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5. OS USOS SOCIAIS DO PASSADO: A SAGRAÇÃO DO PATRIMÓNIO

5.6 Património social e identitário

Para Furet (1996: 424-426) a criação de um novo campo em matéria de preservação dos monumentos ampliando a noção de objectos merecedores de ser protegidos aos conjuntos naturais históricos tem a ver com o crescente desenraizamento das sociedades modernas: a sociedade está descontextualizada e mais solitária, feita de indivíduos afastados do seu meio, privados das suas raízes e arrastados pela agitação do mercado. Por isso, é difícil não relacionar esta descontextualização existencial dos cidadãos modernos com a sua paixão pelo reenraizamento num passado que lhe pertence, quer dizer patrimonial. E Furet afirma ainda que é o que explica que o património de hoje não seja de natureza aristocrática moderna- como durante o Ancien Régime- ou revolucionária romântica- como no século XIX- ou republicana e nacional- como antes da Grande Guerra- mas social e identitária33, destinada a ligar o indivíduo à comunidade através de traços culturais que reconheça: “Cette demande sociale est un des éléments qui explique l’effort fait pour recontextualiser les œuvres et les objets du passé” (Furet, 1996: 425).

O alargamento da noção de bem cultural, tendo por objectivo o reforço das identidades locais- em França como reacção à longa ditadura de Paris-, provocou um generalizado entusiasmo pelo património identitário que se alimenta da obra integrada no seu meio mais do que do objecto de arte isolado. Mas Mac Gregor (1996: 385) lamentou, de certo modo, esta tendência para a integração: não podemos esquecer que as deslocações implicam novas organizações de um património, novos sistemas de classificação que enriquecem a apreciação do nosso património e o dos outros.

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A este propósito, também Colardelle (1998: 125) refere uma evolução notável: num clima geral de redescoberta dos «patrimónios locais», o património monumental diversificou o seu objecto em direcção às arquitecturas que testemunham outros segmentos da sociedade para além dos clássicos (o poder do Ancien Régime, monarquia, nobreza e igreja, que continua, no entanto a ter a parte de leão dos orçamentos do Estado).

Alargando a noção de património a uma concepção antropológica, passámos a considerar os imóveis e os objectos como conjuntos cuja integridade também deve ser objecto de conservação. Nesta perspectiva, os objectos do património são os objectos e os conjuntos de objectos ligados a uma actividade humana e ao edifício que lhe dá abrigo (Poisson, 1996: 216). Para Bensa (2001: 1-12), é a verdade sociológica que se evidencia em relação à verdade histórica, apesar de haver épocas estereotipadas que são privilegiadas, sendo a Idade Média uma delas; em França, por causa dessa febre de história, lugares esquecidos transformaram-se em «sources de puissance» onde moradores e turistas, tal como os peregrinos de antigamente, procuram emoção e reconforto.

A deslocação a um centro histórico implicará sempre a fruição do património integrado, modalidade que hoje em dia parece apaixonar cada vez mais gente mas que continua a colocar problemas de conservação. Os monumentos não são protegidos por aquilo que são, mas pelo seu carácter e charme de cenário. Já Viollet-le-Duc e Sitte estavam de acordo ao ver na encenação o fundamento da arte urbana, uma forma de apresentar o monumento como um espectáculo ou de o dar a ver da forma mais favorecida (Choay, 1992: 163). E Gaehtgens (1996: 60) denuncia esta situação, prevenindo que se antes, o mais importante era conservar monumentos, obras de arte34; hoje uma nova tarefa se impõe aos serviços dos monumentos históricos: proteger os monumentos não só dos inimigos mas sobretudo dos amigos mais calorosos.

Os monumentos e o património históricos são obras que dispensam saber e prazer, colocadas à disposição de todos, diz Choay (1992: 163). Mas será que, na verdade, todos os usufruem do mesmo modo? Num trabalho levado a cabo no centro histórico de Évora, Esperança (1997) concluiu que a relação afectiva especial resultante do privilégio de se habitar um centro histórico parece afectar unicamente os habitantes mais recentes e com formação acima da média; a generalidade dos restantes habitantes, mais idosos ou herdeiros, não sofreram ou sentiram tanto as solicitações mais recentes dessa valorização. Também em Guimarães pude observar que frases como “Há um

«género» de pessoas que começa a viver no centro histórico: quem gosta de coisas antigas é diferente das outras pessoas”, (F. R.) ou “Os frequentadores do centro histórico pertencem a um género de pessoas, diferente de quem frequenta os centros

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“On peut véritablement parler d’un renversement de situation. Si, autrefois, l’essentiel du travail de conservation consistait à entretenir les œuvres d’art les plus importants, il en va presque à l’inverse aujourd’hui. L’ensemble définit un cadre et appelle à la reconstitution des monuments disparus” (Gaehtgens 1996: 60).

comerciais. Há quem vá a Paris e só entre em centros comerciais e quem procure os museus. Quem frequenta o centro histórico são estes que vão habitualmente a museus, o que não quer dizer que também não gostem de centros comerciais. Quem vive nos arredores de Guimarães quase não conhece o centro histórico”, (A M.), proferidas por

dois dos comerciantes de artesanato do centro histórico, referem igualmente essa “febre de história” que tocou moradores e visitantes e impele ao consumo de bens artísticos e culturais, dando origem a um público de monumentos históricos.

O mesmo património deslocado em museus ou recriado em ecomuseus teria o mesmo público? Satisfeitas as necessidades de contemplação a par de objectivos estéticos, científicos ou pedagógicos, atrairiam esses museus o mesmo público que se desloca aos centros históricos? É o mesmo público que frequenta museus e centros históricos, como pensa A. M., ou surgiu um público de um tipo novo, à procura de construir uma imagem da identidade humana, por via da acumulação de todos esse bens, vasto espelho no qual nós, os membros das sociedades humanas dos finais do século XX, contemplaríamos a nossa própria imagem (Choay; 1992: 188)? Ou será que simplesmente procuramos descobrir quem somos em função daquilo em que acreditamos ter sido originados e daquilo que está à nossa espera- o destino- cujo sentido procuramos desesperadamente determinar e compreender (Jorge, 2003: 16) ?

O uso de imagens do passado para a construção social de identidades tem sido o objectivo de muitos estudos. Pesquisas realizadas em Ayrshire, Escócia (Strathern e Stewart, 2001, cit por Stewart e Strathern, 2003: 39), mostraram como sítios com significado histórico podem ser apropriados através do seu estatuto de património cultural para reforçar identidades locais pois, em termos de identidade, há dois elementos que entram em linha de conta: noções de memória e espaço, que, juntas, ocupam um espaço conceptual análogo ao de comunidade na antropologia social de algumas sociedades. Mas quando referem passado e memória, estes mesmos autores não recuam sempre (des)necessariamente no tempo. Assim, um outro exemplo de sítio com significado histórico é encontrado em Nova York, cidade que dificilmente referiríamos como exemplo de cidade histórica: “The 11 September 2001 terror attacks in New York city have shown how important objects of the urban landscape (e.g. buildings) can be in the formation of identities (in this instance symbols of «America»). Memories of this landscape have been reflected in the narratives of New Yorkers since the event and will be referred to in historical accounts for years to come” (Stewart e Strathern, 2003: 10).

Um lugar é, neste contexto, um espaço socialmente identificável ao qual foi atribuída uma dimensão histórica: serve como marcador fundamental da continuidade com o passado, assim como assegura a identidade do presente e do futuro.

A noção de perda do “sentido de lugar” aparece normalmente associada à perda do lar em termos de espaço físico mas tem sido utilizada também para descrever um sentimento mais geral de perda da totalidade, um descrédito dos valores morais, das relações sociais genuínas, da espontaneidade e expressividade (Turner, 1987 cit. in Featherstone, 2001). Partindo do argumento de que o sentimento de pertença a um lugar se sustenta numa memória colectiva que, por sua vez, depende de práticas e cerimónias ritualísticas e comemorativas (Connerton, 1989 cit. in Feathrestone, 2001)

“a questão central reside em que a nossa noção de passado está longe de depender das fontes escritas, mas passa, acima de tudo, por práticas ritualísticas, de algum modo regulamentadas e pelo formalismo da linguagem ritual. Aqui enquadram-se rituais comemorativos, tais como casamentos, funerais, festas de natal, de Ano Novo e a nossa participação ou envolvimento, como espectadores, em rituais locais, regionais e nacionais (casamentos célebres, feriados nacionais, etc.). Estes podem ser vistos como alimentadores das ligações emocionais entre as pessoas, que renovam o sentimento do sagrado. Este sagrado só raramente funciona como um invólucro integrador em relação ao Estado-nação (Featherstone, 2001: 92-93).

O património apresenta-se-nos, também, como um valor da memória que, de certo modo, projecta na contemporaneidade a presença daquelas origens que nós, protagonistas da actualidade, constituímos como nossas. E, por esse motivo, diz Centeno Jorge (2003), em rigor, todo o património, nesta acepção, só poderá ser imaterial, não existindo como materialidade, fisicamente tangível: os objectos são suporte de uma herança, tornando-se a expressão de conteúdos que não são materializáveis já que pertencem ao domínio do espiritual. “Em consequência disso, eles existem como reunião entre um suporte material, o objecto físico- um edifício, uma pintura ou uma canção- e um conteúdo imaterial- aquilo que eles exprimem enquanto formas e enquanto herança” (Jorge, 2003: 11-13).

6. LUGARES DE PODER E DE MEMÓRIA: LEMBRAR PARA