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9. TERRITÓRIOS DE SOCIABILIDADE: VIVER EM ACORDO SEM SER DIVINO.

9.5 Ceias, saudades e convívios

Fora do âmbito das associações, mas também no centro histórico, a dependência do Lar de Sto. António e o Albergue de S. Crispim, mais do que espaços de lazer e convivialidade, representam, para quem os frequenta, um porto-de-abrigo feito de sólidos gestos de humanidade. J. T é o responsável por toda a actividade da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano, colaboração que presta gratuitamente há muitos anos: “O Albergue foi o primeiro hospital de Guimarães. Dava apoio aos peregrinos de

Santiago. A lenda diz que S. Crispim deixou moedas para dar uma ceia de Natal a vinte pobres, todos os anos”. Para seguir esta tradição, continuam ainda hoje a organizar essa

ceia, servida a quem estiver presente87. “Na ceia de 2002 apareceram 52 pobres. Os

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Para além da ceia, o Albergue mantém actividade ao longo de todo o ano, acolhendo senhoras sem família e sem recursos económicos: “Neste momento é habitado por cinco senhoras. Há dez quartos de

dormir. Para habitar o Albergue cada qual tem de ser autónoma, tem que se governar. Têm que ser pessoas válidas”, diz J. T. A cozinha é comum mas cada uma tem o seu fogão e os seus utensílios de

pobres que agora aparecem são sobretudo toxicodependentes e prostitutas. Vêm de muitos lados, não é só de Guimarães. A Câmara dá um subsídio e a família G.A. o vinho de quinta. Por Deus há sempre quem dê”. Quinze pessoas ajudam regularmente

na confecção da ceia de Natal. A família de J. T. ajudou sempre e por isso sempre começaram a ceia familiar depois de todos servidos e tudo arrumado no Albergue. “Já

aconteceu irmos para casa às 4 horas da manhã. Era quando havia mais pobres. Nessa altura, a ceia era servida na viela [porque não cabiam todos dentro da sala do

Albergue]. A viela era fechada do lado da Rua da Rainha com um muro e do outro com

um portão. Cobria-se com uma cobertura de zinco e montava-se mesas que iam de uma ponta à outra da viela. A polícia estava sempre a controlar porque era muita confusão: muitos queriam comer mais do que uma vez e bebiam também de mais”. Hoje em dia a

ceia faz-se dentro do Albergue, num salão mal iluminado, com mesas e bancos corridos, chão em terra batida e paredes de pedra caiadas de branco. “Muita gente vem espreitar a

ceia, os curiosos”. Na impossibilidade de satisfazer a minha curiosidade, limito-me a

imaginar o cenário dickensiano destas ceias de Natal, concluindo, uma vez mais, que desconheço muito do que me rodeia, apesar do meu interesse, da reduzida dimensão da cidade e da mediatização que recentemente a tem envolvido.

A dependência do Lar de Sto. António no centro da cidade, vulgarmente conhecida por “Casa dos Pobres”, é um outro convívio possível para os mais envelhecidos e carenciados. Situado no centro histórico, entre a Rua Egas Moniz e a Rua João de Melo, este espaço colectivo é um dos exemplos que me fazem acreditar na sinceridade da proposta do G. T. L. de devolver a cidade aos seus cidadãos: contra a vontade de muitos que viam nesse imóvel um local apetecível para o comércio ou restauração, insistiu-se em “desperdiçar” esse espaço destinando-o a um lar de idosos.

A educadora social responsável, N. R., foi quem me orientou neste terreno de dependências e saudades, vida nas margens para novos e velhos, que funciona com três valências: cozinha económica, centro de dia e banhos. À cozinha económica todos chamam “Sopa dos Pobres”, utentes ou não. “Há em média 30 a 40 pessoas ao almoço e

ao jantar: 90% são toxicodependentes e prostitutas. As figuras típicas já não vêm aqui. A maior parte morreu. Agora é toxicodependentes. Todos os arrumadores da cidade comem aqui. As prostitutas também são toxicodependentes e o problema do álcool que está também associado. Há também famílias mas pouco”. Este serviço funciona todos

cozinha. A estadia, totalmente grátis, pode durar décadas: “A última senhora que saiu daqui para o lar,

os dias do ano, com excepção de Natal, jantar de Sábado e Domingo. “Há gente que

vem aqui regularmente, almoço e jantar, há 10 anos. Têm lugares fixos: são eles que marcam os lugares pelo hábito de ficarem sempre no mesmo. Dizem: - Sai daí, que aí é o meu lugar!”. Quanto aos banhos, a regularidade não é a mesma das refeições, diz N.

R.. “É porque são desleixados porque não têm necessidade de andar sujos. Também

temos aí sempre roupa lavada que eles podem usar. Deitam a que trazem no momento fora, ao lixo, e podem pegar em roupa limpa e ficar com ela”.

O centro de dia serve gente idosa mas que ainda se pode deslocar com alguma facilidade, não precisando, por isso, de dormir no Lar. No Verão, N. R. acompanha os que têm mais facilidade de se deslocar em passeios curtos pelo centro histórico. “É mais

de manhã. De tarde há o lanche e também gostam de ficar por aqui a jogar às cartas ou a conversar”. Partilham o espaço com quem lá passa as tardes, não pagando nada, nem

mesmo o lanche, chamando-se esta valência o centro de convívio. “Estes são todos da

cidade e daqui de perto. Vêm a pé. No Inverno ficam aqui toda a tarde mas no Verão dão uma volta. Os homens saem mais. Quando há festas há sempre gente da Rua Egas Moniz e circundantes a assistir”. Mesmo sem ser dias de festa, encontrei aqui muitos

dos moradores da Rua Egas Moniz- sobretudo senhoras, que entretanto conhecera durante os preparativos das procissões- que se juntam aos idosos neste espaço em que a nostalgia faz o tempo andar mais lentamente.

Os problemas sociais e económicos uniformizam quem frequenta o centro de dia: discriminados pela idade, experimentam uma transição crucial que pode significar uma perda de rendimentos e uma mudança de posição social, podendo constituir um processo perturbador e solitário, pois as pessoas têm de reestruturar a maior parte das suas rotinas diárias (Giddens, 1997: 726). Partilhar este espaço obrigará a essa reestruturação mas parece a forma possível de manter laços sociais88. Fora dele, até estes mesmos laços se interrompem pois “Os idosos não prolongam o convívio em

casa”, diz N. R.. Regressados a casa, esperam-nos longas horas de silêncio que

transforma as memórias em labirintos de saudade.

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“A velhice é frequentemente um período de perda de relações: a reforma significa não só a perda de um emprego, como também a do contacto com outros no trabalho. (...) As consequências sociais e psicológicas da reforma variam de acordo com as experiências de trabalho e os padrões de vida anteriores. Numa sociedade em que o trabalho é um valor central, a reforma significa muitas vezes uma perda de posição social e a ausência de rotinas que podem ter estruturado uma vida individual durante meio século, criando um vazio difícil de preencher. Devido ao ritmo das inovações tecnológicas e de outras mudanças, conhecimento e as capacidades adquiridas ao longo de uma vida já não granjeiam o respeito dos jovens, como acontecia na maioria das culturas tradicionais” (Giddens, 1997: 722- 723).