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Media e responsabilidade social

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 156-160)

a busca de um ponto de equilíbrio entre os pólos comercial e intelectual do jornalismo, para utilizar a designação de pierre bourdieu, conduziu a dois caminhos, segundo Joaquim fidalgo (cfr. 2006c: 263): o nascimento do serviço público de rádio e de televisão, tendo como pioneira a britânica bbC, em 1926; e o surgimento da teoria da responsabilidade social da imprensa, desenvolvida nos anos 50, a partir das conclusões do relatório da Comissão Hutchins. A filosofia do serviço público, ou seja, “a ideia de que algumas organizações deveriam trabalhar para o bem público” (Curran et al., 1998: 209) e de que o estado deve assumir a prestação de um serviço público à comunidade, surge como uma resposta às consequências nefastas de uma comunicação política como duplo instrumento de controlo e administração das sociedades.

Todavia, o controlo governamental desse serviço público começa a pôr em causa a isenção e a imparcialidade exigidos aos media. nessa medida, nos anos 80, a importância da alternativa começa a decrescer, devido às tendências de liberalização do sector dos media (cfr. ibidem). na década de 90, porém, a questão do serviço público volta a ser o centro do debate para tentar repensar a situação de total desregulamentação do sector dos media. essa consciência começa a tomar forma na europa e sobretudo nos estados unidos, onde as empresas tendem a abandonar uma lógica exclusivamente empresarial. a discussão sobre o serviço público permanece, ainda hoje, em aberto, debate esse que não cabe aqui desenvolver.

Num contexto de concentração crescente da imprensa massificada e das suas implicações comerciais, conduzindo ao que podemos chamar de incumprimento das funções basilares do jornalismo, em 1942, o editor norte-americano Henry luce encomendou ao chanceler da universidade de Chicago, robert Hutchins, um diagnóstico da imprensa norte-americana. foi então constituída a Comissão pela liberdade de imprensa, habitualmente conhecida como Comissão Hutchins, reunindo personalidades exteriores ao meio jornalístico (cfr. bertrand, 2002: 23), que publica o seu primeiro relatório em 1947, pouco depois do fim da Segunda guerra Mundial.

Neste texto, é atribuída à imprensa uma responsabilidade específica, a de prestar um serviço público, como seja “proporcionar um relato verídico, completo e inteligente da actualidade, integrada num contexto que lhe dê sentido; constituir-se como um fórum de debate de opiniões e críticas; traçar um retrato fiel dos diversos grupos que constituem a sociedade; permitir a representação e elucidação dos objectivos; e facultar o pleno acesso a toda a informação” (Mata, 2002: 15 e 16; baker, 2002: 154; fidalgo, 2006c: 265). as conclusões do relatório da Comissão Hutchins acabaram, então, por constituir um contraponto em relação ao comercialismo que se estava a desenvolver na imprensa da época (cfr. bardoel et al., 2004: 167).

apesar de actualmente ser considerado o documento com a perspectiva mais influente e moderna dos objectivos da actividade jornalística (cfr. Baker, op. cit.) e que envolvia uma redefinição ambiciosa desse mesmo trabalho (cfr. Mesquita, 2003: 271), o mesmo relatório, aquando da sua publicação, não teve uma recepção positiva junto de vários sectores dos media nos estados unidos, ciosos da sua primeira emenda da Constituição, que preconiza a defesa da liberdade de imprensa e de expressão em termos absolutos; para os que se opuseram ao documento, o relatório deixaria a porta aberta para a intromissão governamental, não obstante o seu ênfase implícito na necessidade de auto-regulação dos media (cfr. fidalgo, op. cit.: 275). para dennis McQuail, a ideia dos media enquanto instituição com algum tipo de responsabilidade social, ao nível dos seus efeitos e intenções, é, aliás, bastante controversa nas sociedades liberais, porque aparenta implicar uma limitação à liberdade de imprensa (cfr. McQuail, 2006: 48).

A noção de “responsabilidade social”, aplicada aos media, é um conceito anglo-americano que foi pela primeira vez articulado, precisamente, no documento da Comissão Hutchins, durante o pós-guerra (cfr. singer, 2006: 5), num clima de forte crítica perante uma imprensa subserviente às grandes empresas e anunciantes (cfr. Mesquita, op. cit.: 270). Mas aquilo a que se denominou como “teoria da responsabilidade social da imprensa”, propriamente dita, só se desenvolveu a partir de 1956, com a publicação do livro Four Theories of the

Press, da autoria de Theodore peterson, frederik siebert e Wilbur schramm.

atribuindo ao estado o papel de garantir a concretização do serviço público de informação e os meios necessários ao exercício da liberdade de imprensa,

a teoria da responsabilidade social tem como princípios “articular a liberdade e a responsabilidade, assegurar a qualidade e a diversidade da informação e desenvolver uma verdadeira comunicação pública, instituindo os media como intermediários essenciais à participação democrática dos indivíduos (...). neste processo, é realçada a necessidade de uma implicação do público na definição de uma concepção institucional do papel da imprensa na sociedade” (Mata, 1998: 9 e 10).

a doutrina da responsabilidade social da imprensa estabelece, assim, que o jornalismo não é meramente uma actividade económica como qualquer outra, uma vez que lida com um bem público (cfr. fidalgo, 2006c: 264). e esse reconhecimento, por sua vez, pode ser interpretado como um mecanismo que mantém o equilíbrio entre as necessidades contraditórias do mercado e da imprensa livre (cfr. dalen et al., 2006: 460). por outro lado, a noção de responsabilidade social tem dois significados, que convém sublinhar: a “responsabilidade” dos media em relação à sociedade e a ideia de “prestação de contas”, ou seja, a forma como os media se posicionam perante o público (cfr. bardoel et al., 2004: 170) e, também, o escrutínio público que pode ser feito aos media por parte dos cidadãos, grupos e instituições (cfr. pinto et al., 2003: 10).

neste conceito de responsabilidade social está, então, igualmente implícito um contrato social com o público, uma vez que o jornalista invoca para si mesmo o papel de representante daquele, trabalhando em seu nome. este contrato “implica a óbvia contrapartida da prestação de contas: se alguém age em representação de outrém, deve explicar-se junto dos seus representados sobre o que fez ou não fez, como e porquê. Algo que, não obstante, é por vezes esquecido ou secundarizado” (fidalgo, op. cit.: 423). daqui decorre, desta forma, uma exigência normativa que obriga a considerar o público como um protagonista essencial do processo comunicativo (cfr. aznar, 2005: 188).

Na língua portuguesa, o termo “responsabilidade” exprime, porém, apenas uma parte daquilo a que na língua inglesa se designa por “accountability”, ou, se quisermos fazer uma tradução mais ou menos literal, “responsividade”. Na língua inglesa, as palavras “responsability” e “accountability” têm uma raiz etimológica semelhante, relacionada com o verbo “to answer” ou, em português, “responder” (cfr. McQuail, 2003: 189), mas, na verdade, têm significados distintos. A noção

de “responsabilidade” remete para a definição de uma conduta que se considera apropriada, referindo-se às obrigações atribuídas aos media e às necessidades sociais a que estes últimos devem responder, enquanto o termo “accountability”, exprimindo a obrigação de executar essa mesma conduta, se refere aos processos pelos quais os media são chamados a prestar contas, de forma a cumprir as suas obrigações (cfr. McQuail, 1997a: 515).

Aplicando esta noção ao jornalismo, a ideia de “responsividade” ou “accountability” expressa que o jornalista não é apenas responsável por, mas também, e sobretudo, responsável para com ou perante os leitores ou a sociedade, tendo o dever de prestar contas do seu trabalho (cfr. fidalgo, 2006c: 275). A “accountability” é, então, um processo (e não um conjunto de prescrições normativas) pelo qual as organizações de media são passíveis de prestar contas das suas actividades aos seus constituintes (cfr. pritchard, 2000b: 2) ou de ser chamados a responder por (ou explicar) alguma acção (ou omissão) por parte de alguém que tenha o direito de ter essa expectativa (cfr. McQuail, 2003: 15).

este processo tanto pode ser voluntário como obrigatório – há contas que devem ser prestadas obrigatoriamente quando a lei o exige e há contas que os media decidem prestar de forma a manter a confiança dos seus públicos (cfr. fidalgo, op. cit.: 425). A “accountability” implica, por isso, não só uma protecção da liberdade dos media, prevenindo ou limitando os danos possíveis de ser causados, mas também pode trazer benefícios positivos à sociedade, promovendo relações rotineiras de diálogo entre os media e as audiências, de forma a reduzir a necessidade de medidas arbitrárias e restritivas em momentos de crise (cfr. McQuail, 1997a: 525 e 526).

Por princípio, os media devem ser “accountable” perante aqueles a quem dão ou negam acesso, usando o poder que a liberdade de imprensa lhes confere (ibidem: 215). Mas a ideia de “accountability” não deve remeter apenas para uma lógica de liberdade negativa, ou seja, prestar contas pelas consequências prejudiciais do que se publicou (um modelo de “liability” ou imputabilidade, relacionado com a existência de sanções legais ou materiais), mas deve alargar- se para uma lógica de liberdade positiva, ou seja, prestar contas ou conferir explicações voluntárias da qualidade do que se publicou – um modelo de “answerability” ou de “responsividade” no processo de “accountability” (cfr.

fidalgo, op. cit.: 426; 430 e 431). para dennis McQuail, este enquadramento é o mais adequado para cumprir o objectivo de interesse público, com critérios voluntários, ricos em termos normativos e com valor de participação (cfr. McQuail, 1997a: 524).

Da “accountability” decorre, ao mesmo tempo, uma “ética do receptor” (fidalgo, op. cit.: 435), ou seja, um investimento na educação para os media que aumente a vontade e a capacidade de participação dos cidadãos. “públicos participativos, exigentes e críticos podem ser importantíssimos aliados dos jornalistas para fazerem um contrapeso às lógicas predominantes do mercado e do lucro e, com isso, permitirem que os profissionais (re)conquistem e preservem alguma da sua margem própria de funcionamento autónomo – embora ‘accountable’ face às responsabilidades sociais, profissionais e morais assumidas” (ibidem: 436).

Este conceito de “accountability” (que, podemos dizer, decorre da teoria da responsabilidade social dos media), embora alguns autores considerem estar em crise actualmente, devido às tendências de desregulamentação do sector dos media e à consequente recusa de normatividade (cfr. McQuail apud fidalgo, op.

cit.: 427), tem tido, no entanto, um considerável acolhimento por parte de diversos

media, através da criação de mecanismos que a promovam e encorajem. esses mecanismos de assegurar a responsabilidade social dos media, que abordaremos brevemente em seguida, partilham todos eles “a promoção dos bens internos da comunicação, fazendo assim com que a actividade dos media se ajuste mais aos seus valores e normas próprios” (Aznar, 2005: 13) – é neste espírito que se enquadram, igualmente, as cartas dos leitores na imprensa.

os mecanismos para assegurar a responsabilidade social

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