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Mas, afinal, como é que os media olham para quem os vê?

vimos, portanto, a questão dos públicos e das audiências do ponto de vista da atitude e da performance do utente dos media. Mas convém agora atentarmos a um outro lado do problema – como é que os próprios media percepcionam os seus destinatários? Que características lhes atribuem? serão eles uma parte importante no processo mediático? em última análise, interessa-nos compreender de que forma é que os media perspectivam os seus destinatários – ou atribuindo- lhes traços de “públicos”, interpretando os consumidores (ou, pelo menos, uma parte significativa) como intervenientes activos, com importância para o processo mediático; ou encarando-os como “audiências”, sem diferenciação e sem capacidade de resposta.

autores como epstein ou gans consideraram que o jornalismo oferece pouco espaço para as vozes e para o contributo dos cidadãos e que os media dão mais destaque às actividades e aos pontos de vista das elites do poder. esta

hierarquia no acesso aos media resulta directamente das práticas jornalísticas actuais, reguladas por rotinas e caracterizadas pela tirania do espaço e do tempo.

por outro lado, várias pesquisas mostram que muitos jornalistas entendem que os seus leitores, espectadores ou ouvintes não têm capacidades ou qualificações para julgar o seu trabalho (cfr. McQuail, 1997b: 111 e 114). um inquérito de Wolfgang donsbach levado a cabo junto de jornalistas britânicos e alemães, nos anos 80, demonstrava que a maioria dos jornalistas tinha uma percepção negativa do seu público, considerando que escreviam, na maior parte das vezes, para um público intolerante, acrítico e pouco informado (cfr. donsbach, 1983: 26).

a maior parte dos estudos das percepções dos media em relação à opinião pública sugere, além disso, que os jornalistas têm pouca interacção directa com os cidadãos, quer directamente, quer através de pesquisa. em vez disso, os jornalistas “baseiam-se nas suas próprias ideias sobre os leitores e os espectadores, impressões essas que são desenvolvidas e reforçadas com a cultura da redacção. gans (1980), por exemplo, descobriu que os editores tendiam a rejeitar rotineiramente algumas formas de feedback como inquéritos de mercado, cartas e chamadas telefónicas, devido à sua desconfiança na estatística e nas perspectivas aí representadas” (Lewis et al., 2005: 27).

no entanto, pierre sorlin sublinha que a necessidade de os media saberem mais acerca da sua “clientela” tem sido constantemente evocada pelas empresas de media, usando ferramentas como as sondagens de audiências, que delimitam e identificam, de forma redutora, o seu público-alvo e as suas características (cfr. sorlin, 1997: 22). “Como nota McQuail (cfr. 1987: 45), ‘a essência de todo o mercado é trazer bens e serviços à atenção de consumidores potenciais, de forma a levantar e manter o seu interesse’. assim sendo, a essência do modelo de comunicação que sublinha McQuail envolve meramente ganhar ou atrair a atenção da audiência: a comunicação é considerada eficaz a partir do momento que as audiências efectivamente lhe derem atenção, independentemente da sua qualidade ou impacto” (Ang, 1991: 29).

Mas essa preocupação com o conhecimento da audiência, em termos de mercado, não surge a par da criação de mecanismos que permitam a formação de públicos, nem tão-pouco de uma vontade de interacção e compreensão dos destinatários dos media, no que diz respeito às suas preocupações e interesses

em termos temáticos. Como sublinha veikko pietillä, o jornalismo em geral e a imprensa em particular “deveria oferecer ‘um lugar para os leitores se transformarem mais num público – ou seja, para os cidadãos entrarem em conversação, discutirem, argumentarem, e entrarem num diálogo de comparações e de futuros’ (anderson et al., 1994: xxi). estas exigências implicam que, actualmente, os media não estão a cumprir a sua função de fórum” (Pietilä, 2001: 12). aliás, a tendência para a exclusão de públicos do processo de comunicação está bastante ligada à própria configuração dos mass media, que, a partir do seu surgimento e consolidação, introduziram um distanciamento quase estrutural entre si próprios e os seus consumidores.

num estudo levado a cabo por dois investigadores espanhóis, ortega e Humanes (2001), concluiu-se que “os jornalistas não parecem ter uma ideia demasiado definida do ‘seu’ público: o estereótipo da audiência como massa continua a exercer uma grande influência sobre os informadores, embora também se destaque o alto índice dos que afirmam não ter nenhuma imagem dos indivíduos aos quais se dirigem, o que é mais preocupante, pelo escasso interesse face aos utilizadores dos media que esta opinião esconde” (Ortega e Humanes apud aznar, 2005: 185). Citando Mauro Wolf, Hugo aznar refere que os jornalistas conhecem pouco o seu público e também não estarão muito interessados em o conhecer, apesar dos estudos efectuados para delinear as características das audiências (cfr. aznar, ibidem: 203).

os utentes dos media serão, pois, encarados como um consumidor “de quem se espera confiança mas a quem não se prestam contas” e as suas opiniões são frequentemente desvalorizadas pelos profissionais, que, ao fecharem-se sobre si próprios, encaram a sua profissão como uma “torre de marfim inacessível aos leigos” (cfr. Fidalgo, 2006c: 486). Com efeito, face à escassez de espaços para a criação e a participação de públicos, podemos dizer que “a relação dos cidadãos com as notícias ainda é muito uma questão de ‘não nos contacte, nós entramos em contacto consigo” (Lewis et al., 2005: 31). essa hipótese é reforçada pelas conclusões de pesquisas que incidem sobre a forma como as redacções têm integrado o designado user-generated content (ugC) – conteúdo gerado pelos utilizadores – nas suas rotinas profissionais e as percepções que sobre ele têm os

jornalistas: as contribuições das audiências são aliás, na prática, apreciadas de forma negativa (cfr. olsson e viscovi, 2013: 286).

Esse entendimento dos media em relação aos seus destinatários reflecte-se na maneira como os próprios jornalistas e editores lidam com os espaços de participação que oferecem aos leitores. Karin Wahl-Jorgensen concluiu, através da observação participante que levou a cabo num jornal local norte-americano, que os editores eram bastante cépticos em relação ao valor da secção das cartas dos leitores enquanto lugar de comunicação democrática, utilizando inclusive uma espécie de “idioma de insanidade”, quando se referiam a alguns leitores- escritores como “loucos”, “doidos” ou mesmo “desequilibrados”.

a professora da universidade de Cardiff relatou no seu estudo que, muitas vezes, os editores apenas precisavam de ver o nome do autor da carta para saber de que assunto tratava (cfr. Wahl-Jorgensen, 2007: 138); por outro lado, queixavam-se também da escassez de “cartas publicáveis” (cfr. ibidem: 147). descrevendo a sua experiência como editor do britânico Daily Telegraph durante os anos 80, Max Hastings referiu, aliás, a fraca qualidade das cartas recebidas pelo periódico, além do facto de os leitores-escritores revelarem falta de sanidade mental (cfr. Hastings, 2003: 53).

É interessante constatar a forma como esta atitude se verificou noutros estudos feitos sobre as cartas dos leitores, a nível internacional, para além daquele realizado por Wahl-Jorgensen. “o editor rejeitou imediatamente 22 cartas porque eram escritas por ‘loucos’ ou ‘histéricos’. alguns leitores-escritores regulares eram caracterizados desta maneira, incluindo uma pessoa que habitualmente submetia uma ou duas cartas por dia” (Ericson et al., 1989: 361), descrevem os autores quando analisaram o processo de selecção num jornal de grande tiragem no Canadá; verificaram ainda um contraste no tratamento dos leitores- escritores regulares com maior “capital cultural”, com um estilo adequado ao que se pretende pelo jornal e, por isso, favorecidos em termos de publicação, e os leitores-escritores regulares “loucos”, que não eram bem recebidos pela redacção e quase sempre viam as suas cartas rejeitadas.

Também Karin raeymaeckers constatou, no estudo que levou a cabo em seis jornais flamengos, que este grupo de leitores-escritores habituais, ainda que constituam uma minoria, são vistos pelos editores como “estranhos” ou

mesmo “perigosos” e geralmente escrevem sobre o mesmo tema (cfr. 2005: 211). na nossa pesquisa sobre o jornal Público, verificámos que existiam leitores regulares que não cabiam nas preferências da responsável pela secção das cartas, precisamente por os considerar como “loucos ou malucos”, apesar de admitir seleccionar as suas contribuições em alturas de baixo afluxo de cartas (cfr. Silva, 2007: 94).

igualmente, gregory e Hutchins constataram no seu estudo que alguns dos leitores regulares foram descritos como “não sendo inteiramente racionais”, também devido à sua insistência no envio de missivas, “impedindo um debate construtivo aos olhos do staff editorial” (cfr. Gregory & Hutchins, 2004: 196). esta concepção pode acarretar, em última análise, um distanciamento do jornal em relação à responsabilidade que têm perante os seus leitores e uma deslegitimação da secção enquanto fórum público (cfr. Wahl-Jorgensen, 2002c: 183 e seguintes).

este tipo de sentimento em relação a determinados leitores-escritores habituais é também mencionado em artigos do The Masthead 2. “o assédio de alguns leitores-escritores é um dos aspectos que nós, editores, temos discutido na ‘listserv’ do nCeW [national Conference for editorial Writers]. não gostamos de falar disto publicamente (...). Isso não é bom para o negócio” (cfr. Partsch, 2001: 1). um outro editor questiona, no seu artigo, até que ponto é que os leitores ditos “loucos” devem ser excluídos: “talvez na nossa próxima convenção da nCeW devessemos convidar alguns destes leitores para eles exporem as razões pelas quais as suas teorias incríveis deveriam ser publicadas” (Capwood, 1976: 16).

apesar da fraca interacção entre os emissores e os receptores das mensagens mediáticas e do parco conhecimento que os primeiros têm sobre os segundos, os media invocam frequentemente o nome do público quando empreendem determinadas acções ou quando explicam as motivações da sua actividade. “Servir o público” é, aliás, um axioma que os jornalistas frequentemente usam quando caracterizam a sua actividade. ou, por outro lado, apresentam-se como

2) The Masthead é a revista quadrimestral da associação norte-americana sem fins lucrativos “The National Conference of Editorial Writers”, fundada em 1947.

porta-vozes das ideias, opiniões, interesses ou desejos do público, falando em seu nome.

Mas não será o nome do público invocado em vão? além das poucas oportunidades de participação que lhe são dadas e do cepticismo com que é encarado pelos profissionais dos media, será que ele faz parte das próprias notícias? num estudo pioneiro sobre a questão, Justin lewis, sanna inthorn e Karin Wahl- Jorgensen tentaram responder precisamente à problemática da representação do público (aqui entendido como cidadão, num contexto democrático) nos media, através da análise de notícias de televisão e de imprensa, no reino unido e nos estados unidos, entre outubro de 2001 e fevereiro de 2002. depois de concluírem que há uma hierarquia de acesso imbuída nos valores-notícia dominantes, onde as acções das elites são bem mais visíveis que as acções das “pessoas comuns”, colocam a seguinte questão: por que é que o público ainda é uma referência constante para a forma como as histórias/notícias são contadas (cfr. lewis et al., 2005: 11)?

A resposta, segundo os autores, é clara: “as notícias, quase por definição, podem ser para os cidadãos, mas não são sobre eles” (ibidem: 16). em termos de valores-notícia tradicionais, o público, aqui na acepção de cidadão, é geralmente excluído das notícias sobre assuntos públicos, porque lhe falta autoridade, notoriedade ou “expertise” para tal, não estabelecendo a agenda pública.

Lewis, Inthorn e Wahl-Jorgensen definiram, para o seu estudo, formas diversas através das quais os cidadãos podem ser representados nas notícias:

vox pops (formato mais próprio das notícias televisivas, que permite aos

cidadãos comuns aparecer nas notícias, sem o peso da representatividade de uma sondagem); manifestações ou protestos (formas de acção colectiva, que têm tanto mais valor-notícia quanto mais envolverem incidentes ou confrontos com a polícia); referência a sondagens ou inquéritos à opinião pública (fornecem dados ideais para as notícias, porque utilizam uma linguagem binária e de fácil compreensão); e inferências sobre a opinião pública (menções muito gerais sobre atitudes existentes na esfera pública, sem terem por base dados de sondagens ou de inquéritos).

apesar da assunção comum de que as sondagens são a principal forma de representação do público nos media, os autores concluíram que as inferências

sobre opinião pública, sem recurso a dados das sondagens, são as formas mais frequentes de representação do público nas notícias. aqui, o repórter age como uma espécie de condutor da opinião pública, capaz de falar em nome do público e de conhecer instintivamente a disposição desse mesmo público (“public mood”); e esta capacidade de falar em nome do público adequa-se à auto-percepção dos jornalistas, que, como sublinha gans, enfatiza o seu papel enquanto “servidores do público”. Nesta representação do público nos media, os jornalistas acabam por veicular estereótipos sobre a opinião pública, representando os cidadãos quase como se fossem crianças, que têm disposições (“moods”), experiências e emoções, e não um papel efectivo e interveniente na esfera pública deliberativa (ibidem: 35).

neste sentido, prosseguem os autores, os cidadãos são representados nas notícias mais como consumidores, que reagem a uma determinada agenda política. Com efeito, os media, em geral, partem desta última para, só depois, invocar os pensamentos, as ideias ou os sentimentos dos cidadãos em resposta a essa mesma agenda (cfr. ibidem: 140).

atentar à linguagem e às atitudes dos jornalistas e editores assume uma importância crucial neste trabalho, uma vez que nos pode sugerir pistas sobre a compreensão que os mesmos têm sobre a cidadania e a participação pública. se, como vimos até aqui, os jornais têm determinadas concepções, baseadas em impressões vagas e imprecisas, dos seus destinatários, como é que os leitores- escritores de cartas serão entendidos? Por outro lado, se “servir o público” é um dos seus objectivos principais, não será a secção das cartas dos leitores uma boa oportunidade para o fazer? se, nas notícias, os cidadãos não aparecem enquanto tal, será que a rubrica das cartas é um mero “ritual estratégico” na imagem que o jornal quer projectar, fornecendo espaços para a participação, mas não valorizando devidamente essas contribuições?

um dos nossos objectivos, na pesquisa empírica, será precisamente compreender o papel da secção das cartas dentro das diferentes publicações objecto de análise, mas também o entendimento que os editores têm dos leitores que escrevem cartas, nomeadamente no que diz respeito às atitudes demonstradas na gestão da secção de correspondência e, também, à linguagem utilizada para descrever os autores de cartas.