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Carta enquanto género textual e carta pública

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 116-122)

uma carta não é apenas um suporte de texto, mas é também uma forma de comunicação ou um tipo de discurso (cfr. van dijk, 1983: 171). para dominique Maingueneau (cfr. 1998: 38 e seguintes), o discurso comporta várias características: é uma organização que vai além da frase, com regras variáveis consoante os grupos sociais; é orientado no tempo; é uma forma de acção; é contextualizado; gera múltiplas relações interdiscursivas; e, por fim, é interactivo, pressupondo sempre dois interlocutores, um sujeito e um destinatário.

é possível, então, situar a enunciação epistolar dentro da enunciação discursiva, “precisamente porque ela ostenta claras marcas da situação enunciativa: troca verbal entre um remetente (locutor) e um destinatário (alocutário), circunscrita num espaço e num tempo definidos que configuram o tempo e o espaço da produção escrita, bem como os da recepção” (Cristo, 2008: 62). Mesmo sem a presença física de um destinatário, a enunciação discursiva comporta uma interactividade ou um dialogismo constitutivos, nomeadamente porque é “uma troca, explícita ou implícita, com outros enunciadores, virtuais ou reais (...)” (Maingueneau, op. cit.: 40). Podemos, assim, afirmar que todo o discurso tem em vista destinatários particulares (cfr. fairclough, 2003: 42).

Com efeito, a figura do destinatário é particularmente importante na forma epistolar, assumindo até um papel estruturante, enquanto motivo de existência da carta. para foucault, a escrita da carta “é, pois, ‘mostrar-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro” (Foucault, 1995: 151), sendo que o sujeito se abre ao olhar de um outro, ao mesmo tempo que desenvolve a sua subjectividade. além disso, a forma epistolar apresenta uma relação próxima com o modelo da oralidade, da conversação, pelo tipo de discurso que implica.

na opinião de ana peixinho de Cristo, em tese de doutoramento sobre as cartas públicas de eça de Queirós na imprensa oitocentista, “a escrita da carta reclama sempre a presença do outro, pois ele será a chave do acto epistolar. a atitude de escrever uma carta implica necessariamente a construção de um discurso dirigido a alguém, mesmo que esse destinatário seja produto de um desdobramento do próprio epistológrafo” (Cristo, op. cit.: 67). assim sendo, as figuras do remetente e do destinatário encontram-se em pé de igualdade, em

termos de relevância, uma vez que “a carta permite a construção e a produção de um ‘eu’ mas sempre em função do outro, solicitando o seu olhar, requerendo a sua opinião” (ibidem: 64).

No entanto, a figura do destinatário é criada artificialmente, pelo meio do discurso, já que a carta pode ser definida como um “diálogo entre ausentes”, ou, talvez, de um indivíduo presente para outro indivíduo ausente (cfr. Montefiore, 2002: 106) – é, aliás, a ausência do destinatário que lhe dá sentido. “Quer isto dizer que a carta, fundando-se na ausência, cria a ilusão da presença, inventa-se como discurso dialógico com um ser de papel” (Cristo, op. cit.: 67). por isso mesmo, na sua essência, a carta comporta, pelo menos, duas dimensões que pareceriam, à partida, contraditórias. “pela sua natureza, uma carta implica distância – ‘se estivesses aqui, não precisaria de te escrever’ – e proximidade – ‘enquanto te escrevo, ou tu me lês, estamos juntos’” (Montefiore, op. cit.).

Além da figura do destinatário, a escrita epistolar exige, também, uma reciprocidade, esperando sempre “uma resposta, uma réplica, assumindo-se como forma de mediação que exige sempre, de quem a produz, a espera, mesmo que ilusória, de uma resposta” (Cristo, op. cit.: 65).

no espaço da imprensa, olhámos há pouco para a forma como a carta aberta ou pública8, dirigida a um auditório colectivo, deixou uma marca fundamental nas esferas públicas norte-americana e britânica, durante a época setecentista. vimos, também, o modo como a presença da forma epistolar se transformou com a massificação da imprensa, no século seguinte, não só ao nível do espaço a ela consagrado, mas nomeadamente em termos de autoria ou de sujeito, em que o cidadão comum, em detrimento de figuras notáveis e de intelectuais de renome, passou a assinar a maioria dos textos publicados nos jornais.

o que distingue, à partida, a carta pública da troca epistolar privada é a sua publicação num órgão de comunicação. “o medium que suporta a carta é o responsável pela sua abertura pela transformação da comunicação que este

8) é curioso que a carta aberta tenha perdido o seu estatuto de importância inquestionável no espaço da imprensa, sendo que a sua forma de circulação e de divulgação se transformou também em função dos progressos tecnológicos, como o correio electrónico. por outro lado, como veremos no Capítulo 7, uma carta aberta tem muito poucas possibilidades de ser publicada no espaço do correio dos leitores na imprensa, podendo a sua forma funcionar como um critério de exclusão.

efectiva: de uma relação dialógica entre um eu e um tu, passamos para uma comunicação em que o destinatário se multiplica exponencialmente. e, na nossa opinião, esta abertura proporcionada pela publicação em jornal ou livro, implica uma consciência, por parte de quem a escreve e publica, de estar a partilhar com terceiros conteúdos dirigidos a um destinatário específico” (ibidem: 269).

A publicidade de opiniões, reflexões e ideias depende, assim, de um meio físico, de alcance público, como explica splichal, referindo-se de modo abrangente às várias formas através das quais é possível chegar a um público mais vasto. “o direito de publicar opinião como essencialmente um direito pessoal, paradoxalmente, implica o uso real e físico – mas não necessariamente a posse legal – de uma coisa exterior: o meio de publicação (comunicação). não posso escrever sem uma caneta, não posso fazer uma chamada sem um telefone, não posso dirigir-me ao público sem ter um meio apropriado de comunicação ao dispor – um jornal, um estúdio de televisão ou de rádio a transmitir publicamente o programa, ou, pelo menos, acesso à Internet” (Splichal, 2002: 174).

independentemente da sua evolução e transformação, a epistolaridade, dentro do espaço da imprensa, tal como ela surgiu a partir do século xviii, possui, além das características já enunciadas a propósito do género textual da carta, algumas particularidades que convém aqui mencionar, além do factor publicação. uma dessas especificidades está relacionada com o alargamento ou, até, se quisermos, a ambiguidade da figura do destinatário.

no contexto das cartas públicas, publicadas em jornais ou revistas, devemos distinguir entre duas entidades: o destinatário, inscrito no texto e especificado no discurso, e, por outro lado, o receptor extra-textual, aquele que lê a carta. Estas duas figuras podem não ser coincidentes – “[o destinatário] é a figura (ou figuras) a quem o remetente dirige o seu discurso, integrando-a textualmente no enunciado (...); já o receptor corresponde a toda e qualquer entidade que tenha acesso à leitura da carta, independentemente de ter sido ou não implicado nela” (Cristo, op. cit.: 68).

Assim sendo, mesmo que o destinatário esteja especificado no texto, a carta aberta dirige-se a um receptor colectivo, a um público mais alargado, nomeadamente, os leitores do meio onde o texto é impresso. “do ponto de vista do género textual, as condições de sua realização definem as cartas de leitores

como um género diferenciado: pois caracterizam-se como cartas, têm assinatura, é resultado de uma vontade de alguém em produzir um texto visando expor as suas opiniões. Mas, enquanto carta, esses textos saem de seu autor com um destino que o distingue das cartas pessoais, pois são produzidas para serem publicadas, e não para serem guardadas, caso das cartas pessoais (...)” (Assunção, 2007: 663). Podemos, assim, afirmar, também, que o leitor-escritor tem duas audiências em mente quando envia uma carta para o jornal, ou seja, o editor que a avalia e um público mais vasto (cfr. Morrison et al., 1996: 45). por isso, e de acordo com Kress (apud sotillo et al., 1999: 413), o género das cartas dos leitores constitui um campo intermédio entre os domínios público e privado, uma vez que os leitores- escritores expressam as suas vozes individuais num fórum público, tendo em vista uma audiência mais vasta, sobre assuntos que lhes são importantes. para antónio luiz assunção, pode, assim, aplicar-se às cartas dos leitores o conceito de “comunidade discursiva”, que compartilha uma determinada proposta comunicativa, ao estabelecer uma interlocução do leitor com o seu meio de informação (cfr. assunção, op, cit.: 666).

Esta amplificação da figura do destinatário quando falamos em cartas publicadas na imprensa também permite fazer o contraste entre dois tipos de autores dentro da forma epistolar, efectuado por duchêne (apud Cristo, op. cit.: 33 e 34) – por um lado, o epistológrafo escreve cartas tendo em mente única e exclusivamente um destinatário específico (caso da correspondência familiar que, só mediante uma publicação a posterior, poderá ser acessível ao público leitor); por outro, o autor epistolar “produz cartas para um público alargado” e “perde o estatuto de correspondente”. Enfatizamos, então, que as cartas dos leitores enviadas aos jornais e revistas são assinadas por “autores epistolares”, e não “epistológrafos”, que produzem textos procurando visibilidade, quer por parte do meio impresso em si mesmo, quer por parte, acima de tudo, do público leitor em geral.

as cartas dos leitores na imprensa podem implicar, desta forma, vários tipos de destinatários: o jornal em si mesmo; o jornalista ou o editor que faz a triagem da carta; o director da publicação; o jornalista autor de uma notícia a que a carta faça referência; outro leitor que tenha publicado uma carta no jornal; um colunista ou autor de um artigo de opinião, que a carta mencione; e o público

leitor, em termos gerais, da publicação. no entanto, este último destinatário, receptor plural e heterogéneo, só se concretiza no caso de a carta ser publicada no jornal, adquirindo assim visibilidade; caso contrário, a amplitude do destinatário é diminuta, apesar de o leitor-escritor ter como expectativa, aquando do envio da carta, de ser lido por um público mais vasto.

esta pluralidade de destinatários está igualmente relacionada com uma das características possíveis da carta enviada para uma publicação – a sua intertextualidade, que pode ser definida como uma recontextualização e um movimento de um contexto para outro contexto (cfr. fairclough, 2003: 51). segundo Morrison e love, as cartas dos leitores na imprensa envolvem um alto grau de intertextualidade, implícita e explícita, com material anteriormente publicado, particularmente, no meio impresso a que se dirigem (cfr. Morrison et

al., 1996: 53).

Com efeito, num estudo de caso sobre o jornal Público, encontrámos no nosso corpus um conjunto de cartas dos leitores que se enquadravam naquilo a que definimos como “estilo discursivo diálogico”, ou seja, cartas que, ao convocarem explicitamente outros interlocutores, pressupõem um texto anterior, como uma notícia, um artigo, um editorial ou uma outra carta publicada no jornal. “está presente nestes textos dos leitores, de uma forma ainda mais vincada e evidente, a função que o espaço das cartas, em termos globais, possui na reciprocidade e aproximação entre o jornal e os seus leitores. os leitores têm, então, a oportunidade de dialogar com o jornal e os seus interlocutores dentro das suas próprias páginas; esse diálogo constitui, sem dúvida, um importante estímulo para o debate crítico-racional” (Silva, 2007: 125).

a publicação de cartas dos leitores, em termos gerais (não apenas as que apresentam o referido estilo discursivo ou intertextualidade explícita), acentua o carácter dialógico da imprensa, ao permitir a interacção com o jornal e também com outros leitores (cfr. assunção, op. cit.: 673). referindo-se à carta aberta ou polémica, tal como ela surgiu na imprensa portuguesa do século xix, ana Peixinho de Cristo afirma que a mesma se constitui como um espaço privilegiado para o debate, devido precisamente ao “seu pendor dialógico, o seu estilo simples e a sua adequação ao modo argumentativo” (Cristo, 2008: 73).

De facto, as cartas dos leitores na imprensa podem também ser definidas como textos que se enquadram dentro do género de opinião, enquanto discurso que tem como função principal a expressão e a comunicação persuasiva de opiniões (cfr. van dijk, 1983: 171). por isso, é possível olhar para as cartas como textos argumentativos, tendo como propósito a persuasão (cfr. pillon, 2005: 4), uma vez que “são desenhadas para convencer os leitores da aceitabilidade de um ponto de vista e estimulá-los para um determinado curso de acção imediato ou futuro” (Atkin et al., 2007: 3). sendo textos de estrutura argumentativa que pretendem alcançar e persuadir um público mais vasto, as cartas dos leitores, dentro do espaço da imprensa, possuem um valor perlocutório, tendo como objectivo incitar o destinatário e o receptor a tomar uma posição ou mesmo a agir (cfr. Cristo, op. cit.: 70).

uma das características que atrás mencionamos a propósito da forma epistolar é o facto de a carta esperar sempre uma resposta, um acto de reciprocidade. no caso das cartas dentro do contexto da imprensa essa reciprocidade assume um carácter diferente. “se é certo que, ao contrário das cartas privadas, a carta pública não exige uma resposta imediata, até por ser dirigida a mais do que um destinatário, apesar de tudo acreditamos que, quando se opta por este tipo de intervenção pública, espera-se sempre uma reacção, também ela pública, que seja suficiente para alimentar a polémica, permitindo a troca de ideias e a concretização do debate” (ibidem: 274).

sendo verdade que, com alguma frequência, as cartas dos leitores publicadas nos jornais são alvo de uma resposta, por parte de outro leitor, jornalista ou até mesmo do director, o mesmo já não se poderá dizer das cartas não publicadas. no nosso estudo de caso sobre o jornal Público, verificámos que as cartas que não são seleccionadas para as páginas do jornal caem numa espécie de vazio – por um lado, não adquirem publicidade ou visibilidade que lhes permita serem alvo de uma resposta por parte do público; por outro, e acima de tudo, o próprio jornal demite-se da tarefa de dar uma resposta ao leitor, explicativa dos motivos que levaram à exclusão da sua carta (cfr. silva, 2007: 80 e 114). Que estatuto terá, então, uma carta não publicada, quando não atinge um receptor mais plural e quando não lhe é permitido activar uma reciprocidade? Que consequências

terá na sua eficácia? São duas questões cuja resposta permanece, por agora, em aberto, e a que tentaremos responder ao longo deste trabalho.

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 116-122)