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os media e o jornalismo, hoje

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 148-156)

enquanto, nos séculos xvii e xviii, as organizações jornalísticas constituíam agentes de reforma e revolução, desempenhando um papel fundamental na crítica aos poderes vigentes, a imprensa passa a constituir, a partir de meados do século xix, uma organização de negócio, acompanhada pelo crescimento de uma indústria noticiosa dinâmica (cfr. Mcnair, 1998: 112 e 123). a partir da década de 1830, podemos falar de uma comercialização da imprensa, a partir da emergência da “penny press”, marcadamente distinta da imprensa de opinião setecentista. Em 1833, surge o primeiro “penny paper”, o norte-americano The

New York Times, seguido do Boston Daily Times, que chega às bancas em 1836.

os desenvolvimentos tecnológicos, em particular dos caminhos-de-ferro e do telégrafo, tiveram um papel fundamental no aumento da circulação e na acessibilidade económica dos jornais durante o século xix, assim como o incremento da literacia das populações. a chegada da publicidade comercial à imprensa constituiu, neste contexto, um factor decisivo na alteração da lógica de funcionamento da imprensa. Com o aumento exponencial das suas tiragens, o jornal passou a configurar-se como um bem que atrai investidores e como oportunidade de negócio rentável, tendo como objectivo a obtenção de lucro. o surgimento de uma nova forma de financiamento – a publicidade comercial – tem ainda efeitos ao nível da autonomia dos jornais em relação aos partidos políticos, sendo que os primeiros deixam de depender financeiramente dos segundos para a sua sobrevivência e manutenção (cfr. Traquina, 2002: 22). a lógica comercial e as regras do mercado passam, então, a caracterizar a imprensa, a qual, em termos de apresentação e de conteúdo, sofreu diversas transformações, de acordo com as exigências (reais e pressupostas) das audiências (cfr. Mcnair, op.cit.: 112).

posteriormente, a rádio, o cinema ou a televisão nascem, eles próprios, dentro de uma lógica de organização comercial, onde a questão da rentabilidade é prioritária. podemos, assim, dizer que as condições criadas pela imprensa de massa e as inovações subsequentes tornaram a comunicação pública um negócio muito lucrativo (cfr. McQuail, 2003: 37). actualmente, os media são inequivocamente configurados numa racionalidade empresarial, enquanto

fontes de investimento e de emprego (cfr. Cottle, 2003: 3), tendo como fim a maximização dos seus benefícios (cfr. aznar, 2005: 61).

não obstante o facto de as indústrias de media serem distintas de outros negócios, uma vez que produzem bens e conteúdos simbólicos por natureza (cfr. Cottle, op. cit.: 4), não podemos esquecer que a maioria das acções das empresas de media, sobretudo em contexto norte-americano, mas também noutros contextos, são detidas por um pequeno número de grandes corporações que, habitualmente, não têm um grande interesse económico no jornalismo ou no campo da comunicação enquanto tal, mas sim noutros mercados, como o petróleo, a electricidade ou o entretenimento, tendo como objectivo prioritário a obtenção de uma rentabilidade elevada e, como consequência, uma mudança dos valores e princípios da actividade jornalística com esta lógica de mercado expansiva (cfr. Wahl-Jorgensen et al., 2000: 32; aznar, 2005: 80 e 81). no entanto, o fenómeno da concentração não é exclusivo das empresas de media, representando uma tendência mais geral da economia capitalista (cfr. aznar, op.

cit.: 79).

Para Hugo Aznar, a procura de lucro decorrente da configuração empresarial dos media não tem de ser deontologicamente inaceitável e até poderá ser positiva em alguns aspectos. por um lado, pode favorecer a independência face ao poder político; por outro, a existência de concorrência obriga o produtor a embaratecer e a melhorar o seu produto, estimulando assim a diversificação. No entanto, o autor sublinha que o aumento das pressões concorrenciais e a procura de rentabilidade a curto prazo tem um forte reverso da medalha – o derrubar de diversas barreiras éticas (cfr. ibidem: 63-66).

o impacto das forças económicas tem, assim, consequências na qualidade do jornalismo praticado actualmente, afectada pela necessidade das organizações noticiosas em competir de acordo com critérios comerciais (cfr. Mcnair, op. cit.: 102). a lógica comunicacional só se torna produtiva se houver uma acessibilidade económica dos próprios produtos; por outro lado, a mensagem deve ser apelativa, agradável e atraente, de forma a proporcionar a adesão do maior número possível de pessoas. podemos dizer, aliás, que a estrutura empresarial dos media constitui um impedimento à sua própria diversidade, impondo uma determinada forma de processar a comunicação e uma homogeneização dos conteúdos.

A organização económica do jornalismo pôs, então, à prova e redefiniu as normas da profissão, cada vez mais divorciadas da ideia de responsabilidade cívica (cfr. Kovach et al., 2004: 15 e 30), sacrificando o papel normativo do jornalista em nome das necessidades comerciais da organização que o emprega (cfr. Mcnair, op. cit.) e, também, a missão de serviço público em prol da expansão das margens de lucro da empresa jornalística (cfr. scott, 2005: 90). Com efeito, a lógica do campo jornalístico, hoje em dia, caracteriza-se pela disputa de audiências e de “cachas”, num contexto concorrencial. Os desenvolvimentos tecnológicos, que tornaram a comunicação mais fácil e rápida, permitiram acelerar também a velocidade do trabalho jornalístico, fazendo, ao mesmo tempo, com que o valor do imediatismo e a acentuação da tendência para coberturas jornalísticas orientadas para o acontecimento se tornem fins em si mesmos, reduzindo o tempo para a tomada de decisões editoriais (cfr. Mcnair, op. cit.: 127).

segundo brian Mcnair, a lógica comercial faz com que o jornalismo passe a ser entendido como um produto com um valor de troca, o que acarreta inequívocas consequências no conteúdo, estilo e apresentação do jornalismo nas últimas décadas (cfr. ibidem: 101). sendo as organizações mediáticas empresas que precisam de sobreviver e prosperar num mercado altamente competitivo, a sua natureza é, inevitavelmente, moldada aos objectivos comerciais. por exemplo, o sociólogo francês érik neveu, ao caracterizar o jornalismo nacional de informação geral, chama a atenção para a transformação da maquete de alguns jornais, através da valorização da componente gráfica e da compactação do formato dos artigos, como consequência da perda de leitores e das crescentes dificuldades económicas que a imprensa tem vindo a enfrentar (cfr. Neveu, 2005: 42).

analisar o que as audiências querem e tentar fornecê-lo é, frequentemente, denominado de “jornalismo de mercado”1 (cfr. picard, 2006: 15). Com efeito, a competição pelas audiências tem implicações no tipo de informação jornalística, pautada por notícias mais orientadas para o mercado e por práticas outrora próprias de jornais mais populares ou tablóides, pelo que as chamadas “soft

news” podem ser encontradas num grande número de jornais, rádios e televisões (cfr. fidalgo, 2007a: 4 e 5).

analisando as notícias de vários media norte-americanos, entre 1980 e 1999, Thomas Patterson sublinha a presença constante das “notícias leves”, em detrimento das “notícias sérias”, sendo as primeiras “notícias que são tipicamente mais sensacionalistas, mais centradas numa personalidade, menos localizadas no tempo, mais práticas e mais baseadas em incidentes” (Spragens

apud patterson, 2003: 23). para o autor norte-americano, a presença crescente

das “soft news”, além de ter introduzido mudanças significativas ao nível do vocabulário jornalístico (aumento da referência à primeira pessoa ou a maior brevidade das notícias), tem um custo para a democracia e para a qualidade da informação, pelo que implica de enfraquecimento dos temas de interesse público e político.

A expressão “jornalismo de mercado” exprime, assim, o facto de a procura de uma rentabilidade máxima ter redefinido as práticas jornalísticas. Jean Charron e Jean de bonville (1996) propuseram, aliás, que se visse nestas transformações a emergência de uma nova geração do jornalismo, caracterizada por uma “hiperconcorrência” entre publicações, meios de comunicação social e mensagens, bem como uma valorização das “notícias leves” e da informação- serviço, ou seja, informação utilitária como roteiros, meteorologia ou cotações da bolsa, hoje em dia banais em vários media (apud neveu, 2005: 119 e 120). a pressão económica sobre os media implica, por outro lado, um esbatimento de fronteiras entre a área editorial e o departamento comercial (cfr. scott, op.

cit.; fidalgo, op. cit.: 4). no caso da imprensa (mas também noutros media), a

publicidade acaba por ter uma influência preponderante na linguagem dos jornais, nomeadamente no conteúdo não publicitário, através das pressões directas e indirectas que se exercem sobre os proprietários e gestores dos media (cfr. Wahl- Jorgensen et al., 2000: 30) e, ainda, através da invasão de peças publicitárias em zonas tipicamente reservadas às notícias (cfr. fidalgo, op. cit.).

Quando o dinheiro e a procura de lucro se transformam no veículo principal de regulação do discurso público, a busca pelo entendimento mútuo e pelo interesse comum diminui (cfr. Wahl-Jorgensen et al., op. cit.: 24). a prevalência dos critérios de marketing e das decisões do mercado sobre a actividade jornalística

acarreta, em certa medida, um empobrecimento do discurso dos media, que frequentemente recorre a estratégias como o sensacionalismo como recurso para aumentar o interesse das audiências (cfr. aznar, 2005: 69). as notícias são tratadas sobretudo como uma “commodity”, ou seja, um produto para venda, com valor comercial (cfr. baker, 2002: 297; McManus, 2008: 219).

Mas não são apenas os conteúdos e a forma do jornalismo que são afectados pela configuração empresarial dos media; a lógica comercial faz com que os receptores da mensagem jornalística sejam muitas vezes entendidos pelos media como “clientes” ou “consumidores” (cfr. Aznar, op. cit.: 67 e 68; Wahl-Jorgensen

et al., op. cit.: 27 e 28). adicionalmente, “a maior parte dos empresários da

comunicação ainda considera os media como propriedade exclusivamente sua: o público deve limitar-se a decidir se compra ou não o produto, mas não pode exigir mais nada, e menos ainda pretender participar” (Aznar, op. cit.: 183 e 184).

no entanto, e apesar de tudo, os media não podem (e não devem) fechar-se em relação à participação do público, sob pena de colocarem em risco as suas próprias legitimidade e credibilidade. “é legítimo esperar que as organizações que nos fornecem a informação criem vários canais através das quais possamos interagir com elas, que podem assumir o formato de cartas, mensagens de email, contactos telefónicos, espaço destinado a textos de opinião de convidados, oportunidades para sugerir temas de reportagem e um provedor do leitor” (Kovach et al., 2004: 204).

os media compreendem, assim, que a inclusão do público no processo de comunicação, não obstante a posição “subalterna” a que estão condenados os receptores da mensagem jornalística, é um factor de legitimação da sua própria actividade que não pode ser ignorado. “parece-nos razoável pensar que os jornalistas e as empresas tenham mais a ganhar que a perder se acolherem a participação do público como um contributo para redefinir o lugar do jornalismo e o papel dos jornalistas” (Oliveira, 2007: 296). Por outro lado, para Hugo Aznar, a participação do público deve constituir também uma obrigação. “é certo de que dispõe de pouca margem para o fazer, mas na medida em que pode escolher e agir, por pouco que seja, também tem uma parte da responsabilidade na tarefa

de melhorar a comunicação, de se esforçar para que ela se ajuste mais aos seus valores e princípios éticos” (Aznar, 2005: 189).

podemos dizer que, no campo jornalístico, há uma colisão ou uma tensão entre dois tipos de exigências – as que derivam da configuração empresarial dos media e as que se devem ao facto de os meios de comunicação social lidarem com um bem fundamental, a difusão de informação e a prestação de um serviço público fundamental à sociedade (cfr. Kovach et al., 2004: 188; aznar, op. cit.: 61). esta tensão entre necessidades comerciais e éticas, surgida já no século xix, tornou-se uma fonte de disrupção no jornalismo após os anos 70 (cfr. o’Malley, 1997: 183).

à subordinação a uma lógica de mercado, com uma informação dirigida à audiência, visando a rentabilidade, opõem-se práticas que visam preservar a autonomia da produção jornalística e limitar o peso do campo económico – como a simples existência de secções ou rubricas menos rentáveis (cfr. neveu, 2005: 50). De facto, esta natureza dual dos media, configurada por exigências opostas, não constitui um impedimento total para o cumprimento das suas funções. “a resposta deve passar, então, por (...) garantir, na medida do possível, que os bens internos e os critérios éticos específicos de cada âmbito da actividade social ocupem o seu devido lugar no momento de tomar decisões e de as colocar em prática” (Aznar, op. cit.: 85). érik neveu defende, por outro lado, que a lógica do mercado não só possibilitou a renovação da cobertura dos factos sociais, mais atenta à vida do cidadão comum, mas também, com a alteração da imagem social do jornalismo, estimulou uma reflexão renovada sobre a deontologia por parte dos jornalistas, que, por sua vez, ganharam uma maior capacidade de auto-crítica e inovação (cfr. neveu, op. cit.: 124-132).

actualmente, a presença das novas tecnologias, em particular a internet e a sua introdução nos meios tradicionais, não obstante o seu potencial para a comunicação democrática, como exploraremos mais à frente neste capítulo, não serviram para alterar este panorama de crise no jornalismo (cfr. scott, 2005: 111; Curran, 2003: 227), reforçando, aliás, o modelo da economia capitalista dos media e as suas dinâmicas empresariais. Embora o conflito entre os objectivos de serviço público e a procura de rentabilidade exista desde os primórdios da “penny press”, nos últimos anos, com a intensificação da competição por

leitores e anunciantes no âmbito da internet, a interferência comercial nos media parece estar a crescer (cfr. McManus, 2008: 219). a Web 2.0 sublinha, de forma retórica, o potencial para uma participação social mais lata, mas não podemos esquecer que, por se tratar de um vasto terreno de negócio, a comercialização que caracteriza os mass media tradicionais marca também presença no ambiente online (cfr. dahlgren, 2009: 152 e 170; papacharissi, 2009: 236).

a importância crescente da internet, enquanto estrutura de baixos custos, que facilita a distribuição da informação (cfr. baker, 2002: 285), e o seu consequente peso económico, com o aumento da audiência na web, estimulou o crescimento dos investimentos publicitários – os grandes grupos de media norte-americanos, com efeito, apostam hoje em dia, também, em sectores como redes sociais, o comércio electrónico, os pequenos anúncios na web ou os sites comunitários, sendo que um dos exemplos mais evidentes e mediáticos desta estratégia consistiu na aquisição da rede social MySpace pelo grupo news Corporation de rupert Murdoch (cfr. smyrnaios, 2008: 4 e 5). nesse sentido, a concentração de propriedade também caracteriza a nova ecologia mediática – a utopia de que a internet viria desestabilizar radicalmente o mercado dos media tradicionais, tendo um efeito nivelador, não se tornou propriamente realidade, uma vez que os grandes grupos de media tiveram êxito no domínio deste novo sector (cfr. Chadwick, 2006: 293-6).

ben scott, ao traçar a história do jornalismo digital norte-americano, é bem mais radical quando afirma que a Internet veio agravar a crise do jornalismo actual, agudizando a colisão entre a procura de lucro e as exigências de um serviço público. “nunca antes as contradições entre o capitalismo e o jornalismo democrático pareceram tão evidentes – a realidade é que a promessa vazia de uma esfera pública revitalizada deu lugar a um oligopólio de notícias ainda mais estreito” (Scott, 2005: 92). James Curran defende, aliás, que o desenvolvimento da internet e das novas tecnologias permitiu expandir a hegemonia das organizações jornalísticas mais proeminentes, tendo em conta as estatísticas relativas aos

websites mais visitados em todo o mundo entre 2011 e 2012 (Curran, 2012: 19).

um dos elementos do novo modelo de negócios dos media consiste na convergência, enquanto estratégia na gestão económica da produção e distribuição da informação (cfr. scott, op. cit. : 101). “a convergência empresarial dos media

convencionais e a necessidade de aproveitar as sinergias mútuas e de embaratecer os custos de produção potenciaram a figura do jornalista multimedia” (Bastos, 2008: 105). a redução do número de jornalistas a cobrir uma determinada “estória”, além de favorecer a diminuição das despesas, pode também ter efeitos negativos ao nível da homogeneização dos conteúdos e da qualidade informativa. Para John McManus, esta “racionalização económica” do jornalismo foi, num primeiro momento, exacerbada pelo advento da televisão e, mais tarde, pela Internet, tendo como consequências o declínio da sua função de “watchdog” e a erosão dos standards éticos (cfr. McManus, 2008: 220). o conteúdo noticioso

online é, também ele, um jornalismo fortemente orientado pelos valores do

mercado, parecendo agravar as tendências de valorização do “infotainment” e do imediatismo. Cada tópico e cada jornalista estão sujeitos a um implacável cálculo de mercado, na medida em que, por exemplo, os mecanismos que contam as “page views” permitem aos gestores, aos editores e aos anunciantes verificar quantos leitores visitam cada notícia e quanto tempo permanecem em cada uma delas (cfr. scott, op. cit.: 110). por outro lado, na internet, há uma maior proximidade entre os conteúdos editoriais e publicitários, o que acaba por questionar a separação sagrada entre essas duas dimensões (cfr. pavlik apud bastos, op. cit.: 120).

em termos de uma abordagem do ponto de vista da economia política dos media, a Internet gerou forças contraditórias, que reforçam ou desafiam o

status quo (cfr. Chadwick, 2006: 316). Como veremos mais adiante, quando

abordarmos os novos dispositivos de participação emergentes das novas tecnologias, a internet pode contribuir para uma esfera pública mais pluralista, ainda que os constrangimentos económicos ou a dificuldade de adaptação dos meios tradicionais às suas potencialidades interactivas constituam sérios obstáculos à sua plena concretização.

Temos, então, de ter em conta a configuração empresarial dos media para observar as tentativas de resposta a essa tensão, já referida, entre duas lógicas com propósitos distintos, mas também à chamada “crise” na relação dos media (e, consequentemente, do jornalismo) com o seu público. são precisamente essas respostas e alternativas, sublinhando particularmente as que derivam da iniciativa dos próprios media, que abordaremos em seguida.

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 148-156)