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os públicos enquanto forma de sociabilidade

Habermas considera que a primeira manifestação do espaço público se materializa no espaço público helénico, configurado na “ágora”, lugar onde a “bios politikos” (vida pública) se efectivava. na antiguidade grega, assim, a noção de público, ligada ao espaço físico da “polis”, tinha pressuposta a ideia de que só aqui, por meio da discussão (“lexis”) e da acção comum “praxis”, tudo o que existia se “tornava público” ou visível para todos, ou seja, ganhava “publicidade”. Na base do conceito, oposto à noção de privado (ligado ao espaço do “oikos”, a que lhe correspondiam as relações de dominação e propriedade do senhor da casa sobre os escravos, as mulheres e as crianças), estão as ideias de acessibilidade, igualdade e liberdade: os cidadãosacediam igualitária e livremente a um mesmo lugar, o espaço público, para intervir na discussão política da “polis”.

A palavra “público” ganha uma nova acepção na Idade Média: o senhor “feudal” passa a deter a função de representação da ordem colectiva. Na sua acepção pré-moderna, portanto, o termo “público” corresponde à demonstração de autoridade, sendo que esta última só existia na medida em que fosse publicamente representada.

Com o desenvolvimento da burguesia e consequente desmantelamento da estrutura de poderes feudais, a noção de “público” na modernidade configura- se, simultaneamente, em contraposição e em articulação com o privado. “é esta ambivalência que estabelece o primeiro nível da mediação simbólica concretizada pelo público: a reunião das pessoas num público, o seu encontro num espaço comum (mesmo que não físico) de discussão e de acção, começa por ser uma oportunidade de afirmação individual de cada um dos participantes, um espaço de desenvolvimento da interioridade e de afirmação subjectiva de cada um dos membros do público” (Esteves, 2003b: 191).

por um lado, é notória a fronteira entre o estado, enquanto esfera de autoridade pública, e o domínio privado. Mas, por outro, deste domínio fora do estado, fazem parte a esfera privada ou íntima e também uma esfera pública, lugar de discussão política entre indivíduos, cuja subjectividade necessita de mediação pública, e vice-versa, daí a articulação profunda entre público e privado.

de forma a estudar a existência de fenómenos colectivos, que ultrapassavam o domínio individual, surgiram, nos finais do século XIX e princípios do século xx, perspectivas sobre as multidões e os públicos, desenvolvidas por teóricos como gabriel Tarde (1843-1904). para este criminologista, sociólogo e filósofo francês, que problematizou a história do público e a sua relação com as multidões, os públicos, apesar de emergirem daquelas, são um traço distintivo das sociedades modernas, definindo-se como “uma colectividade puramente espiritual, como uma dispersão de indivíduos fisicamente separados e entre os quais existe uma coesão somente mental” (Tarde, 1986: 43).

Enquanto a multidão tem características mais “animalescas”, considerada como formação social passiva e irracional, pertencente ao passado, o público situa-se num patamar mais elevado em relação à multidão. daí que, de acordo com o autor e criticando gustave le bon, já não estaríamos a viver numa era de multidões – mas sim numa era de públicos, emergente de um progresso intelectual que se fazia sentir à época de escrita da obra, progresso esse que se tinha vindo a desenvolver a partir dos meados do século xvii. pela própria biografia de Gabriel Tarde, esta reflexão que o autor empreendeu sobre a emergência e o desenvolvimento dos públicos, enquanto forma de sociabilidade, está intimamente associada à sua própria experiência pessoal, enquanto parte integrante de “públicos” como associações profissionais, tertúlias ou corporações religiosas (cfr. Terrón, 1986: 30).

Para Tarde, o público, entendido como espaço de afirmação e de esclarecimento do indivíduo, apresenta diversas características que o distinguem de formas de sociabilidade tradicionais: agregação dos indivíduos com carácter voluntário, homogeneidade simbólica, durabilidade, tolerância e cepticismo. por isso mesmo, os públicos têm também um carácter performativo, na medida em que dão origem a uma acção social reflexiva e racional, e um carácter comunicacional, tendo na sua base a troca de opiniões com base na existência de interesses partilhados. a realidade simbólica dos públicos é mediatizada, o que significa que as suas redes de interdependência dispensam a co-presença directa entre os seus membros. os públicos marcam, então, um contraste com formas de agregação tradicionais (como a família ou as relações de vizinhança), modificando a sua natureza, pela preponderância dos factores de ordem simbólica.

por isso mesmo, para gabriel Tarde, aquilo que caracteriza os públicos é a sua dispersão física, permitindo que os indivíduos estabeleçam entre si laços sociais, sem necessidade de co-presença física, mas também o seu carácter simbólico, no qual os indivíduos se agregam segundo preocupações e interesses comuns.

é necessário, igualmente, que os membros de um público partilhem um determinado grau de excitabilidade intelectual – o que desencadeia a acção, de carácter reflexivo e racional, já não é uma excitabilidade de ordem física (como, por exemplo, a irritação ou a fúria, própria das multidões), mas antes intelectual, motivada pelo interesse na discussão de uma determinada temática.

Herbert Blumer, fiel discípulo de Georg Herbert Mead e um dos principais impulsionadores da corrente sociológica do interaccionismo simbólico, refere- se, de igual forma, ao público como um agrupamento elementar e espontâneo, que existe não como resultado de um desejo, mas enquanto resposta natural a um determinado tema, assunto ou situação. a presença de uma questão e a consequente discussão em torno desse mesmo problema constitui a marca de um público, tendo assim um sentido completamente distinto do público entendido enquanto “povo” ou do “público” de uma estrela de cinema (cfr. Blumer, 1971: 181).

neste sentido, um público não constitui uma formação social pré- estabelecida, a priori, mas sim uma “entidade colectiva que, primeiramente, começa a desenvolver-se na e através da discussão (...); um público não só existe através da discussão, mas pode dizer-se que também existe na discussão” (pietilä, 2001: 17).

por outro lado, os públicos são também espaços privilegiados onde os indivíduos são convidados a desenvolver traços da sua própria subjectividade. “o agrupamento social em públicos é o que oferece aos caracteres individuais mais marcados as melhores possibilidades de se imporem e às opiniões individuais originais as melhores possibilidades de se difundirem” (Tarde, op.

cit.: 55). participar num público é partilhar uma experiência colectiva, mas o seu

dinamismo depende da força da subjectividade dos seus membros. assim sendo, um público é uma forma de projecção do privado, conferindo visibilidade às características individuais.

blumer sublinha ainda o papel central do confronto de ideias e de argumentos nos públicos, bem como a sua racionalidade crítica. “o público interage na base da interpretação, entra em disputa e, portanto, caracteriza-se por relações de conflito (...). No público, as argumentações são complexas, criticadas e enfrentadas por contra-argumentações” (Blumer, op. cit.: 183). para este autor, aliás, a formação de uma opinião pública ocorre por via de uma discussão crítica e racional, que se pode desenvolver em diferentes níveis, com graus diversos de profundidade e limitação.

segundo Tarde, a imprensa tem aqui um papel fundamental na emergência e constituição de um público com uma racionalidade crítica (cfr. Tarde, op. cit.: 57). “a relação profunda do campo dos media com os públicos modernos começa logo por estar vincada no papel decisivo da imprensa na constituição destes mesmos públicos” (Esteves, 2003b: 188). Nesse sentido, a imprensa, enquanto suporte essencial dos públicos, permite uma partilha simbólica dos interesses e o estabelecimento de laços de interdependência entre os indivíduos – o jornal é, então, visto como um elemento essencialmente unificador, que propicia a coesão espiritual própria de um público. este entendimento da imprensa como central para o desenvolvimento da esfera pública teve uma influência determinante, ainda que indirecta, em Habermas.

podemos partir desta perspectiva de gabriel Tardepara colocar uma questão, que serve como um dos fios condutores para este trabalho: será o espaço das cartas dos leitores, na imprensa, um impulsionador da constituição de públicos? vimos, em estudos anteriores, que os leitores-escritores de cartas revelavam uma preocupação, através dos seus textos, em intervir no debate público sobre determinadas questões, demonstrando reflexividade e racionalidade crítica. no entanto, constatámos que a arbitrariedade de alguns critérios de selecção impediam a concretização do espaço das cartas como verdadeiro e efectivo lugar de debate público. Mas, independentemente das regras de selecção, será que é acertado falarmos de públicos quando nos referimos às cartas dos leitores?

“A existência de uma questão significa que o grupo [o público] tem que agir e, no entanto, não há entendimentos prévios, definições ou regras que indiquem como deve ser tal acção. Caso houvesse tais elementos, não haveria certamente uma questão” (Blumer, 1971: 182). O autor da Escola de Chicago

parece estar a referir-se, aqui, à inexistência de constrangimentos prévios à acção que devem caracterizar um público, uma garantia processual para uma discussão crítica de ideias. Transpondo este pensamento para o objecto desta pesquisa, podemos colocar a hipótese de que, do ponto de vista da performatividade e do posicionamento dos indivíduos, as cartas dos leitores poderão constituir um espaço de públicos, isto apesar de o acesso a este mesmo espaço não ser efectivado de forma igualitária, pela existência de critérios de selecção, que podem ser pautados pela discricionariedade.