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os mecanismos para assegurar a responsabilidade social dos media (Mars)

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 160-163)

no seguimento das recomendações da Comissão Hutchins e tendo em vista uma associação do público à apreciação crítica da actividade dos media, Claude-Jean bertrand, professor jubilado do instituto francês de imprensa da universidade de paris-2, explicou e elencou os diversos Meios de assegurar a responsabilidade

social dos Media (doravante designados por Mars)2, que se definem como meios não-governamentais utilizados “para tornar os media responsáveis perante o público” e que “agem apenas por pressão moral” (Bertrand, 2002: 95), tendo os estados unidos como país pioneiro na sua utilização (cfr. idem, 1998: 119). estes mecanismos foram-se desenvolvendo nas últimas décadas do século xx, devido a uma necessidade de responsabilização social dos media. assim sendo, os Mars, enquanto meios não estatais que decorrem da iniciativa voluntária dos protagonistas directos ou indirectos da comunicação pública, inscrevem- se num propósito auto-regulador (cfr. fidalgo, 2006c: 489 e 490)3. Todos estes mecanismos utilizam, isoladamente ou em conjunto, algum destes quatro métodos de trabalho: a crítica, a observação sistemática ou monitorização, o

feedback e formação/educação (cfr. bertrand, 2002: 99; 1998: 112).

bertrand distingue entre vários tipos de Mars, consoante a sua forma de divulgação e constituintes (cfr. ibidem: 100-114): os documentos escritos ou

difundidos por rádio e televisão (entre os quais se encontram os quadros de

correcção, o correio dos leitores, as secções de media ou mesmo a radiotelevisão pública, além dos códigos de deontologia, “journalism reviews”, questionários de exactidão e equidade, etc.); indivíduos ou grupos (o provedor do leitor, os conselhos de imprensa, os observatórios de media ou as associações de cidadãos são alguns exemplos); e processos (como a formação universitária ou as pesquisas académicas, bem como os inquéritos aos utentes dos media).

o autor sublinha que, na europa, ao contrário do que acontece nos estados unidos, a maior parte destes Mars não são utilizados nos media ou são usados de forma ainda muito incipiente – excepção feita, porém, à rubrica do correio dos leitores, presente em quase todos os jornais, apesar de bertrand considerar que as cartas seleccionadas raramente serem críticas em relação ao jornal (cfr.

2) Em inglês, “Media Accountability Systems” (MAS).

3) para fernando oliveira paulino, os Mars estão, todavia, associados a uma perspectiva de auto-regulação, ou seja, “a regulação assumida e exercida pelos próprios meios, por sua iniciativa e sob sua responsabilidade” (Santos Silva, 2007: 18), definindo-se pois pela adesão voluntária dos jornalistas a um conjunto de regras que eles se obrigam a respeitar, mas também de co-regulação, “denotando uma responsabilidade compartilhada entre a mídia e o poder público, combinando elementos de automonitoramento com posterior acompanhamento do Estado e do Mercado” (paulino, 2008: 36).

ibidem: 114). No entanto, justifica o seu interesse para a responsabilidade social

dos media da seguinte forma: “uma função primordial dos media é proporcionar um fórum. em democracia, todos os grupos devem poder expressar-se. e não apenas através das instituições (associações, sindicatos, etc.) (...). nos estados unidos, este meio [o correio dos leitores] desenvolveu-se muito nos anos 70, ao ponto de ocupar mais do que uma página diária à direita dos editoriais. é, inclusivamente, uma das rubricas mais lidas” (ibidem: 100).

não obstante a sua importância na melhoria da qualidade dos media, os MARS são alvo de críticas e objecções, algumas delas injustificadas, segundo bertrand, como o receio de imposição de limites à liberdade de expressão, a sua eventual inutilidade e ineficácia (ideia que assenta no estereótipo de que os “bons media” não precisam de controlo de qualidade e de que os “maus media” nunca os adoptariam, além de que a maior parte dos indivíduos não conhece os Mars), a noção de que estes mecanismos são uma mera medida de cosmética ou de relações públicas para iludir a opinião pública, ou ainda de que constituem um disfarce para encobrir os objectivos dos militantes anti-media (cfr. ibidem: 119 e 120; idem, 1998: 121 e 122).

Há, porém, obstáculos que bertrand considera como verdadeiros e reais ao controlo de qualidade dos media por parte destes mecanismos (cfr. idem, 2002: 121-4; 1998: 122): o corporativismo dos jornalistas e a defesa em relação a ataques exteriores à profissão; o seu conservadorismo; a recusa de partilha do seu poder de influência; a sua hipersusceptibilidade, devido ao seu ego frágil; o preço, uma vez que a maior parte dos Mars representam um investimento financeiro considerável; a falta de tempo para esse mesmo controlo de qualidade; o facto de nenhum Mars ser perfeito; a arrogância dos jornalistas e a sua recusa frequente em admitir os seus erros, “nomeadamente quando são assinalados por um utente que, aos seus olhos, não sabe nada, não entende nada e age em defesa de uma causa” (idem, 2002: 122).

Podemos, com efeito, afirmar que os jornalistas por vezes demonstram uma certa resistência em tornar as suas práticas e rotinas mais transparentes aos olhos do leitor, o que tem consequências negativas na sua credibilidade. escudando-se na liberdade de expressão, “os jornalistas estão, com frequência, fechados numa

espécie de ‘silêncio estratégico’ que oculta as fragilidades de um ofício ferido (...) pela escrita dos dias” (Oliveira, 2007: 293).

dada a irreversível mediatização do espaço público contemporâneo, estes meios de assegurar a responsabilidade social dos media são úteis ao regime democrático. “nenhum deles produz milagres, mas, no seu conjunto, permitem reforçar a autonomia dos media, aperfeiçoar a deontologia dos jornalistas, defender os direitos dos cidadãos e aprofundar a democracia” (Mesquita, 1998: 29). Mesmo que sejam utilizados estrategicamente pelos media – como meio de reforçar a sua credibilidade e de conferir uma boa imagem – o uso dos MARS é benéfico para os leitores, ao mesmo tempo que poderá ser rentável ao nível de investimento no prestígio do meio. por isso, Claude-Jean bertrand não tem dúvidas: “a qualidade compensa” (cfr. Bertrand, 2002: 128), porque traz vantagens para todos, podendo simultaneamente servir para o bem da humanidade e ser lucrativa.

neste contexto, convém debruçarmos mais detalhadamente sobre aquele que é considerado como o Mars por excelência, sendo um dos exemplos mais paradigmáticos de mecanismos de “accountability”, mas muitas vezes foco de controvérsia quanto à sua natureza e eficácia: o provedor do leitor, enquanto figura intermediária entre o jornal e o seu público.

No documento AS CARTAS DOS LEITORES NA IMPRENSA PORTUGUESA (páginas 160-163)