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Em louvor dos escribas

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 38-40)

Consideremos a posição de um escriba no início do século XV. A habilidade de escrever, uma das realizações máximas da inventividade humana, era um feito de difícil consecução e, por isso, raro. Só uma pequenina parcela da população sabia de fato escrever, e a sabedoria das eras estava codificada em manuscritos frágeis e sujeitos à deterioração. Nesse ambiente, um pequeno grupo de escribas desempenhava o serviço essencial de refrescar a memória cultural. Ao copiar à mão novas edições de manuscritos existentes, eles executavam uma tarefa que não podia ser executada de nenhuma outra maneira. O escriba era o único bastião contra a significativa perda intelectual. Sua

função era indispensável, e suas habilidades eram insubstituíveis.

Agora considere a posição do escriba no final do século XV. A invenção do tipo móvel por  Johannes Gutenberg em meados do século havia causado uma súbita e imensa redução na dificuldade de reproduzir uma obra escrita. Pela primeira vez na história, o tempo necessário para copiar um livro podia ser menor que o necessário para lê-lo. Um escriba, alguém que dedicou a vida à habilidade de escrever como uma virtude cardeal, teria sentimentos conflitantes com relação ao significado do tipo móvel. Afinal, se os livros são bons, maior quantidade de livros é sem dúvida melhor ainda. Ao mesmo tempo, porém, era a própria escassez da habilidade de escrever  que conferia primazia ao esforço do escriba, e seu modo de vida baseava-se nessa escassez. Quando as habilidades do escriba tornaram-se eminentemente substituíveis, sua função – fazer  cópias de livros – podia ser melhor desempenhada se a tradição fosse ignorada, não preservada.

Duas coisas são verdadeiras com relação à remodelação da paisagem intelectual europeia durante a Reforma Protestante: primeiro, ela não foi causada pela invenção do tipo móvel, e segundo, ela só foi possível depois dessa invenção, que ajudou a rápida disseminação das queixas de Martinho Lutero sobre a Igreja católica (as Noventa e cinco teses) e a difusão da Bíblia impressa em línguas locais, entre outros efeitos. Manter essas duas ideias em mente é essencial  para a compreensão de qualquer mudança social impelida por uma nova capacidade tecnológica.

Como os efeitos sociais produzem-se com décadas de atraso em relação aos tecnológicos, as verdadeiras revoluções não envolvem uma transição ordenada do ponto A para o ponto B. Na realidade, A é sucedido por um longo período de caos, e só depois se chega a B. Nesse período caótico, os velhos sistemas esfacelam-se muito antes que os novos se tornem estáveis. No final do século XV, os escribas coexistiam com impressores, mas não desempenhavam mais um serviço insubstituível. No entanto, apesar de serem substituídos em sua função essencial, a percepção que eles tinham de si mesmos como essenciais continuou inalterada.

Em 1492, quase meio século após a aparição do tipo móvel, Johannes Trithemius, abade de Sponheim, foi impelido a fazer uma defesa apaixonada da tradição dos escribas, De Laude Scriptorum  (literalmente, “em louvor dos escribas”). Nessa obra, ele expôs os valores e as virtudes da tradição dos escribas: “O monge devoto obtém quatro benefícios particulares da escrita: o tempo, um bem precioso, é proveitosamente gasto; seu pensamento é iluminado à medida que ele escreve; seu coração é despertado para a devoção; e na outra vida ele é recompensado com um prêmio singular.” Observe que os benefícios da tradição são apresentados como recebidos exclusivamente pelos escribas, não pela sociedade.

A posição do abade teria sido mera arenga reacionária (“Devemos preservar a velha ordem a qualquer preço”), não fosse por um detalhe. Se, em 1492, você tivesse escrito um tratado e quisesse vê-lo amplamente disseminado, o que faria? Mandaria imprimi-lo, é claro, e foi isso mesmo que o abade fez. O próprio De Laude Scriptorum não foi copiado por escribas; foi montado em tipos móveis, de modo a produzir grande quantidade de cópias de maneira barata e rápida –  coisa para a qual escribas eram completamente inadequados. O conteúdo do livro louvava os escribas, mas sua forma impressa os arruinava; o meio solapava a mensagem.

Há uma hipocrisia instrutiva aqui. Um profissional muitas vezes se torna um porteiro, exercendo uma função social necessária ou desejável, mas também controlando essa função. Algumas vezes esse controle é exercido de maneira explícita (só juízes podem condenar alguém à prisão, só médicos podem realizar cirurgias), mas outras ele está embutido na tecnologia, como no caso dos

escribas, que dominavam a tecnologia da escrita. preciso despender considerável esforço para manter a disciplina e a estrutura da profissão. Os escribas existiam para acelerar a difusão da  palavra escrita, mas, quando surgiu uma maneira melhor de fazer isso, que não os envolvia, o abade de Sponheim interveio para afirmar que preservar o modo de vida do escriba era mais importante que cumprir sua missão por outros meios.

A imagem que os profissionais têm de si mesmos e sua autodefesa, tão valiosas em tempos comuns, tornam-se uma desvantagem em tempos revolucionários, porque esses profissionais estão sempre preocupados com ameaças à atividade. Na maior parte dos casos, essas ameaças são também ameaças à sociedade; não queremos ver um relaxamento dos padrões no credenciamento de um cirurgião ou um piloto. Em alguns casos, porém, a mudança que ameaça a profissão beneficia a sociedade, como fez a popularização da imprensa; mesmo nessas situações os profissionais certamente se importarão mais com sua autodefesa do que com o progresso. O que antes era um serviço tornou-se um gargalo. A maioria das organizações acredita ter muito mais liberdade de ação e capacidade de moldar seu futuro do que realmente tem, e evidências de que o ecossistema esteja mudando de maneiras que elas não podem controlar costumam gerar considerável ansiedade, mesmo que a mudança seja boa para a sociedade como um todo.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 38-40)