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as três teorias da democracia

de facto, com o reconhecimento cada vez maior das organizações da sociedade civil como interlocutores políticos válidos e com o consequente aumento de densidade do espaço público, “hoje os cidadãos simplesmente não aceitam um conceito tão limitado de democracia” como o de democracia liberal (Bresser- pereira, 2005: 79), no qual as elites, embora eleitas através do voto dos cidadãos, não têm de prestar contas sistematicamente das suas decisões aos eleitores. pelo contrário, para rawls, um dos principais teóricos da democracia deliberativa, o ideal da razão pública é satisfeito precisamente quando e sempre que os governantes explicam as suas decisões aos cidadãos, mas também quando a estes últimos é atribuído um papel activo. em suma, para rawls, “a política democrática envolve deliberação pública centrada no bem comum, requer alguma forma de igualdade manifesta entre os cidadãos e molda a identidade e os interesses dos cidadãos de maneira a contribuir para a formação de uma concepção pública do bem comum” (apud Cohen, 1997: 69).

No texto “Política Deliberativa: um Conceito Procedimental de Democracia”, Habermas explica as diferenças entre as três concepções ou teorias do processo democrático: a concepção liberal, a concepção republicana e a concepção deliberativa da democracia.

segundo a teoria liberal da democracia, o processo democrático efectua-se, exclusivamente, através do compromisso de interesses, cujas regras têm como objectivo assegurar a justiça dos resultados (Habermas, 2001: 372). a formação democrática da vontade tem exclusivamente a função de legitimar o exercício do poder político. aqui, o estado é o guardião de uma sociedade económica. a compreensão da política é centrada no estado e considera-se que os cidadãos não são capazes de uma acção colectiva. estes últimos são, aliás, reduzidos a simples consumidores de políticas governamentais elaboradas pelos “competentes” ou pelos “especialistas”.

segundo a concepção liberal, no estado democrático de direito, o poder estatal procedente do povo exerce-se apenas nas eleições e através dos órgãos nos quais se articulam os poderes legislativo, executivo e judicial. em poucas palavras, a teoria liberal democrática considera a participação do público em geral como limitada e indirecta, sendo que a resposta do cidadão está, essencialmente, no voto (silveirinha, 2005: 5). os media têm, assim, como função prioritária manter o cidadão devidamente informado para que ele possa decidir o seu voto. assim sendo, a teoria liberal da democracia limita as expectativas dos cidadãos, pressupondo que os mesmos sejam racionais e bem informados, mas igualmente apolíticos e privados. a voz dos cidadãos é apenas ouvida no contexto de eleições.

a esta teoria liberal da democracia, corresponde o modelo legalista de espaço público, preconizado por bruce ackerman, centrando o seu pensamento político no problema de “uma ordem pública justa e estável”. No seu modelo de diálogo liberal, Ackerman define o liberalismo como uma cultura política de diálogo público baseada em determinados tipos de constrangimentos conversacionais, como a neutralidade (cfr. ackerman apud benhabib, 1992: 81). o autor pretende compreender o modo como diferentes grupos, que têm, à partida e antes de qualquer conversação, discordâncias profundas sobre a concepção do bem, podem coexistir de forma racional.

seyla benhabib, porém, lança algumas críticas a esta ideia de neutralidade dialógica de ackerman. numa sociedade moderna, pluralista e democrática, a política democrática desafia, redefine e renegoceia as divisões entre o bem e o justo, o moral e o legal, o privado e o público (ibidem: 83). por isso mesmo, o princípio da neutralidade não consegue responder à dinâmica das lutas de poder dos processos políticos actuais. uma vida pública conduzida segundo o princípio da neutralidade dialógica limitaria seriamente o âmbito da conversação pública, tendo como consequência o prejuízo dos interesses dos grupos oprimidos.

Continuando nos diferentes modelos de democracia, a concepção republicana considera que a formação democrática da vontade, definindo-se como o meio pelo qual a sociedade se constitui como um todo politicamente estruturado ou como uma comunidade política, se efectua através de um auto-entendimento ético- político. Consequentemente, esta visão da política posiciona-se contra o aparelho estatal. Contra o privatismo de uma população despolitizada e contra a auto- administração dos partidos políticos, a opinião política deveria ser revitalizada e regenerada, até que o poder estatal burocraticamente autonomizado fosse devolvido ao cidadão, para que a sociedade se transformasse numa totalidade política (Habermas, 2001: 373). esta argumentação de tipo republicano, segundo a qual o poder se funda na prática da auto-determinação dos cidadãos, e não dos seus representantes, pode verificar-se claramente nas obras de Hannah Arendt, como já referimos, no Capítulo 1.

segundo a concepção agonística, o modelo de espaço público preconizado pela teoria republicana da democracia, o domínio público representa o espaço no qual o heroísmo e a grandeza políticos são revelados e partilhados com outros (benhabib, op. cit.: 78). o espaço agonístico da polis, que corresponde à experiência política da grécia antiga, só é possível através de uma comunidade politicamente homogénea e igualitária, mas exclusiva, na qual a acção também pode ser uma revelação do “self” a outros. Este modelo helénico ou agonístico do espaço público obedece, assim, a uma estética da figuração: a apresentação de si tem como objectivo aceder à glória, através das palavras eloquentes que o cidadão pode pronunciar perante os outros, na ágora.

para benhabib, arendt tem talvez uma visão demasiado idealizada sobre a vida política na antiguidade grega, o que implica o negligenciar da seguinte

questão: se o espaço político agonístico apenas era possível na medida em que grande parte dos indivíduos, como os escravos ou as mulheres, eram excluídos, será que a crítica de Arendt em relação ao “crescimento do social”, caracterizado pela emancipação e entrada na vida pública dos grupos excluídos até então, é também uma crítica ao universalismo político como tal (ibidem: 75)?

Por fim, a concepção deliberativa da democracia argumenta que o poder comunicativo só emerge através das interacções entre a formação da vontade institucionalizada em termos de estado de direito e entre os espaços públicos mobilizados culturalmente, os quais, por sua vez, têm na sua base associações de uma sociedade civil que se distancia do estado e, por outro lado, da economia (Habermas, 2001: 378). podemos dizer até que uma lei “só é legítima se for baseada nas razões públicas resultantes de um processo inclusivo e justo de deliberação, no qual todos os cidadãos podem participar e no qual podem continuar a cooperar livremente” (Bohman, 2000: 184). A democracia deliberativa, então, assume um contraste nítido com o modelo republicano, que perspectiva a cidadania como uma instituição colectiva e totalizadora, e com o modelo liberal, que marginaliza a comunicação como fonte de poder político (cfr. vitale, 2006: 747). “a democracia deliberativa surge, assim, como uma terceira via entre o liberalismo e o republicanismo, procurando articular as diferentes concepções de cidadania e democracia” (Silveirinha, 2004: 197).

as características principais da democracia deliberativa são as seguintes: a noção de “debate racional” (e não de “compromissos entre interesses divergentes”) enquanto procedimento político por excelência; o conceito de acto público ou de troca pública de argumentos enquanto acto político por excelência; e a igualdade política de todos os participantes (cfr. Carreira da silva, 2004: 2). amy gutmann e dennis Thompson conferem-lhe quatro traços fundamentais: a democracia deliberativa exige que os representantes e os cidadãos ofereçam razões que justifiquem as suas posições sobre uma determinada questão; as razões dadas neste processo devem ser acessíveis a todos os cidadãos a quem elas são endereçadas; o processo tem como fim produzir uma decisão vinculativa, não sendo, meramente, uma oportunidade para que se debata um determinado tema; esse processo é dinâmico e não termina após a tomada de decisão, já que esta continua sujeita à crítica (cfr. gutmann et al., 2004: 3-7).

James bohman, um dos autores que apresenta alguns dos desenvolvimentos mais recentes da democracia deliberativa, enfatiza o carácter prático da deliberação. para este autor, a deliberação é, por um lado, uma actividade pública e, por outro, uma actividade cooperativa, “imbuída na acção social do diálogo, ou seja, a troca de argumentos” (Bohman, 2000: 32).

Joshua Cohen é o teórico da democracia deliberativa que melhor elabora e define os procedimentos ideais da deliberação – a liberdade e a ausência de coerções ou a igualdade formal e substantiva dos participantes. propõe, assim, um modelo ideal ou abstracto, independente da prática ou do processo real, que permite ver se a deliberação é correcta ou incorrecta. apesar de sabermos que as práticas democráticas reais são apenas aproximações imperfeitas deste ideal, a proposta de Cohen permite-nos observar e avaliar a relação entre a deliberação e a tomada de decisão, isto é, se a deliberação melhora a tomada de decisão (cfr. Cohen apud bohman et al., 1997: xvi).

segundo o autor, a deliberação baseia-se em quatro aspectos gerais (cfr. Cohen, 1997: 74 e 75). em primeiro lugar, a liberdade – isto é, os participantes estão ligados apenas pelos resultados da sua deliberação, e não pela autoridade de normas ou requisitos pré-estabelecidos. em segundo lugar, a racionalidade – tal como defende Habermas, só a força do melhor argumento é que é exercida. em terceiro lugar, a igualdade, ou seja, os participantes são formalmente iguais, na medida em que as regras que regulam o procedimento não excluem indivíduos. “Tratarmo-nos como membros iguais de diálogo significa que temos de partir do pressuposto de que cada participante tem algo potencialmente valioso para contribuir para o discurso e que tem boas razões para defender a sua posição, merecendo ver as suas posições consideradas” (cfr. Silveirinha, 2004: 185). Todos os que têm capacidades deliberativas estão em igualdade de circunstâncias para colocar assuntos na agenda e propor soluções. os participantes são, então, iguais na distribuição do poder e dos recursos. finalmente, o consenso – a deliberação ideal tem como objectivo encontrar razões que sejam persuasivas para todos os participantes e alcançar um acordo racionalmente motivado.

Assim sendo, a deliberação ideal deve ser livre, justificada, formal e substantivamente igual, tendo como objectivo chegar ao consenso. “Há uma necessidade de decidir com base numa agenda, propor soluções alternativas aos

problemas da agenda, suportar essas soluções com razões e concluir através de uma alternativa (…). os resultados são democraticamente legítimos se puderem ser o objecto de uma concordância livre e racional, entre iguais” (Cohen, 1997: 73).

no entanto, para Habermas, a imagem da política deliberativa de Cohen não exprime claramente a relação entre o aspecto formal, ou seja, as deliberações orientadas para a decisão, e o aspecto informal da formação da opinião e da vontade, isto é, os processos informais de formação da opinião no espaço público-político, que se estendem a tudo o que, informalmente, antecede a formação da vontade política e a tomada de decisão (Habermas, 2001: 384). os procedimentos democráticos em tais espaços públicos estruturam processos de formação da opinião, como a elaboração de problemas a tratar e a justificação da selecção desses mesmos problemas.

estes espaços públicos, de carácter mais informal e de estrutura anárquica, têm como principal desvantagem, em relação aos espaços públicos formais e organizados, uma maior exposição aos efeitos de repressão e de exclusão que resultam da distribuição desigual do poder social. no entanto, essa mesma estrutura anárquica e mais espontânea possibilita uma comunicação mais livre, sem tantos constrangimentos, onde os novos problemas, os discursos de auto- entendimento e as interpretações das necessidades se compreendem, efectuam e articulam, respectivamente, de forma mais expressiva do que nos espaços públicos formais, regulados por procedimentos e pressionados para a tomada de decisões vinculativas.

o sucesso da política deliberativa depende, então, de espaços públicos não- institucionalizados que têm a função fundamental de agir dentro do “contexto da descoberta”, ou seja, detectar e tematizar problemas que requerem depois tratamento pelo sistema político formal (cfr. flynn, 2004: 440). ou seja, aquilo que nancy fraser via como fraqueza neste tipo de públicos (a ausência de tomada de decisão), em oposição aos públicos considerados fortes (onde se verifica, simultaneamente, a formação de opinião e a tomada de decisão) pode ser interpretado como um aspecto positivo, dado o seu contributo inequívoco para uma abertura do debate crítico-racional em torno de matérias/assuntos que serão alvo de decisão política. nessa sequência, podemos olhar para a secção de

correspondência na imprensa como uma espécie de procedimento deliberativo, que tem como base uma participação activa dos cidadãos na discussão de assuntos centrais da vida pública, na formação comunicacional da sua vontade relativamente aos mesmos e no exercício de uma influência sobre os seus representantes na formação da vontade política.

O espaço das cartas integra-se, pois, no âmbito dos públicos “fracos”, no sentido em que, ao ser portador de uma opinião pública, mediada pela imprensa, encerra em si a mesmo a potencialidade de afectar as decisões tomadas pelos públicos “fortes”, tendo como funções principais a identificação e a tematização, de forma convincente e persuasiva (cfr. Habermas, 2001: 439-40), dos problemas que afectam os cidadãos. Mas, entendo-a como público “fraco”, será que é possível caracterizar a secção das cartas dos leitores como um espaço público informal, caracterizado pela espontaneidade, sem uma estrutura bem consolidada? será que a imposição de um público mais forte (a imprensa) do que os públicos constituídos pelos autores (e as contingências que daí advêm) poderá limitar, de forma contundente, a sua performance? será que aqui os leitores têm efectivamente liberdade de comunicação e de participação? de que modos é que a secção se articula com outros níveis, formais e informais, do espaço público?