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Públicos e processos de massificação

Definimos, até aqui, os públicos como uma determinada forma de se estabelecerem relações de interdependência social, constituída pela reunião de pessoas privadas, não necessariamente física, havendo entre estas um reconhecimento na base de idiossincrasias comuns e de afinidades electivas. Mas como é que podemos perspectivar os públicos dentro de um contexto mediático marcado por processos de massificação? Será que os públicos estão condenados a desaparecer?

Com o desenvolvimento económico das sociedades capitalistas, ocorre uma transformação profunda na forma como os indivíduos se relacionam com as diferentes esferas sociais. se, por um lado, ocorre um alargamento exponencial em termos de participação política, com a consolidação das democracias nas sociedades ocidentais, esse mesmo alargamento coloca em risco os princípios basilares de funcionamento da chamada esfera pública política do século xviii, tal como Habermas a perspectivou.

Gustave Le Bon, médico francês, foi um dos primeiros autores, nos finais do século XIX, a reflectir sobre a ascensão de uma nova forma de sociabilidade, a multidão, um conceito que, podemos dizer, é precursor da noção de massa. na obra de 1895, Psicologia das Multidões, le bon caracteriza as multidões como formações sociais de carácter instável, provisório e compostas por elementos heterogéneos, características da sua época, a qual, segundo o autor, se estaria a transformar numa era das multidões. O autor francês identifica algumas características das multidões, nomeadamente no que diz respeito à sua

performatividade: a incapacidade “de ter qualquer opinião para além daquelas que lhes são sugeridas” (Le Bon, 1980: 18), bem como a existência de uma personalidade inconsciente e a orientação dos sentimentos e dos pensamentos numa só direcção (cfr. ibidem: 24), através da “sugestão e do contágio” (ibidem: 31).

le bon fala, também, da repetição como um processo que visa incutir, no espírito das multidões, ideias e crenças, a par da sugestão e do contágio. o autor refere, a esse propósito, a força espantosa da publicidade. “depois de lermos ou ouvirmos cem vezes que o melhor chocolate é o chocolate da marca x, imaginamos que isso nos foi demonstrado frequentemente e acabamos por estar convencidos de que isso é verdade (...). à força de vermos repetida num jornal a afirmação de que A é um patife e B é um homem honesto, acabamos por ficar convencidos disso, a menos que, bem entendido, não tenhamos lido já muitas vezes noutro jornal a opinião contrária. Só a afirmação repetida tem poder bastante para combater outra afirmação repetida” (ibidem: 125).

parece, igualmente, evidente que le bon não se refere à multidão como uma formação social que se caracteriza pela partilha de um mesmo espaço físico – essa contiguidade entre os indivíduos pode existir, mas o conceito de multidão em le bon aparenta ser mais lato. “o desaparecimento da personalidade consciente e a orientação dos sentimentos e dos pensamentos num mesmo sentido, primeiras características da multidão que se organiza, nem sempre implicam a presença simultânea de vários indivíduos no mesmo lugar. Milhares de indivíduos separados podem, em dado momento, sob a influência de certas emoções violentas, por exemplo de um grande acontecimento nacional, adquirir os caracteres de uma multidão psicológica” (ibidem: 24). por isso mesmo, podemos inferir que o conceito de “multidão psicológica” antecipa o termo de massa, até porque esta forma de sociabilidade possui algumas características próprias da multidão, como le bon a caracterizou, tal como a irracionalidade ou a passividade dos seus membros.

o conceito de multidão em le bon é, por isso, sociologicamente distinto do conceito de multidão em gabriel Tarde – para este último autor, as multidões são formas de sociabilidade do passado e distinguem-se dos públicos não só pelas suas características intrínsecas, mas também por exigir contacto físico entre

os seus membros. “diz-se: público de um teatro, público de uma assembleia qualquer; neste caso, público significa multidão. No entanto (...), a idade moderna, desde a invenção da imprensa, fez nascer uma espécie de público muito diferente, que não pára de aumentar e cuja extensão é indefinida, e que é um dos traços mais vincados da nossa época” (Tarde, 1986: 43). À semelhança de Tarde, daniel dayan refere que um público não faz depender a sua existência de uma localização física determinada, sendo disperso por natureza; aliás, a emergência dos media de massa tornou as formas de sociabilidade contíguas (partilha de um mesmo espaço) obsoletas ou ocasionais (cfr. dayan, 2005: 48 e 49).

para Tarde, a multidão não pode ampliar-se mais do que permite o instrumento da voz humana; pelo contrário, o material expressivo do público tem uma difusão em número e um alcance no espaço indefinidos, nomeadamente após o desenvolvimento dos transportes e das comunicações que facilitaram a chegada dos jornais a milhões de leitores (cfr. Terrón, 1986: 32). segundo o autor francês, podemos pertencer simultaneamente a vários públicos, mas só se pode pertencer a uma única multidão, em cada momento.

por isso mesmo, para Tarde, a imprensa é o agente da comunicação à distância, cujos conteúdos alimentam e estimulam as consciências do público. “o público só pode começar a aparecer a partir do primeiro desenvolvimento da invenção da imprensa, no século xvi. o transporte de energia à distância não é nada, comparado com este transporte de pensamento à distância” (Tarde, op.

cit.: 46).

no entanto, parece vislumbrar-se, na obra de Tarde, uma ambivalência, uma espécie de tensão, própria da época em que o autor se encontrava (princípios do século xx): não obstante o reconhecimento no avanço da racionalidade, que deu origem e consolidou os públicos como formas de sociabilidade, Tarde refere, por outro lado, o surgimento de diversas formas de manipulação a que os públicos podem estar sujeitos, de certa forma assinalando os primeiros sinais das sociedades massificadas. Tal intuição de Tarde pode ser visível em passagens como esta, quando se refere ao aumento progressivo da importância dos publicistas: “não se pode negar que eles [os publicistas] formam a opinião em circunstâncias críticas: e quando acontece dois ou três chefes de clãs políticas

ou literárias aliarem-se a favor de uma mesma causa, por pior que seja, esta tem todas as probabilidades de triunfar” (ibidem: 55).

Ainda nos finais do século XIX, a penetração do mercado no universo da cultura – aquilo que podemos denominar como o surgimento do fenómeno do consumismo cultural – acarretou consequências inequívocas nas configurações sociais, provocando o desaparecimento da mediação entre público e privado, bem como o carácter emancipatório da cultura moderna. a acessibilidade, em termos económicos, aos produtos culturais torna-se mais fácil, mas as transformações não ficam por aí – os próprios bens culturais modificam-se no sentido de uma adaptação às necessidades dos indivíduos, como produtos atraentes e acessíveis em termos psicológicos, de consumo fácil e imediato. as questões associadas ao consumismo tornaram-se objecto de maior discussão sobretudo a partir da primeira guerra Mundial.

para adorno e Horkheimer, autores que podemos enquadrar no âmbito da sociologia crítica das indústrias culturais, o conformismo ou “a eterna repetição do mesmo” (Adorno et al., 1994: 178) é o resultado de uma uniformidade e de uma homogeneidade que caracteriza a cultura de massa. os produtos culturais inibem a capacidade de reflexão dos indivíduos, gerando passividade. Por isso mesmo, os públicos, enquanto agregações espontâneas e autónomas dos indivíduos, onde a sua subjectividade se pode afirmar, não fazem parte do esquema das indústrias da cultura – mas sim as massas, uma forma de sociabilidade onde as reacções são previsíveis e desprovidas de vontade própria (cfr. esquenazi, 2006a: 39).

A massificação da cultura coloca alguns problemas, sobretudo ao nível comunicacional. a recepção dos produtos culturais adquire um carácter individualista, que se esgota no próprio contacto com os objectos. a relação entre a massa consumidora e os bens culturais passa a ser apenas a de compra ou aquisição; por isso mesmo, os receptores passam a ser configurados como meros destinatários ou consumidores de mensagens.

Ao mesmo tempo que se verifica um enfraquecimento dos públicos em termos de força política autónoma, emerge a massa, enquanto nova forma de sociabilidade, que se caracteriza pela mera contiguidade dos indivíduos, desenraizados física e simbolicamente, com estados mentais frágeis. a massa é, assim, vista como o produto das novas condições das sociedades modernas,

industriais e urbanas. este crescimento da amplitude da massa deve-se sobretudo “à influência de factores responsáveis pelo distanciamento entre as pessoas e os seus ambientes de culturas e grupos locais. Migrações, mudanças de residência, jornais, filmes, rádio, educação – constituem elementos que actuaram no sentido de arrancar os indivíduos dos seus ancoradouros habituais e impeli-los em direcção a um mundo novo e mais amplo. diante deste mundo, os indivíduos têm sido levados a se ajustarem com base em escolhas amplamente pessoais. A convergência das suas escolhas tornou a massa uma influência poderosa” (blumer, 1971: 180).

para este autor, com efeito, a massa caracteriza-se por um agregado muito grande de indivíduos desvinculados e alienados, mas cuja atenção converge nalgum objecto de interesse que esteja fora do seu ambiente pessoal imediato. pelo contrário, o público, forma de sociabilidade que permite o exercício dialógico da razão, consiste num conjunto de pessoas que entram livremente numa discussão sobre um assunto público, tendo a perspectiva de avançar uma opinião, interesse, política ou proposta de mudança.

Neste contexto, caracterizado por processos de massificação, os públicos não desapareceram por completo, “mas tendem a desvanecer-se e a ver enfraquecida a força que correspondia à sua forma própria de funcionamento: sobrevivem, hoje, sobretudo como reminiscências mais ou menos nostálgicas do passado, ou então como irrupções espontâneas de novas práticas de resistência e de contestação social” (Esteves, 1997: 2). O público vê-se, então, relegado para uma marginalidade, enquanto forma de resistência aos elementos da massa.

no contexto destas transformações sociais, o jornalismo, enquanto actividade profissional dos media, foi também alvo de mutações diversas, particularmente nos seus conteúdos e na sua linguagem. no caso da imprensa, na qual a chegada da publicidade comercial implicou uma profunda mudança na sua lógica de funcionamento, as notícias passaram a ter como propósito facilitar a adesão do maior número possível de pessoas, através de um discurso imediatamente apreensível e de menor exigência. para Habermas, embora o jornal tenha sido um medium essencial na constituição do espaço público, ele passa a funcionar, na sequência destas transformações, como uma espécie de inibição da participação

dos públicos, fornecendo às massas um mero acesso ao espaço público, que perde o seu carácter político para ter como finalidade a rentabilidade.

não obstante, convém sublinhar, como já referimos, que Habermas absorveu algumas críticas que foram dirigidas à sua obra dos anos 60, nomeadamente no que diz respeito à margem de manobra existente para a formação de públicos dentro de um contexto mediático massificado. Habermas viria a reformular algum do seu pensamento sobre o assunto, atribuindo aos mass media algumas possibilidades de participação e de emancipação crítica. “apesar de manter, em termos gerais, as minhas descrições sobre as mudanças da infraestrutura de uma esfera pública infiltrada pelo poder, a análise necessita de ser revista, sobretudo a minha constatação sobre as transformações no comportamento do público (...). o meu diagnóstico sobre um desempenho linear (...) de um ‘público que debate a cultura para um público consumidor de cultura’ é demasiado simplista” (cfr. Habermas, 1992: 437 e 438). é, por isso, possível dizer que os media contêm uma encruzilhada de possibilidades que se jogam no campo do político e do social, não obstante os numerosos constrangimentos organizacionais, estilísticos e sociais que integram o próprio jornalismo como dispositivo institucional (cfr. Correia, 1998: 87).

São precisamente estas formas de “resistência”, estas brechas na lógica massificada dos media actuais, ao nível da imprensa, que queremos abordar neste livro – entendemos o espaço das cartas dos leitores como um lugar, ainda que condicionado por todos os constrangimentos inerentes à actividade mediática, onde se podem formar públicos, no mesmo sentido que gabriel Tarde e Herbert Blumer os definiram. Estes públicos, de leitores-escritores de cartas, distinguem-se nitidamente e ocupam um lugar muito específico no conjunto dos destinatários ou dos consumidores dos diversos jornais – ou melhor, das suas audiências. essa distinção é vincada, acima de tudo, pela forma como esses leitores em particular se relacionam com a imprensa: esta relação não é meramente aquisitiva, de compra do jornal (ou, num patamar mais elevado, de leitura do jornal, actividade que já implicará um esforço intelectual e dedicação temporal consideráveis), mas é sobretudo uma relação reflexiva e activa, uma vez que estes leitores mostram uma vontade e um investimento na participação, na manifestação das suas ideias, em relação a uma determinada temática.