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funções e percepções das cartas na imprensa

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 122-126)

“embora se possa argumentar que escrever cartas não é a forma mais fácil de comunicação nos mass media para um membro do público (particularmente para pessoas com capacidades de literacia limitadas e devido à popularidade de talk

shows na rádio e o crescente uso da internet para a comunicação), é certamente

um portal acessível em termos de comunicação através da imprensa” (Smith

et al., 2005: 1181). de acordo com diversos académicos e mesmo editores de

jornais, as cartas dos leitores assumem uma importância fundamental neste espaço da imprensa, nomeadamente na sua função de fórum indispensável para o debate público (cfr. richardson et al., 2004: 459). os leitores que para aí enviam as suas contribuições vêem materializado o seu desejo de quebrarem as barreiras entre a produção e a recepção do jornal (cfr. santhiago, 2005: 3).

“a carta do leitor é veiculada através dos meios de comunicação escritos, de circulação ampla ou restrita, tem carácter público, cumprindo uma importante função social, na medida em que possibilita o intercâmbio de informações, ideias, opiniões, entre diferentes pessoas de um determinado grupo” (Passos

apud pillon, 2005: 4). ainda assim, o campo que a imprensa reserva para as

contribuições dos leitores é diminuto comparado com outros espaços dos jornais (cfr. baesse, 2005: 74; bohle, 1991: 13).

segundo bill reader, professor da universidade de ohio, que se dedicou ao estudo das cartas dos leitores na imprensa local norte-americana, a correspondência dos leitores apresenta diversas funções, entre outras: facilitar o discurso público; promover o envolvimento cívico dos cidadãos na vida pública; permitir aos leitores a interacção com os jornais; ou fornecer um lugar onde os cidadãos podem comentar publicamente a actuação do governo (cfr. reader, 2001: 3). Com efeito, um dos papéis fundamentais do jornalismo consiste, precisamente, em suscitar uma conversação pública sobre assuntos de interesse

colectivo e, ao mesmo tempo, fornecer um fórum através do qual as diversas vozes podem ser ouvidas (cfr. anderson et al., 1994: 19).

Os conceitos de “debate público” e de “conversação” são particularmente acentuados quando alguns autores se referem às cartas dos leitores. “Como escreve o historiador do jornalismo david nord, as cartas dos leitores fornecem um registo de, pelo menos, uma porção da conversação corrente de uma comunidade” (Thornton, 1998b: 3), permitindo, por outro lado, “expor questões controversas que entram no debate público” (Santos, 2001: 2). Assim sendo, com a secção das cartas, os jornais assumem o papel de “mediadores do debate público, possibilitando a encenação de um diálogo que não teria outro lugar para ocorrer” (Vaz, 1998: 1). Por isso mesmo, e para Ana Peixinho de Cristo, o uso jornalístico da carta faz com que o discurso do jornal ganhe todo um conjunto de outras vozes, conferindo-lhe profundidade e polifonia, algo que é atractivo para o leitor (cfr. Cristo, 2008: 100).

de acordo com stuart Hall e outros autores, a secção das cartas, além de servir para estimular a controvérsia e um debate vivo sobre diversas questões, também existe para provar que a imprensa não está fechada a perspectivas que eventualmente não subscreveria – daí que a rubrica tenha uma perfeita adequação à sua imagem democrática, enquanto “Quarto Poder” (cfr. Hall et al., 1978: 121). a existência de uma rubrica dedicada à correspondência dos leitores e, consequentemente, um alto nível de participação em termos de cartas, pode ser de igual forma um sinónimo de qualidade de um jornal – num inquérito extensivo feito a editores e leitores norte-americanos, em 1977, os editores colocaram o número de cartas dos leitores9 em quarto lugar naquilo que define a qualidade de um jornal, atrás de, por exemplo, a quantidade total de conteúdo não publicitário ou um alto grau de interpretação e contextualização nos conteúdos informativos; igualmente, os leitores, também alvo de inquérito, referem igualmente o número de cartas dos leitores como um dos atributos principais da qualidade de um jornal (cfr. bogart, 1989: 261). assim sendo, podemos dizer que as cartas ajudam a personalizar um jornal (cfr. Kapoor et al., 1992: 5), conferindo-lhe

9) não é explícito se os editores se referem ao número de cartas recebidas ou publicadas, como factor de qualidade de um jornal.

uma identidade de marca através da representação das preocupações quotidianas do seu público (cfr. richardson, 2008: 1).

Contudo, particularmente em dois artigos a que tivemos acesso da publicação

The Masthead, emerge uma concepção, não propriamente contrária, mas

“complementar”, da secção das cartas, segundo os editores norte-americanos. A correspondência dos leitores é positiva para a democracia, mas também para a circulação do jornal (cfr. ryon, 1992: 4) – com efeito, “não há melhor instrumento de relações públicas que as cartas dos leitores” num jornal, refere uma editora do jornal salt lake Tribune (cfr. Cole, 1992). de facto, Michael bromley refere que, nos anos 70 do século passado, no reino unido, a publicação de cartas dos leitores estava intimamente ligada à circulação do jornal, funcionando como meio para manter e aumentar as vendas do mesmo e beneficiando, assim, os jornais e os próprios leitores (cfr. bromley, 1998: 150).

para gabrina pounds, da mesma forma, a secção das cartas encaixa-se perfeitamente nas necessidades comerciais dos jornais populares: é uma página fácil, com poucos custos e relativamente segura, além de ser apelativa para mais leitores do que muitas outras partes do jornal; aliás, os jornais não publicam cartas apenas para fomentar a participação pública, mas também porque reconhecem o seu poder de venda e o seu valor de entretenimento (cfr. pounds, 2006: 33).

Karin Wahl-Jorgensen sublinha, assim, que os editores oferecem uma “justificação normativo-económica” para a existência de uma secção dedicada à correspondência dos leitores. apesar de as premissas da igualdade e do acesso universal ao discurso público (subjacentes, aliás, aos teóricos da democracia deliberativa) serem centrais na descrição que os editores efectuam da secção, a essa concepção associa-se o desejo, paralelo, de assegurar o sucesso financeiro do jornal, ao fazer os leitores felizes (cfr. Wahl-Jorgensen, 2007: 65-7; 2002a: 125).

“Para os editores que invocam a justificação normativo-económica, o sucesso no mercado está fortemente relacionado com a saúde do processo democrático. a secção das cartas, apesar de ser construída como um exercício de debate público, também aumenta a credibilidade aos olhos dos leitores e aumenta a circulação” (cfr. idem, 2007: 77). Wahl-Jorgensen dá um exemplo muito concreto para demonstrar a forma como a secção poderá ter uma ligação efectiva com o êxito

económico do jornal e a preocupação que alguns editores revelaram em publicar muitas cartas dos leitores – um leitor insatisfeito pode queixar-se aos amigos e a outros conhecidos ou mesmo cancelar a assinatura; o leitor é, assim, entendido como um consumidor que lembra ao jornal a sua vulnerabilidade no mercado (cfr. ibidem: 79).

esta visão da secção das cartas, associada ao sucesso económico do jornal, está, de certa forma, relacionada com a evidência constatada por victoria Camps – a ética vende, é rentável, porque confere credibilidade e prestígio aos media (cfr. Camps, 1995: 53 e 54). segundo a autora catalã, os objectivos comerciais dos media não são incompatíveis com o exercício ético que é exigível ao jornalismo e, acrescentamos nós, com a abertura da imprensa às vozes dos cidadãos, pressupondo, pelo menos, “uma atitude de respeito pelo consumidor ou pelo leitor” (Mesquita, 1998: 37).

fazemos, no entanto, uma ressalva relativamente à perspectiva de Wahl- Jorgensen, quando refere a ligação entre uma próspera secção de cartas e uma possível manutenção ou aumento das vendas do jornal – a autora faz incidir o seu estudo em jornais locais norte-americanos, o que poderá justificar o referido entendimento “normativo-económico” que os editores têm em relação à secção das cartas. por serem jornais mais ligados à comunidade onde são distribuídos, haverá decerto uma preocupação mais efectiva em criar laços entre os cidadãos e o jornal, melhorando ao mesmo tempo a circulação e as vendas.

Contudo, no nosso estudo de caso sobre o jornal Público, não se verificou uma correlação directa entre ambos os aspectos. não deixamos de lado a hipótese, porém, de a secção das cartas servirem como uma espécie de “ritual estratégico” (no dizer de Gaye Tuchman), ou seja, uma rubrica que existe não só devido a uma preocupação real em fomentar a abertura da imprensa em relação ao seu público, mas também para fortalecer a sua credibilidade aos olhos dos leitores e fornecer uma imagem mais palpável de aproximação entre o jornal e o seu público. ricardo santhiago exprime, de forma concreta, essa ambivalência: “crer que as cartas à redacção sejam totalmente inúteis e dispensáveis é tão ingénuo quanto acreditar num de seus contrários: que a imprensa atende de facto a todas as solicitações de sua audiência” (Santhiago, 2005: 11).

Tal como verificámos nos discursos dos editores norte-americanos, também gregory e Hutchins demonstram, num estudo centrado num jornal australiano, que os editores utilizam uma retórica associada à liberdade de expressão e à abertura da discussão. no entanto, e apesar desse mesmo entendimento normativo, os editores controlam e constroem o diálogo aí efectivado através das suas escolhas (cfr. gregory et al., 2004: 193). são essas mesmas escolhas, quase definidoras da essência e construção de uma secção das cartas num jornal, que abordaremos em seguida.

a construção da secção das cartas dos leitores:

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 122-126)