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Movimentos alternativos: jornalismo cívico e jornalismo participativo

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 171-176)

a relatório da Comissão Hutchins teve, como vimos, efeitos consideráveis ao nível das funções que se pretenderiam para os media, enfatizando a importância da sua responsabilidade social e do escrutínio público das suas actividades. Nos finais dos anos 80, nos Estados Unidos, a própria comunidade jornalística, descontente com o rumo que a profissão estava a tomar, dá início a um novo

movimento, o jornalismo cívico4, que, de certa forma, implica um regresso à ideia de “accountability” preconizada pela Comissão Hutchins no final dos anos 40 (cfr. bertrand, 1998: 120).

Mário Mesquita explica a emergência deste programa jornalístico através de três ordens de factores: a influência das teorias do comunitarismo, oriundas da filosofia política; a crítica ao comportamento dos jornalistas perante a política e a sua atitude de cepticismo sistemático; e a crise de credibilidade dos media, que estava a ter efeitos ao nível do mercado e da diminuição do interesse dos cidadãos pela vida pública (cfr. Mesquita, 2003: 61 e 66). o mesmo autor associa a experiência do jornalismo cívico às especificidades da sociedade norte-americana, cuja ideia de comunidade tem uma importância na história dos estados unidos.

Tendo a intenção de se constituir como uma alternativa às práticas jornalísticas tradicionais (cfr. baker, 2002: 159), o jornalismo cívico teve a sua primeira experiência no jornal Columbus Ledger-Inquirer, do estado da georgia, em 1988 (cfr. Haas et al., 2001: 139), mas desenvolveu-se sobretudo na década de 90, chegando a mais de 100 redacções de jornais e rádios locais, em cidades de média dimensão (cfr. Mesquita, op. cit.: 61). Jay rosen e david Merritt são considerados como os autores pioneiros do jornalismo cívico. nos estados unidos, este movimento deu ainda origem a dezenas de fundações com programas de treino para jornalistas de todas as idades, como por exemplo o “Poynter Institute for Media Studies”, o “Newspaper Management Center”, o “Pew Center for Civic Journalism” ou o “New Directions for News” (cfr. bardoel et al., 2004: 186).

o jornalismo cívico, cujos objectivos e postura são bastante inovadores, advoga uma maior diversificação das fontes, bem como uma maior ligação com as preocupações e necessidades do público, procurando reforçar o conceito de cidadania e melhorar o debate público (rosen, 1994: 373). para os autores deste movimento, o jornalismo tem ignorado as suas obrigações de fomentar uma vida pública efectiva, mas ele pode e deve ser uma “força fundamental” na sua

4) este movimento jornalístico tem outras designações, além de jornalismo cívico (“civic journalism”), tais como jornalismo público (“public journalism”) ou jornalismo comunitário (“communitary journalism”).

revitalização, mais do que simplesmente cobrir acontecimentos (cfr. Haas et al.,

op. cit.: 124). este movimento concebe, pois, o público não como consumidor

mas como actor na vida democrática, devendo assim o jornalismo estabelecer ligações com os cidadãos, adquirindo um papel mais activo na construção de um espaço público mais vibrante na resolução dos problemas da comunidade. rosen associa o jornalismo cívico à disponibilidade para “quebrar com velhas rotinas, um desejo de ‘estar ligado de novo’ com os cidadãos e as suas preocupações, uma ênfase na discussão séria como actividade principal na política democrática, e um foco nos cidadãos como actores do drama público em vez de espectadores” (rosen, op. cit.: 376).

Podemos afirmar que o jornalismo cívico reafirma as responsabilidades sociais do jornalismo, numa óptica de aperfeiçoamento da democracia (cfr. Mesquita, op. cit.: 68), numa era mercantilista em que nas salas de redacção das empresas jornalísticas a lógica do lucro exerce uma influência cada vez mais significativa nas decisões editoriais. Segundo Claude-Jean Bertrand, o jornalismo cívico não cura todos os males dos media, mas pelo menos pode ajudá-los a tornarem-se melhores (cfr. bertrand, 1998: 121).

nessa sequência, o jornalismo cívico representa um importante contraponto às rotinas cristalizadas que dominam a actividade jornalística, à busca incessante de notícias, à atitude algo cínica para com a vida política, à dependência excessiva das fontes oficiais e ao desprezo em relação aos cidadãos enquanto participantes activos na vida pública. aliás, uma das críticas que o jornalismo cívico faz ao jornalismo dito convencional é a determinação da agenda jornalística por entidades que não os cidadãos, pelo que propõe uma reformulação da agenda jornalística, conferindo mais destaque às problemáticas que interessam e preocupam os indivíduos pertencentes a uma colectividade.

nesse sentido, os valores e as práticas do jornalismo cívico cabem mais numa imprensa de tipo local, dirigida para um conjunto mais restrito de indivíduos, integrados numa comunidade menor. Também os métodos utilizados para auscultar as preocupações dos cidadãos e as soluções que estes propõem para os problemas são distintos do jornalismo convencional – são frequentemente utilizadas a conversação face-a-face, as mesas redondas, os fóruns comunitários

ou reuniões de cidadãos, grupos de foco (“focus groups”), painéis ou questionários (cfr. Haas et al., op. cit.: 125; Mesquita, 2003: 61; neveu, 2005: 126).

o movimento do jornalismo cívico não é, porém, isento de críticas, por parte da comunidade jornalística. a objectividade é talvez o ponto causador de maior controvérsia. para os preconizadores do jornalismo cívico, o conceito de objectividade é responsável pela valorização da noção de afastamento ou “detachment”, ou seja “um tipo de cegueira acerca de coisas específicas, uma incapacidade instruída para compreender uma parte do nosso ambiente e as pessoas envolvidas nele” (Merritt, 1995: 19).

no entanto, na opinião dos jornalistas cépticos em relação a este movimento, o jornalismo cívico poderá conduzir à perda de um dos aspectos mais fundamentais que integram o capital acumulado da actividade jornalística, ou seja, a independência dos jornalistas, por desenhar um novo perfil de “jornalista- participante”, em detrimento do “jornalista-observador” (cfr. Mesquita, 2003: 67). alguns autores referem outros pontos negativos em relação ao jornalismo cívico: a sua dificuldade em ser transposto para media de carácter nacional e a sacralização da decisão da maioria, subestimando as diferenças sociais e criando um falso sentimento de envolvimento participativo sem desafiar os interesses das elites (cfr. neveu, 2005: 126; baker, 2002: 163).

a par do jornalismo cívico, surgem mais alternativas para melhorar a relação interactiva dos media com a audiência, com as experiências de “user-generated content” (conteúdo gerado pelos próprios utilizadores), cada vez mais presentes nos meios tradicionais – por exemplo, quando os websites dos jornais ou dos canais de televisão solicitam aos seus utilizadores o envio de fotografias quando os jornalistas não se encontram no local (cfr. fidalgo, 2007a: 2). as organizações jornalísticas têm também criado ferramentas de feedback instantâneas e visíveis, de modo a possibilitar informação adicional, ângulos alternativos e correcção de erros por parte do público (Keyser e raeymaeckers, 2010: 4), o que poderá permitir “conferir uma agilidade ao jornalismo que incrementa a sua sensibilidade para fenómenos periféricos, por vezes escassamente captáveis pelas práticas e fontes institucionalizadas” (Correia, 2010: 93).

existem, por outro lado, jornais online, exclusivamente feitos com as contribuições dos cidadãos (integrando-se no que se denomina como “jornalismo-

cidadão”5), dando relevo a temas e a factos que dificilmente chegariam aos grande media6. Talvez o exemplo mais conhecido deste tipo de experiências seja o jornal online sul coreano Ohmynews, com mais de 37 mil utilizadores registados (cfr. Thurman, 2008: 140). a ideia da criação do site partiu de oh Yeon-ho que, em 1994, escreveu um artigo sobre o massacre de civis sul- coreanos por soldados norte-americanos, durante a guerra da Coreia, numa revista alternativa do país; quando foi publicada, a sua reportagem teve pouco impacto, mas, em 1999, a história foi retomada por jornalistas da Associated

Press, ganhando bastante repercussão a nível mundial, nos media “mainstream”.

Oh Yeon-ho compreendeu, na altura, que o impacto de uma “estória” não tinha tanto a ver com o seu valor intrínseco, mas sobretudo com o meio em que era publicada (cfr. Hauben, 2007: 20). por isso mesmo, o jornalista resolveu criar o

Ohmynews, de forma a introduzir alterações no panorama noticioso da Coreia

do sul. em 2002, o site teve efeitos surpreendentes, quando ajudou a colocar no poder um candidato presidencial (roh Moo-huyn), longe de ser considerado favorito pelos meios mais convencionais.

actualmente, assim, devido aos desenvolvimentos tecnológicos e ao desenvolvimento da internet, os media tradicionais partilham o seu espaço com uma enorme variedade de produtores de conteúdos online, aproveitando esta tendência por razões defensivas, como maneira de lidar com as novas possibilidades de comunicação pública, melhorando, simultaneamente, a relação com as suas audiências (cfr. fidalgo, op. cit.). Com a sua oferta de mais possibilidades de participação ao nível do debate público, a internet veio

5) Em inglês, “grassroots journalism” ou “citizen journalism”.

6) Com base na pesquisa desenvolvida para a sua tese de mestrado, na universidade do Minho, rui Couceiro faz uma útil distinção entre jornalismo participativo, o qual parte da iniciativa dos media convencionais, ao permitir a colaboração dos seus destinatários no processo noticioso (através do envio de “estórias” ou fotografias), e jornalismo amador, cuja iniciativa reside nos próprios cidadãos e não por convite da comunicação social (cfr. Couceiro, 2009: 4359 e 4360), diferenciação que também é feita por peter dahlgren (2009), com base na tipologia de nip (2006). alfred Hermida sintetiza os pontos essenciais do que denomina como jornalismo participativo: os processos e os efeitos das contribuições dos cidadãos na recolha, selecção, publicação, distribuição e discussão das notícias no âmbito dos media convencionais, abrangendo formas participativas que vão desde os blogues aos comentários às notícias e às redes sociais (Hermida, 2011: 15 e seguintes).

introduzir importantes mudanças não só na própria actividade jornalística, mas também na forma como os media se relacionam com os seus públicos.

novas tecnologias e oportunidades de participação nos

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