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lippmann, dewey e Habermas: o conceito de opinião pública

publicada em 1922, a obra Public Opinion, de Walter Lippmann, reflecte sobre o papel do público num regime democrático. para este autor, jornalista e posteriormente conselheiro do presidente Wilson, os media não conseguem construir uma opinião pública esclarecida. por isso mesmo, lippmann advoga a existência de uma organização independente de especialistas, entre os quais figuram estatísticos, auditores, engenheiros, administradores e “cientistas”, para tornar os factos inteligíveis a quem tem que tomar decisões e para que, consequentemente, o governo representativo funcione com eficácia e êxito. Daí que as opiniões públicas tenham que ser organizadas para a imprensa – e não pela imprensa.

segundo este autor, as acções do homem baseiam-se não num conhecimento directo do mundo, mas sim em imagens dentro da sua mente, que não correspondem automaticamente à realidade (cfr. lippmann, 1960: 30). estas imagens mentais dos acontecimentos, contrárias à exposição directa à sensação, constituem as opiniões públicas. os preconceitos ou os interesses económicos, por exemplo, que estão em contacto intermitente com a opinião pública, distorcem e induzem em erro, de diversas formas, o pensamento, o comportamento e o discurso humanos.

lippmann sustenta que, através de uma análise da natureza das notícias e da base económica do jornalismo, a imprensa parece reflectir e intensificar precisamente uma organização defeituosa da opinião pública, uma vez que se assume, universalmente, que os jornais são o meio principal de contacto dos homens com o ambiente invisível e que estes últimos deveriam apresentar-nos uma imagem verdadeira do mundo (cfr. ibidem: 32 e 320). a partir do momento em que se espera que a imprensa crie uma força mística denominada como opinião pública, a primeira passou a ser vista, pela teoria democrática, como um órgão de democracia directa (cfr. ibidem: 363).

Contudo, na opinião do autor, o jornalismo não é um relatório em primeira mão de um material que ainda não foi trabalhado, mas sim um relatório desse mesmo material, depois de estilizado (cfr. ibidem: 347). um jornal é, pois, o resultado de uma série de selecções dos itens a serem publicados, segundo convenções estabelecidas e conveniências ou interesses privados. Esta reflexão de lippmann a propósito do jornalismo pode aplicar-se, de igual forma, à selecção das cartas dos leitores a serem publicadas num jornal – este veículo de participação resulta, também ele, de escolhas e enquadramentos feitos pelo jornal, conformes a regras estabelecidas internamente, decorrentes da própria natureza do jornalismo, tal como a define Lippmann.

Podemos afirmar, porém, que Lippmann possui uma visão essencialmente tecnocrata da democracia, deixando o público de fora do debate, sendo que este último se limitaria apenas a escolher os seus representantes através do voto. “se acreditarmos que temos uma burocracia poderosa e que a democracia é elitista, considera-se também a opinião pública como irrelevante e sem educação. lippmann foi o autor que melhor desenvolveu este tipo de associação, entre uma forma elitista de democracia e uma visão céptica da natureza e do valor da opinião pública” (Herbst, 1998: 16).

as questões polémicas devem, então, ser decididas pelos especialistas, uma vez que os cidadãos comuns não têm competência suficiente para se governarem a si mesmos. este autor considera o público incompetente para discutir as matérias públicas, existindo apenas como um “fantasma”, como o título da sua segunda obra, Phantom Public, de 1925, sugere. devido ao seu conhecimento limitado, a maioria dos cidadãos não consegue distinguir entre o que é falso e o

que é verdadeiro, estando obrigados a tomar decisões unicamente com base nas fontes de informação que têm ao seu alcance e não conseguindo propor soluções alternativas.

por outro lado, o autor da obra Public Opinion afirma igualmente que a imprensa vê o leitor mais como um alvo publicitário do que como um cidadão numa democracia, produzindo um regime de notícias que se encaixa perfeitamente nas expectativas e nos estereótipos dos leitores.

Com efeito, e como sublinha lippmann, os estereótipos dão consistência, estabilidade e significado àquilo que não conseguimos compreender, permitindo uma maior economização da atenção, oferecendo-nos uma visão mais ordenada do mundo e facilitando a adaptação a este último (cfr. lippmann, op. cit.: 95); a nossa apreensão dos factos é, então, altamente controlada pelos estereótipos. os estereótipos fazem-nos sentir seguros, porque nos dão um mundo que corresponde às nossas expectativas e defendem a nossa posição na sociedade. o autor entende os estereótipos como “ferramentas para a simplificação da realidade – ou para facilitar a realidade, utilizando as palavras de berger e luckmann – de forma a ‘conquistar’ o mundo” (Herbst, op. cit.: 22). no centro de um código moral, existe sempre um padrão de estereótipos que determina a perspectiva sob a qual devemos ver as coisas. nesse sentido, a opinião pública é também uma versão codificada e moralizada dos factos (cfr. Lippmann, op. cit.: 125).

“uma vez que o acesso directo das pessoas aos factos (matérias públicas) é influenciado por um determinado número de obstáculos, os indivíduos só podem organizar o seu pensamento se se basearem em estereótipos pessoais e culturais, que, não obstante, conduzem a erros e contradições. deveria dar-se crédito a lippmann por ter introduzido o conceito de estereótipo nas ciências sociais, noção ainda muito actual nos nossos dias” (Splichal, 1999: 154).

a questão fundamental a que lippmann quer dar resposta é a seguinte: de que forma é que a democracia pode ultrapassar as suas limitações, de maneira a que os indivíduos possam atingir um conhecimento racional e objectivo do mundo? para o autor, a forma mais adequada de melhorar a democracia consistirá em não sobrecarregar o cidadão com opiniões informadas acerca das mais variadas questões e transferir esse peso para um sistema de inteligência, ou seja, uma elite intelectual composta por especialistas e cientistas sociais, que ajudaria a tornar

visível o processo social, a estimular a auto-crítica e a ultrapassar a dificuldade em lidar com uma realidade oculta. segundo lippmann, tal permitiria escapar à ficção intolerável segundo a qual cada um de nós deve adquirir uma opinião competente sobre assuntos públicos (cfr. lippman, op. cit.: 31).

John Dewey, filósofo na Universidade de Columbia, EUA, lançou o livro The

Public and its Problems, em 1927, cinco anos após a publicação da obra Public Opinion, de lippmann. nesse livro, dewey concorda com lippmann, ao traçar

um diagnóstico negro do público, enquanto ficção ou máscara para os desejos privados de poder (cfr. dewey, 1954: 21). nesse sentido, ter optimismo em relação à democracia actual afigura-se como uma tarefa de difícil execução, uma vez que o público parece ter-se perdido ou desorientado, mostrando uma apatia política que se deverá ao facto de a energia da sociedade estar agora direccionada para assuntos não-políticos (cfr. ibidem: 123). este quadro da sociedade actual descrito por Dewey assemelha-se, em muito, à reflexão de Lippmann, fazendo até com que o primeiro agradeça ao autor de Public Opinion as suas ideias, em nota de rodapé (cfr. ibidem: 116).

Apesar de, aparentemente, os dois autores partilharem uma reflexão de carácter pessimista sobre o estado da sociedade dos nossos dias, dewey e lippmann não poderiam chegar a conclusões mais díspares. aliás, a controvérsia entre os dois autores ficou sobejamente conhecida por marcar as conceptualizações sobre a opinião pública nos anos 20 do século xx, numa altura em que o desenvolvimento dos métodos de sondagem suscitaram um elevado interesse sobre este conceito. O conflito entre Dewey e Lippmann centrava-se na relação entre a opinião pública e o governo nas democracias pluralistas, mais especificamente, no seu entendimento sobre a participação do público na vida política. as diferenças entre os dois autores expressam também, claramente, os problemas principais da teoria democrática que marcaram o debate sobre a opinião pública desde o Iluminismo. Lippmann crê na importância da informação científica sobre o mundo objectivo fornecida pelos especialistas; pelo contrário, dewey sublinha a importância da pluralidade das formas de comunicação que têm origem na comunicação interpessoal, em que a subjectividade e a objectividade são duas dimensões inseparáveis (cfr. splichal, 1999: 151). ainda hoje, a polémica entre

lippmann e dewey sobre a natureza da opinião pública permanece tão actual como em 1920.

enquanto, para lippmann, a chave para ultrapassar as limitações da democracia reside na criação de um sistema de inteligência que forneça os dados necessários para a tomada de decisões, dewey sustenta que apenas o público, organizado segundo objectivos políticos, e não dos especialistas, pode ser o árbitro final das matérias. Aliás, John Dewey atribui precisamente a responsabilidade pela confusão e apatia do público à burocratização e impessoalização da vida industrial – para este autor, um governo de especialistas, no qual as massas não possuem oportunidades de transmitir as suas preocupações e necessidades a estes últimos, não é mais do que uma oligarquia gerida pelos interesses de alguns (cfr. dewey, op. cit.: 208). o mesmo autor sublinha, com efeito, que, à medida que este conjunto restrito de indivíduos se torna cada vez mais especializado, afasta-se proporcionalmente daqueles cujos interesses devem ser protegidos e salvaguardados – o público.

dewey enfatiza, por isso, a importância da participação dos cidadãos na deliberação e no processo de tomada de decisão. este autor defende uma “democracia participativa genuína, ‘não como o meio mais eficiente mas como a forma de governo mais pedagógica’ (lasch 1995, 89), contrariamente a Lippmann, mais interessado na economia interna do público” (Splichal, 1999: 136).

a característica fundamental do público, para dewey, não é a sua irracionalidade, como sublinhou lippmann na obra posterior a Public Opinion,

The Phantom Public, mas sim a sua existência social, ou seja, o facto de ser

um produto da associação humana e, igualmente, o facto de reunir todos aqueles que são afectados pelas consequências indirectas das trocas simbólicas. o principal problema do público consiste em desenvolver um sistema para a selecção de representantes oficiais e determinar as suas responsabilidades e direitos. só através de uma vigilância e de uma crítica constante dos detentores de cargos públicos por parte dos cidadãos é que um estado pode ser mantido com integridade e utilidade (cfr. dewey, op. cit.: 69).

embora reconheça alguns problemas na democracia da década de 1920, altura em que o livro foi escrito, o autor não advoga a substituição da democracia

por um sistema dominado por especialistas científicos. Para Dewey, a resposta para os problemas da democracia corresponde a uma maior participação por parte dos cidadãos. portanto, contrariamente a lippmann, dewey acredita que o público existe e sempre existiu, argumentando que, no presente, este está apenas eclipsado, fragmentado, confuso até (cfr. ibidem: 121). os problemas da democracia, para dewey, não se devem à impossibilidade de um público, mas sim ao facto de a tecnologia ou o capitalismo terem reestruturado as relações humanas, de tal forma que o público perdeu o sentido de si mesmo. é, assim, necessário descobrir formas através das quais um público fragmentado possa reconhecer-se a si próprio para definir e exprimir os seus interesses. A solução, no entender de dewey, encontra-se, precisamente, no melhoramento dos métodos e das condições de debate, discussão e de persuasão (cfr. ibidem: 203).

uma vez que, para este autor, a opinião pública é um julgamento formado e expresso pelo público e na medida em que o público é constituído por um grande número de indivíduos e grupos que têm um interesse em comum (controlar as consequências das trocas sociais), o público e a opinião pública só podem emergir se os factos e as ideias forem efectivamente disseminados (cfr. splichal, 1999: 149), o que pressupõe métodos organizados de auscultação do público (“social inquiry”); caso contrário, o que aparenta ser uma opinião pública não é mais do que uma mera opinião (cfr. dewey, op. cit.: 149). a comunicação será, portanto, a cura para as fraquezas deste público actual, enfraquecido e eclipsado. nesse sentido, a imprensa, enquanto forma de comunicação, pode ser coadjuvante do desenvolvimento do público, pondo fim ao seu obscurecimento.

o debate dewey/lippmann e, por sua vez, as suas concepções distintas sobre o público e o papel dos media possibilitam, a nosso ver, um olhar mais claro sobre a forma como as cartas dos leitores, enquanto instrumentos do público, podem ser geridas e apresentadas pelas publicações. por um lado, as funções e as expectativas deste espaço, em termos de pluralismo e abertura, aproximam-se mais da concepção de dewey; mas, por outro, algumas práticas associadas à secção, favorecedoras de determinados leitores-escritores, assim como o próprio entendimento que ela colhe ao nível do campo jornalístico (entre uma certa desconsideração pelo leitor comum e a reverência pelos especialistas

ou “notáveis”), podem levar-nos a pensar um espaço de carácter mais elitista, mais próximo, portanto, da visão de lippmann.

nos dias de hoje, assiste-se à penetração dos interesses privados no espaço dos media, provocando transformações profundas na esfera pública. foi isso que Habermas quis reproduzir na segunda parte do livro The Structural

Transformation…, reflectindo preocupações tão pessimistas sobre a sociedade

actual como dewey ou lippmann. em vez de utilizar a expressão “eclipse do público” (Dewey), por exemplo, Habermas dá-lhe outro nome: a mudança estrutural da esfera pública burguesa, a partir do último quartel do século xix. na perspectiva deste autor, a opinião pública actual, administrada por elites políticas, económicas e mediáticas que a gerem como uma parte dos sistemas de gestão e controlo social, acaba por representar, na maioria dos casos, os interesses privados das elites. a rede de comunicação do público, emergente do debate racional entre cidadãos privados, entrou em decadência, pelo que a opinião pública se tornou, em parte, concentrada em opiniões formais de instituições publicistas.

Habermas defende que a comercialização da comunicação de massas fez desaparecer o debate crítico-racional em prol do consumo cultural. “esta ‘refeudalização da esfera pública’ (...) não só transformou o cidadão activo num consumidor indiferente, mas também garantiu que este fosse excluído da participação nos debates públicos e nos processos de tomada de decisão (...)” (allan, 1997: 318). sendo assim, a visão de Habermas, em The Structural

Transformation…, é bastante céptica no que diz respeito ao papel dos mass media no controlo da articulação entre opiniões diversas. na era da “gestão

da opinião pública”, aquilo que se chama “debate racional” é uma questão de disputa contínua entre discursos desiguais de cidadania; apenas alguns deles podem tornar públicas, apropriadas ou credíveis as suas definições de realidade. Como diz Habermas, os mass media transformaram o espaço público numa arena infiltrada pelo poder, na qual se trava uma batalha não só pela influência, mas também pelo controlo dos fluxos comunicacionais (cfr. ibidem).

“Quando os temas e os assuntos propostos pelas sondagens são subordinados aos interesses políticos, assim como a sua organização (fabricação) e utilização, então a Opinião Pública tornou-se uma mera ficção; na verdade ela

já não representa público nenhum, apenas legitima determinados interesses particulares que se dissimulam como gerais ou que aspiram a fazer-se passar por vontade colectiva da sociedade” (Esteves, 1997: 3). De facto, o que converte as opiniões do público em opinião pública é a forma como se produzem e o amplo assentimento pelo qual são sustentadas. por não ser um agregado de opiniões individuais, a opinião pública não deve, então, confundir-se com os resultados das sondagens de opinião (cfr. Habermas, 2001: 442).

a sondagem de opinião é, presentemente, um instrumento de acção política; a sua função mais importante é impor a ilusão de que existe uma opinião pública como somatório puramente aditivo das opiniões individuais, que constitua uma média de opiniões ou uma “opinião média” (cfr. Bourdieu, 1980: 224). Aos indivíduos, cabe-lhes um papel de carácter mais passivo, sendo vistos como mais um número ou uma entidade passível de ser quantificada. Contudo, tudo isto não implica uma anulação total da capacidade de acção individual.

Com efeito, a par da sua utilização instrumental e estratégica, assistimos ao revitalizar de um ideal de opinião pública genuína. “esta representação simbólica revalorizada do espaço público e da opinião pública, por sua vez, alimenta toda uma série de novas práticas sociais e políticas de resistência, isto é, formas de acção e de organização da vida colectiva que exploram vias alternativas, temáticas originais e novas formas de experiência. e é neste interstício da opinião pública dos nossos dias que faz sentido voltar a falar de direitos individuais: a partir dos novos espaços públicos que se abrem à participação individual, ao exercício da cidadania, às energias libertárias de uma sociedade civil que volta a querer pensar- se autonomamente, sem os constrangimentos dos poderes administrativos ou dos interesses hegemónicos que têm origem no seu próprio interior” (Esteves, op.

cit.: 3). Colocam-se aqui duas questões, adaptadas ao âmbito desta pesquisa: será

que as cartas dos leitores, no âmbito da imprensa, se enquadram neste “renascer” dos direitos individuais? não estarão eles irremediavelmente condenados aos constrangimentos que a lógica jornalística lhes impõe?

Como já foi referido, Habermas, em obras posteriores, adoptou uma atitude mais optimista em relação às possibilidades dos media, talvez mais próxima da visão de dewey, ao propor soluções para criar as condições necessárias ao desenvolvimento de uma democracia genuína. segundo Habermas, para a

estruturação de uma opinião pública, as regras de uma prática de comunicação pública mantida e posta em comum são da maior importância.

As opiniões públicas, no dizer deste autor, têm um potencial de influência (entendida aqui como uma forma simbolicamente generalizada de comunicação, que governa as interacções em virtude da pura sugestão retórica, segundo parsons) sobre o comportamento eleitoral dos cidadãos ou sobre a formação da vontade política nos organismos oficiais. A influência política, porém, só se transforma em poder político – capacidade para tomar decisões vinculativas – quando determina o comportamento dos eleitores, dos membros ou funcionários do governo, entre outros agentes. Mas o espaço público político só pode cumprir a sua função de percepção e tematização dos problemas respeitantes à sociedade global, na medida em que integra os contextos de comunicação dos indivíduos potencialmente afectados, sendo sustentado por um público que inclui a totalidade dos cidadãos (cfr. Habermas, 2001: 445). Mais duas questões emergem daqui: será que as intervenções dos leitores na imprensa, sobretudo no espaço das cartas ao director, conseguem exercer influência política, tal como Parsons a definiu, e assim ter poder para orientar comportamentos políticos? e será que este mesmo espaço das cartas dos leitores consegue reflectir a diversidade de realidades comunicacionais do público em geral, em termos de temáticas e formas de expressão?

no próximo capítulo, abordaremos a teoria da democracia deliberativa, centrada na troca de argumentos e na participação dos cidadãos como forma de influência no processo de tomada de decisão, transpondo a reflexão sobre as cartas dos leitores na imprensa para este contexto.

[as Cartas dos leitores na imprensa portuguesa:

uma forma de comunicação e debate do público, pp.49 - 72]