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ao contrário dos públicos ou das massas, a audiência não é propriamente uma forma de sociabilidade, ainda que o seu sentido tenha vindo a mudar consoante a evolução destas mesmas formas de sociabilidade. o termo audiência remete- nos para os “assistentes de algo”, ou seja, fazer parte de uma audiência significa fazer parte de conjunto de indivíduos não identificáveis, que se unem entre si apenas (e tão somente) pelo facto de assistirem a um objecto cultural ou artístico. Actualmente, aquilo que designamos como “audiências dos media” tem uma conexão muito profunda com o conceito de massa, pelo padrão de relacionamento e pelo tipo de posicionamento dos indivíduos que ele supõe. por isso mesmo, o termo audiência está mais associado ao lado do consumo dos produtos mediáticos, do que propriamente à participação nos seus conteúdos. “Contar a história das audiências significa contar uma história de mudança nas formas dos media e de comunicação entre as pessoas. em contraste, a análise dos públicos centra-se numa tentativa de compreender o significado e as consequências das formas públicas – em oposição ao privado – de actividade ou espaços para essa actividade” (Livingstone, 2005: 35).

a partir do momento em que os mass media se tornam uma actividade económica rentável, como qualquer outra, dirigida a grandes grupos de consumidores, perspectivar a audiência como um mercado, por parte dos media, é inevitável (cfr. McQuail, 1997b: 9). “as audiências são ‘conhecidas’ pelos media sobretudo enquanto agregados estatísticos produzidos por serviços de avaliação e pesquisadores de marketing, e as orientações dos media no que diz respeito às suas audiências são, por isso, dominadas por números” (Blumler et

al., 1995: 106).

entender a audiência como um mercado é, neste sentido, perspectivá-la como uma massa, que se caracteriza pelo anonimato, invisibilidade e reacção a uma determinada oferta. por isso mesmo, a sua medição tem uma utilidade prática para os media. “Com frequência, as sondagens de audiências inferem mudanças decisivas a partir dos gostos pessoais ou de observações empíricas, falhando embora na colocação dos indivíduos nos conjuntos sociais nos quais as escolhas são feitas (…). os media não estão interessados no que é que os leitores

e os telespectadores sentem, necessitam apenas de um ‘termómetro’ para medir os lucros previsíveis e proceder à sua partilha” (Sorlin, 1997: 18 e 19).

nessa sequência, entendendo o conceito de audiência como mais próximo das noções de massa ou de mercado, ela distingue-se de um público, pelo que não implica de visibilidade, de reflexividade e de racionalidade. Aliás, é frequente associar a noção a um uso mais pejorativo, como sinónimo de despessoalização, irracionalidade ou até manipulação 1. na língua inglesa, com efeito, existe uma divisão binária entre as noções de “público” e “audiência”, com conotações positivas e negativas, respectivamente (cfr. Meinhof et al., 2005: 215).

O conceito de “não-público” de Jean-Pierre Esquenazi aproxima-se bastante da noção de audiência que queremos aqui propor. O autor define público como uma comunidade consciente da sua própria visibilidade ou como um grupo de pessoas que têm algo em comum e que, para além de apreenderem, por exemplo, um programa televisivo, têm a capacidade de interpretação e de participação. Pelo contrário, do “não-público”, fazem parte os espectadores que (apenas) assistem a um programa de televisão, procurando meramente uma função de entretenimento (cfr. esquenazi, 2006b: 92).

por isso mesmo, a noção de audiência é, ao mesmo tempo, mais abrangente, uma vez que abarca a maior parte dos destinatários das mensagens mediáticas, mas limitada em termos de performatividade e participação. reportando-se ao contexto televisivo, segundo daniel dayan, as audiências não envolvem sociabilidades, performances ou sentimentos de identidade – “são espectadores somados a outros espectadores, espectadores no plural. se tais espectadores são ditos representativos, a sua representatividade não tem nada de autónomo. esta representatividade é-lhes atribuída do exterior. é por isso que as audiências não falam nem podem falar, a menos que sejam animadas por ventríloquos. os sintomas não falam em nome da doença. É o médico que fala” (Dayan, 2006: 24).

Assim sendo, quando falamos em “audiências dos media”, associamo-las ao tipo de sociabilidade das massas e, no que diz respeito ao seu desempenho,

1) sublinhe-se, porém, que o termo audiência também é utilizado no âmbito dos estudos de recepção.

caracterizadas pela passividade, sendo formadas por receptores (e não participantes mais activos da comunicação). por outro lado, um público, como substantivo, é usado correntemente para designar um conjunto de pessoas que têm interesses ou características comuns. em termos conotativos, um público é associado a características como a homogeneidade e exigência participativa. um público implica, com efeito, uma apropriação e uma interpretação da informação, procurando uma participação activa, não uma mera visualização ou apreensão passiva do que lhe é apresentado.

esta distinção entre públicos e audiências não quer dizer, de maneira alguma, que os mass media não tenham a possibilidade de, em determinados momentos particulares ou mesmo dentro de formatos específicos, gerar públicos. Dennis McQuail e sonia livingstone referem que, no âmbito de talk shows televisivos, por exemplo, podem gerar-se momentos de participação activa e até mesmo de natureza política, que se aproximam mais do conceito de público do que propriamente do de audiência passiva. ou seja, mesmo dentro de formatos que facilmente associaríamos ao conceito de audiência – como é o caso dos “popular media”, na designação anglo-saxónica – é possível que os públicos surjam e se actualizem em determinadas circunstâncias. o mesmo se pode dizer das novas potencialidades abertas pela internet, onde formatos participativos por excelência, como os blogues ou os fóruns online, possibilitam a geração de públicos, mesmo que temporários (cfr. Hermes, 2006: 36).

Mas parece muito mais adequado falarmos em público ou em públicos quando nos referimos ao espaço das cartas dos leitores, dentro da imprensa – os seus sujeitos demonstram uma vontade de participar (e não meramente assistir) no debate público e uma atitude que não se caracteriza pela passividade mas sim pela intervenção em assuntos públicos.

para daniel dayan, os públicos são realidades sociológicas que permitem tipos específicos de experiências subjectivas (cfr. Dayan, 2005: 43). Os públicos, que devem ser perspectivados enquanto uma multiplicidade (públicos em vez de um público universal), constituem um ensemble heterogéneo e diverso, mas coerente, onde os membros partilham um sentimento de identidade. a sua performance é “issue driven”, ou seja, orientada para determinadas problemáticas

ou assuntos (e não para situações particulares), o que contrasta, por exemplo, com a de um espectador (cuja atenção flutua, sendo de ordem variável).

dayan pretende assim sublinhar que um público não é meramente reactivo àquilo que aparece nos meios de comunicação social; a sua performance liga-se a problemas públicos, independentemente de estes serem referidos nas notícias. Muitas vezes, continua o autor, a atenção a determinadas problemáticas pode dar origem a “clusters”, a públicos institucionalizados, como movimentos sociais ou associações.

podemos colocar aqui várias perguntas: as cartas dos leitores respondem a itens ou a acontecimentos previamente discutidos nos media? ou será que os textos dos leitores revelam preocupações mais gerais, mais relacionadas com problemáticas, em detrimento de situações particulares? ou, ainda, será que partem de um tema discutido nos media a propósito de um acontecimento específico, gerando depois um debate mais abrangente do assunto em questão? Esta questão da reactividade ou da reflexividade poderá, eventualmente, ajudar a caracterizar o tipo de públicos que constituem as cartas dos leitores.

podemos, por outro lado, dizer que o facto de uma carta ser referente ou responder a uma notícia ou um artigo do jornal não lhe retira propriamente a reflexividade ou a profundidade crítica com que aborda um determinado assunto. Convém, porém, verificar até que ponto a reactividade poderá ser impeditiva de uma “pro-actividade”, ou seja, a possibilidade de os leitores introduzirem novos tópicos de discussão na agenda pública, isto em termos de cartas escolhidas para publicação. por outro lado, a própria consciência que os leitores poderão ter dos critérios que facilitam a publicação de uma carta no jornal – sendo a actualidade do tema um dos mais importantes – pode eventualmente minar uma atitude proactiva.

além da ligação intrínseca entre problemáticas e públicos, dayan refere a publicidade (no sentido de “tornar público”) como um dos critérios fundamentais para a formação de um público. uma parte de uma audiência pode transformar- se num público, quando os seus membros tomam a decisão reflexiva de se juntar e “go public”, ou seja, adquirir visibilidade ou “publicidade” (ser publicado, ir para o “ar”). Esta é, segundo o autor, uma condição essencial de um público numa sociedade complexa, de forma a poder chegar aos seus membros.

uma outra condição fundamental para a constituição de um público é a adopção de uma retórica ou de um modo de comportamento específico – Dayan dá o exemplo da retórica argumentativa ou epistolar que é própria dos públicos dispersos. neste sentido, dispositivos como as colunas de opinião externas (op ed) ou as cartas dos leitores funcionam como “agências de recrutamento” ou veículos de publicidade dos membros de um público (cfr. ibidem: 64). os públicos, assim, têm a possibilidade de intervir no agenda setting, competindo com os próprios media. por isso, os públicos podem ser celebrados ou vistos como uma mais-valia para os media. Mas também podem ser vistos como intrusos no “jogo mediático”, sendo banidos ou silenciados.

no caso de os media não permitirem a entrada dos membros de um público no seu espaço – rejeitando artigos ou cartas dos leitores, vedando o acesso a determinados indivíduos ou grupos – um determinado público pode arriscar-se a converter-se em “unpublic” ou “não-público”, nessa possibilidade que os media têm de “abortar” públicos. Dayan refere que há ocasiões em que determinados públicos, em formação, estão impedidos de actuar e de atrair novos membros, por lhes ser retirada legitimidade, serem reduzidos pelos media a um estatuto de embrião e apresentados meramente como lobbies ou grupos de interesse.

Dayan relaciona o “aborto” de alguns públicos ou a sua redução a um estatuto de embrião sobretudo às preferências ideológicas dos media, e não a critérios propriamente identificáveis. Dá um exemplo concreto para esta perspectiva (cfr.

ibidem: 65): quando ao provedor dos leitores de um jornal diário francês de

prestígio lhe foi pedido para explicar os critérios que usava para seleccionar as cartas publicáveis, este respondeu que poucas cartas sobre um determinado assunto significaria que o assunto não seria sério; pelo contrário, demasiadas cartas significaria que o assunto teria sido criado artificialmente ou inflacionado. Mas Dayan recomenda cautela com estas afirmações e pergunta: qual é, então, a quantidade certa de cartas?

esta premissa da publicidade e da performance visível, entendida como fundamental para a constituição de um público, tem uma importância crucial no nosso objecto de análise – se entendemos as cartas dos leitores como um público, ou vários públicos, estas só ganham esse estatuto quando publicadas, porque se tornam visíveis para os outros membros. apesar de se centrar num provedor

do leitor, este episódio relatado por dayan relaciona-se igualmente com as conclusões do nosso estudo sobre as “cartas ao director” no Público (cfr. silva, 2007): os critérios de escolha dos textos dos leitores, fluidamente estabelecidos, adequavam-se frequentemente às preferências da responsável. preferências que podem, como diz o autor francês, aniquilar públicos ou transformá-los em não- públicos.

Mas será que não podemos considerar as cartas não publicadas como públicos, por serem “invisíveis” no processo mediático? Não poderão elas, também, constituir públicos? nestas questões, convém sublinhar que são os jornais e os seus editores (e não os leitores) que definem os critérios de selecção do que é e não é publicável. as regras não são, portanto, estabelecidas pelos membros que ocupam esse espaço. por isso mesmo, a premissa da publicidade, tal como dayan a expõe, pode ser questionada, na medida em que, apesar de os leitores procurarem visibilidade pública para os seus textos, frequentemente não conseguem ter acesso ao espaço das cartas.

Mas, afinal, como é que os media olham