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A fama acontece

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 50-53)

É possível também cometer o erro oposto: acreditar não que expressões de conversa são  publicações, mas que agora todas as publicações são parte de uma conversa. Mas essa é uma visão comum e se baseia na noção óbvia de que a web é diferente das mídias de transmissão, como a TV,  porque pode sustentar interação real entre usuários.

 Nessa visão, os efeitos da televisão devem-se principalmente a seus limites tecnológicos. A televisão tem milhões de setas voltadas para si – espectadores observando a tela – e absolutamente nenhuma seta voltada para fora. Você pode ver a Oprah; a Oprah não pode ver você. Na web,  porém, as setas de atenção são todas potencialmente recíprocas; qualquer pessoa pode apontar para

qualquer outra, sem depender de geografia, infraestrutura ou demais limites. Se a Oprah tivesse um  blog, você poderia se conectar com ela, e ela se conectar com você. Esse potencial dá a impressão de permitir a todos interagir com todos os outros, anulando a natureza unidirecional da televisão. Mas chamar esse potencial de interatividade seria como chamar um jornal de interativo porque ele  publica cartas ao editor.

A web torna a interatividade tecnologicamente possível, mas o que a tecnologia dá os fatores sociais tiram. No caso dos famosos, qualquer interatividade em potencial é eliminada, porque a fama não é uma atitude, nem é um artefato tecnológico. A fama é simplesmente um desequilíbrio entre a atenção que se recebe e a que se dá, mais setas apontando para dentro que para fora. Duas coisas precisam acontecer para que uma pessoa seja famosa, e nenhuma delas se relaciona com tecnologia. A primeira é escala: a pessoa tem de receber um mínimo de atenção, um público de

milhares ou mais. ( por isso que a versão para a internet da célebre frase de Warhol – “No futuro todo mundo será famoso para 15 pessoas” – é interessante, mas errada.) A segunda é que ela tem de ser incapaz de corresponder. Conhecemos esse padrão pela televisão; os públicos dos programas mais apreciados são enormes, e a atenção recíproca é tecnologicamente impossível. Acreditávamos (muitas vezes porque queríamos acreditar) que esse desequilíbrio na atenção era causado por  limites técnicos. Quando blogs e outras formas de mídia interativa começaram a se difundir, eles  permitiram a conversa direta e sem filtro entre todas as partes e removeram os desequilíbrios

estruturais da fama. Essa remoção dos limites tecnológicos pôs à mostra um segundo conjunto de limites sociais.

Embora a possibilidade de conexões bidirecionais seja excelente, ela não é um remédio para todos os males. Na web, a interatividade não tem limites tecnológicos, mas continua sob fortes limites cognitivos: não importa quem você seja, você só pode ler certo número de blogs, só pode trocar e-mails com certo número de pessoas e assim por diante. A Oprah tem e-mail, mas seu endereço ficaria inútil no instante em que se tornasse público. Essas restrições sociais significam que, mesmo quando um meio é bidirecional, seus usuários mais populares serão forçados a adotar  um padrão unidirecional. Se a Oprah quer   falar com cada um dos membros de seu público é irrelevante: ela não pode  falar nem com uma fração de uma porcentagem desse público, jamais,  porque ela é famosa, o que significa que recebe mais atenção do que pode retribuir em qualquer 

meio. Essas limitações sociais não importavam muito em pequena escala. Nos primórdios dos  blogs (antes de 2002, aproximadamente) havia uma notável e ágil conversa entre blogueiros de toda

espécie, e os que postavam com razoável regularidade podiam se considerar membros do grupo.  Naquele tempo, blogar era acima de tudo uma atividade interativa e ocorria de maneira tão natural

que era fácil imaginar a interatividade como parte inerente do jogo.

Depois as coisas se popularizaram, com milhões de blogueiros e leitores. Nesse ponto os limites sociais fizeram-se sentir. Se você tem um blog, e mil outros blogueiros apontam para ele, você não  pode ler o que eles estão dizendo, muito menos reagir. Mais é diferente: cidades não são apenas

vilas grandes, e um público grande não é apenas um pequeno clonado muitas vezes. É difícil detectar os limites à interação resultantes do aumento da escala porque todos os aspectos visíveis do sistema continuam iguais. Embora nada mude no software nem nos usuários, a população maior  altera as circunstâncias para além do seu controle. Nessa situação, por mais assiduamente que alguém queira interagir com seus leitores, o público crescente acabará impedindo essa  possibilidade. Alguém que blogue lado a lado com um punhado de amigos pode ler tudo que eles escrevem e responder a quaisquer comentários que façam – a escala é pequena o suficiente para  permitir uma conversa de verdade. Porém, alguém que escreve para milhares ou milhões de  pessoas tem de começar a escolher a quem responder e a quem ignorar, e, com o tempo, ignorar 

torna-se a opção usual. Em uma palavra, essa pessoa tornou-se famosa.

Glenn Reynolds, um herói característico do mundo dos blogs, relata que o Instapundit.com é visitado por mais de 1 milhão de leitores [unique viewers] por mês, circulação que o poria confortavelmente entre os vinte jornais mais vendidos dos Estados Unidos. Pode-se perceber como um público desse tamanho impossibilita a interatividade – passar mesmo um minuto por mês interagindo com apenas 10 mil de seus leitores (só 1% de seu público total) tomaria quarenta horas  por semana. É esse o aspecto que a “interatividade” assume nessa escala – absolutamente nenhuma interação com quase todo o público e raras e minúsculas interações com o resto, e isso tem

implicações para todo tipo de mídia. Os blogs não destroem o vidro espelhado da fama, e “TV interativa” é um oximoro, porque quando se obtém um público na escala da TV, qualquer coisa mais interativa que votar em algum candidato no American Idol  torna-se impossível.

A surpresa apresentada por ferramentas sociais como os blogs é que a escala por si só, mesmo em um meio que permite conexões bidirecionais, é suficiente para criar e sustentar o desequilíbrio da fama. A mera possibilidade tecnológica de resposta não basta para superar os limites humanos da atenção. Charles Lindbergh não tolerava que ninguém mais respondesse às cartas de seus fãs,  prometendo a si mesmo que um dia daria cabo disso (o que, é claro, nunca aconteceu). O

igualitarismo só é possível em pequenos sistemas sociais. Depois que um meio passa de certo tamanho, a fama é um movimento compulsório. As primeiras notícias sobre a morte dos meios tradicionais retratavam a web como uma espécie de anti-TV – bidirecional enquanto a TV é unidirecional, interativa enquanto a TV é passiva, e (implicitamente) boa enquanto a TV é ruim. Hoje sabemos que a web não é um antídoto perfeito para os problemas dos meios de comunicação de massa, porque alguns desses problemas são humanos e não passíveis de solução tecnológica. Essa é uma má notícia para aquela escola de crítica da mídia que supunha que as autoridades reprimem as massas. No mundo dos blogs não há autoridade, só massas, mas apesar disso o peso acumulado da atenção continua criando o tipo de desequilíbrios que associamos aos meios de comunicação tradicionais.

Os famosos são diferentes de você e de mim porque não podem retribuir e nem sequer perceber  a atenção que obtêm, e a tecnologia não pode mudar isso. Se quisermos sistemas amplos em que a atenção seja irrestrita, a fama será um subproduto inevitável, e, à medida que nossos sistemas crescerem, seus efeitos ficarão mais pronunciados, não menos. Uma versão disso está acontecendo com o e-mail – como é mais fácil fazer uma pergunta do que respondê-la, obtemos o curioso efeito de que, em um grupo de pessoas, todas sejam capazes de sobrecarregar umas às outras fazendo, cumulativamente, mais perguntas do que elas podem cumulativamente responder. Merlin Mann, um especialista em usabilidade de softwares, descreve esse padrão assim:

O e-mail é uma coisa muito curiosa. As pessoas lhe passam essas mensagens individuais pequeninas que não pesam mais do que um seixo de rio. Mas logo você acumula um monte de seixos mais alto que você e mais pesado do que você jamais conseguiria carregar, mesmo que pretendesse fazê-lo em algumas dezenas de viagens. Mas, para a pessoa que se deu ao trabalho de lhe entregar a pedrinha, parece ultrajoso que você não consiga lidar com aquela coisinha minúscula. “Que ‘monte’? É só uma pedrinha!”

O e-mail, e em particular a capacidade de criar conversas de grupo facilmente e sem precisar da  permissão dos destinatários, está proporcionando a um número crescente de pessoas uma maneira

de vivenciar o aspecto negativo da fama, que é a incapacidade de retribuir a atenção de nossos amigos e colegas da forma como eles gostariam.

O efeito limitante da escala na interação é uma má notícia para aqueles que têm a esperança de ver surgir uma era igualitária introduzida por nossas ferramentas sociais. Podemos esperar que a fama se torne mais dinâmica e que a elevação à fama se dê mais de baixo para cima, mas não  podemos mais alimentar a esperança de um mundo em que todos poderão interagir com todos os

demais. Seja qual for a tecnologia, nossas limitações sociais vão significar que os famosos do mundo sempre nos acompanharão. As pessoas que recebem atenção demais vivem em um ambiente

diferente do de todas as outras; parafraseando F. Scott Fitzgerald, os ricos de atenção são diferentes de você e de mim, de maneiras que não são causadas pelos meios de comunicação que usam, e de maneiras que não desaparecerão nem mesmo quando novos meios surgirem.

 Nos últimos cinquenta anos, os dois meios de comunicação mais importantes nas vidas da maioria das pessoas foram o telefone e a televisão: meios distintos com funções distintas. Acontece que a diferença entre ferramentas de conversa e ferramentas de transmissão era arbitrária, mas a diferença entre conversa e transmissão é real. Mesmo em um meio que permitisse perfeita interatividade para todos os participantes (algo de que estamos razoavelmente próximos hoje), os limites da cognição humana significarão que a escala por si só impedirá a conversa. Em tal meio, mesmo na ausência de quaisquer gargalos profissionais ou passividade forçada, a fama acontece.

No documento La Vem Todo Mundo Shirky Clay (páginas 50-53)