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Tolerância ou consenso? a questão do pluralismo

De que forma é que a teoria deliberativa da democracia lida com o conflito, a complexidade social ou a diversidade?

até agora, sublinhou-se a importância dos debates que antecedem a tomada de decisão. Mas e se os participantes tiverem opiniões diferentes, irreconciliáveis? Podemos falar em conflitos irreversíveis em democracia?

e será que o objectivo da deliberação é o consenso, ou algo mais fraco como o compromisso entre interesses divergentes ou a cooperação entre os participantes?

Joshua Cohen concorda com rawls, ao considerar que o debate político deve ser conduzido segundo considerações sobre o bem comum.Mesmo um esquema pluralista ideal, com igualdade de poder e sem barreiras de acesso, não é passível de fazer avançar o bem comum se se basear num princípio de diferença.

James bohman, por seu lado, propõe-nos uma interessante perspectiva sobre estas questões. Para este autor, o conflito é central na deliberação, desde que

não seja minado por desigualdades comunicativas e por distorções ideológicas. Por isso mesmo, Bohman defende uma “concepção deliberativa de tolerância” (bohman, 2003: 87), rejeitando o desejo de uma comunidade unitária – até porque o próprio desentendimento pressupõe uma base de comunicação comum para os diferentes grupos culturais. “poder-se-ia, neste ponto, dizer que a democracia deliberativa estipula uma solução que ao invés de simplificar a escolha, complexifica-a” (Carreira da Silva, 2004: 7).

segundo Jorge valadez (apud bohman, 2003: 86 e seguintes), a diversidade cultural traz desafios à participação política. O liberalismo tende a ignorar esta dimensão do pluralismo, devido ao seu apelo à neutralidade. bohman partilha a visão de valadez, mas encara o pluralismo como algo mais multidimensional, que vai além dos valores irreconciliáveis, para abranger também os factos da globalização, a interacção crescente entre as culturas e a imigração cada vez maior. devido ao pluralismo multidimensional dos dias de hoje (diferentes tipos de diversidade, cultural, epistémica e social, o que gera diversas formas de conflitos), o ideal da razão pública torna-se reflexivo e as condições do uso do poder público têm de ser transformadas.

Bohman parece concordar com o princípio de “igualdade de eficácia política” preconizado por Cohen, ou seja, a capacidade igual dos cidadãos para atingir influência política em todas as decisões que os afectem. Por isso mesmo, segundo a concepção deliberativa de tolerância, os que são tolerados têm de ser vistos como iguais e têm de ver que as suas convicções possuem o mesmo valor público que as razões dos outros. Esta concepção é reflexiva devido ao seu apelo a um processo livre e aberto de deliberações e porque liga a tolerância a normas e obrigações da comunicação pública.

a tolerância deliberativa também está conectada com a comunicação, de três formas: “é uma atitude perante as razões dos outros”, ou seja, estas devem ser tomadas a sério, mesmo que sejam criticadas ou rejeitadas; é também “uma atitude perante os locutores”, entendidos como iguais; por fim, é “uma atitude perante as perspectivas daqueles a quem se tenta justificar uma decisão numa deliberação”. Por isso mesmo, a intolerância significa uma falha no “ver a perspectiva do outro” (ibidem: 93). isto requer que, sempre que os cidadãos entrem na deliberação, estes tenham a expectativa razoável de que as suas razões

possam ser adoptadas pelos outros participantes no debate. até porque, para a democracia deliberativa, é crucial que os cidadãos testem as suas razões num fórum público antes da tomada de decisão, forçando-os a “justificar as suas decisões e opiniões apelando ao interesse comum ou debatendo em termos de razões que ‘todos possam aceitar’ no debate público” (idem, 2000: 5).

podemos, desta forma, relacionar esta proposta de bohman sobre a tolerância com a corrente de pensamento do interaccionismo simbólico, da escola de Chicago, no campo das ciências sociais, preconizada por autores como g. H. Mead, Charles Cooley, Herbert blumer ou John dewey – segundo o entendimento de sociedade proposto por estes pensadores, cada indivíduo alinha a sua acção segundo a acção do outro, tomando em consideração o que este vai ou pretende fazer; isto é feito através da tomada em linha de conta das acções dos outros (“taking the role”), quer de uma pessoa em particular, quer de um grupo (o “outro generalizado”). No fundo, é o comportamento intersubjectivo que força o sujeito a consciencializar-se de si próprio, no momento em que há necessidade de soluções para os problemas.

por um lado, a tolerância exige que os cidadãos se preocupem com os aspectos formais do debate. As razões dos outros não podem ser desqualificadas a priori. ser tolerante não exclui a crítica, mas pelo contrário exige-a (escrutínio crítico do público). por outro lado, antes de mais nada, as perspectivas dos outros (que estão por detrás das suas razões e argumentos) têm de ser reconhecidas como legítimas. a tolerância exige, então, reconhecer os outros como membros iguais de uma comunidade política; esta pertença é mais forte que os conflitos.

o autor distingue-se, portanto, dos autores que defendem uma perspectiva procedimental da democracia deliberativa, os quais definem o sucesso da deliberação como a concordância, o consenso entre todos os participantes. para bohman, o objectivo da deliberação não é o consenso, mas sim manter a comunicação pública e as relações sociais igualitárias, ou seja, manter um conjunto de instituições formais e práticas informais de tolerância, de cooperação. a tolerância não é meramente uma atitude neutral, mas sim “a atitude comunicativa que leva a sério as razões dos outros e os reconhece como os destinatários dos princípios justificativos da tolerância” (idem, 2003: 102),

podendo até contribuir para uma maior consciencialização das partes em conflito (cfr. Carreira da silva, 2004: 10).

Estes aspectos são fundamentais na reflexão que queremos aqui propor. Com efeito, podemos perspectivar a secção de correspondência na imprensa como um potencial espaço de tolerância, num sentido social mais geral, se tomarmos em consideração a sua virtual estrutura comunicacional – todavia, a sua concretização prática está sujeita a diversas contingências, presentes desde logo nos processos de selecção e de edição dos textos dos leitores. não obstante a existência desses critérios de inclusão e de exclusão, o que nos importa aqui analisar é a forma como as cartas que são enviadas para uma determinada publicação são encaradas. será que podemos falar de um princípio de tolerância em relação às cartas, tal como ele é definido por Bohman? Será que as razões dos leitores são tomadas a sério, mesmo que a carta seja rejeitada para publicação? será que os leitores-autores de cartas são, na sua totalidade, entendidos como membros de uma comunidade política em posição de igualdade uns perante os outros? e de que forma o(s) conteúdo(s) das cartas evidencia(m) esse mesmo espírito de tolerância?