de experimentação. O governador do estado de Vermont assinou há pouco tempo uma lei que autoriza a criação de empresas virtuais, permitindo assim que grupos coordenados principal ou inteiramente através da mídia social possam reivindicar status legal no estado. As novas regras que governam essas empresas virtuais foram elaboradas por David Johnson e seus alunos na New York Law School, e seu objetivo é permitir que grupos que acumulem atenção e trabalho e se reúnam na internet tenham o mesmo tipo de reconhecimento legal que empresas que acumulam capital e se reúnem no mundo real.

Outra abordagem à mesma questão é o Meetup Alliance. Esse serviço nasceu de um sentimento de que vários grupos Meetup em vários locais poderiam obter valor associando-se em nível regional, nacional ou mesmo global. O Meetup fornece a infraestrutura que permite a formação desses “grupos de grupos”, com listas de eventos e áreas de discussão. No futuro, o Meetup  poderia também fornecer ferramentas para o levantamento de fundos e ajudar na criação de estatutos. (Uma decisão incomum do Meetup é permitir que grupos fora do Meetup, como listas de discussão, grupos do Facebook e comunidades do LiveJournal, ingressem também nessas alianças.) Depois, cabe aos próprios grupos decidir se querem se encontrar e que tarefas assumir nesse tipo de aliança.

Embora a maioria desses grupos não tenha objetivos declaradamente políticos – é difícil imaginar a Bellydancing Alliance (Aliança da Dança do Ventre) pressionando o Congresso –, muitas das maiores alianças são explicitamente políticas, algumas sendo dedicadas a candidatos  políticos específicos (ecos dos grupos Meetup de Howard Dean em 2004) ou a objetivos expressamente políticos, como a Claim Democracy, um grupo anticorrupção que faz campanha por  um governo limpo. Muito interessante é a possibilidade de grupos que tenham ao mesmo tempo metas sociais e políticas. Os pais, mais uma vez, são muito propensos a adotar essas ferramentas, com alianças como MomsTown e Not Just Moms aparecendo entre as dez maiores, e é possível

imaginar esses grupos empreendendo ações políticas relacionadas a questões de interesse compartilhado, talvez até atravessando os mesmos tipos de fronteiras de raça e classe que marcou o grupo reunido no saguão do cinema após Sicko.

Esses não são os únicos serviços do gênero a tentar fornecer uma estrutura de apoio melhor para a ação coletiva. Sites de promessas, como o PledgeBank e o ThePoint.com, começaram como ferramentas de coordenação do tipo “eu vou se você também for”, e ainda tendem para o protesto (a ação mais bem-sucedida do PledgeBank até hoje foi a promessa, feita por mais de 10 mil  pessoas, de resistir à introdução de uma carteira de identidade nacional no Reino Unido). Mas

esses sites estão explorando maneiras de ajudar os grupos que se formam neles a empreender ações coletivas juntos. Há também campanhas organizadas em vista de um propósito específico, muitas a respeito de questões ambientais, como RelightNY, uma tentativa de levar os habitantes da cidade de Nova York a adotar o uso de lâmpadas fluorescentes compactas, tentando motivá-los bairro por   bairro.

 No momento, a maior parte dos estudos sobre ação coletiva voltada para o início ou a sustentação de trabalhos é especulativa. Só uma pequena parte desses esforços já existia quando escrevi o primeiro esboço deste livro, e nem as empresas virtuais em Vermont nem as Meetup Alliances têm sequer um ano de existência no momento em que escrevo. A aparição destes e de outros experimentos, contudo, sugere que essa ideia está prestes a ser submetida a uma quantidade notável de testes no mundo real, e a comparação com o licenciamento do tipo Código Aberto sugere que mesmo um sucesso moderado pode criar enormes ondas de repercussão em instituições existentes (que são, afinal, os beneficiários das atuais regras para a formação de empresas). Os governos e até as companhias estão acostumados a ser alvo de protestos; então, à medida que os  protestos coordenados pela mídia social se tornarem normais, sua eficácia declinará. Uma mudança mais notável e duradoura não demorará a ocorrer, porém, se as pessoas forem capazes de começar  a usar essas ferramentas para contornar entidades governamentais ou comerciais de modo a enfrentar os problemas diretamente. Se isso acontecer, será um desafio muito maior para o anterior  monopólio institucional sobre a ação de grande escala do que qualquer coisa que tenhamos visto até hoje.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 161-165)