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8. OUTRAS CLASSIFICAÇÕES: UM DEBATE ALARGADO

8.3 Olhar-se ao espelho pelo buraco da fechadura

O reconhecimento do investimento feito pelo poder local na recuperação do centro histórico, verbalizado através dos elogios ao Presidente da Câmara, é praticamente unânime entre todas as pessoas que contactei. Quer comerciantes, quer moradores, referiram-se quase todos ao Presidente como o grande obreiro de todas as melhorias, o único responsável por tantas modificações. Frases como “O Presidente tem

sido formidável para o centro histórico”, “Isto são as meninas dos olhos dele”, “Ele tem um gosto nisto que sei lá...”, “Desde que este Presidente foi para a Câmara, esta cidade não parece a mesma”, “É o próprio Presidente a apanhar lixo do chão. Já vi. É um

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M. D. refere-se a um dos raros exemplos de demolição autorizada pelo G.T.L. já durante a requalificação do centro histórico, em que a opção foi construir visivelmente moderno. Álvaro Siza (2001: 12) criticou do seguinte modo essas intervenções em edifícios de zonas históricas: “Quando penso na recuperação de habitações em centros históricos custa-me verificar que se pretende deixar uma espécie de assinatura, com a introdução de marcas modernas no exterior. Esta não é a minha ideia”. Felizmente, de um modo geral, não tem sido também a ideia do G.T.L., mas sim recuperar de forma a manter a coerência e harmonia que caracterizam este núcleo urbano.

fiscal”, “O Presidente é uma pessoa fantástica: foi ele que fez tudo” ou “Fez mais do que outros que eram da cidade” foram constantemente proferidas, mesmo por aqueles

que simultaneamente se queixavam dos prejuízos causados pelas obras, estes referidos só por comerciantes- de facto, só os comerciantes se referem negativamente ao processo de requalificação, para se queixarem dos prejuízos causados pela falta de acessos um pouco por todo o centro histórico. É, no entanto, o G.T.L que se apresenta como “responsável pela política de reabilitação urbana adoptada para o centro histórico” na Proposta de Candidatura de Guimarães a Património Mundial, sem fazer referência ao Presidente da autarquia. Apesar da proximidade do G.T.L- implantado no centro histórico- e do facto de existir desde 1985, o trabalho e as opções estéticas, culturais e políticas dos seus técnicos passaram despercebidas à maioria dos moradores e comerciantes, pelo menos por aquilo que manifestaram oralmente.

A acreditar na ideia de que “foi ele [o Presidente] que fez tudo”, tão-pouco se sentem responsáveis e intervenientes no processo de requalificação e classificação do centro histórico. Desconhecem, certamente, que um dos critérios apresentados na Proposta de Candidatura foi a “manutenção da população residente” bem como a “salvaguarda e manutenção das pré-existências erguidas com técnicas construtivas tradicionais”, relacionando indelevelmente a presença humana com o ambiente construído: “As técnicas tradicionais em Guimarães derivam da prática, da transmissão oral que transporta o passado para o presente, o fazer continuado e a manualidade. É na conjugação destes factores que reside a riqueza própria das técnicas tradicionais, sendo o homem o agente da prática e da tradição” (in Proposta de Candidatura). Esta cidade, sem pessoas, não seria nunca classificada porque a sua autenticidade decorre não só do património imóvel construído mas também da forma como este foi vivido e transmitido no quotidiano. A consciência de herança colectiva que, relacionando gerações, testemunhos e memórias, surgiu da relação do passado com o presente, enriqueceu culturalmente os seus residentes e o seu sentido de identidade.

De todos os moradores entrevistados, só um disse ser também responsável pela classificação: “Ajudei muito para que isso acontecesse”, afirmou J. T., o empreiteiro que mais trabalhou no centro histórico72. “Todas as obras obedeceram ao parecer

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J. T. nasceu e mora no centro histórico, onde suponho que é uma das figuras mais populares. Ele próprio diz conhecer toda a gente que vive no centro histórico: “o bom e o fraco”. Começou a trabalhar na construção civil muito novo porque “Toda a família era da arte”. O primeiro trabalho que fez de construção civil (andava ainda na escola primária) foi no Albergue de S. Crispim. “A Irmandade de S.

técnico do GTL. Todos os materiais foram mantidos, a não ser que estivessem em ruína. O que é possível manter mantém-se, o que está em ruína é demolido e reconstruído igual ao original”73. Acha muito bem que seja assim: “Foi assim que se chegou a

Património Mundial”. Só lamenta não estar tudo recuperado. E que o que já está, seja

vandalizado: “Os passeios estão todos esmoucados. Custa tudo uma fortuna”. Este senhor foi também o único que se referiu aos custos, certamente elevados para a autarquia, de uma obra tão vasta e prolongada, porque, apesar de não ser uma obra particular, dedicou-lhe muito trabalho e gosto. O gosto de poder dizer: “Hoje vive-se

melhor no centro histórico do que noutro sítio qualquer. Adoro o centro histórico. A Rua de Sta. Maria é a mais bonita do mundo”.

Dado o seu envolvimento directo nos trabalhos de requalificação, percebe-se que este morador se sinta, de certo modo, responsável pela classificação. Estranho, no entanto, que muitos outros omitam investimentos e colaboração num projecto que teve a sua quota parte de colectivo. Uma das principais linhas estratégicas da Câmara foi garantir apoio técnico e financeiro aos privados que dessa forma se sentiriam encorajados a recuperar edifícios degradados, aliviando deste modo parte dos encargos públicos, indispensáveis para a recuperação dos espaços públicos e imóveis municipais.

Vários dos moradores entrevistados fizeram obras com apoios do Projecto RECRIA, beneficiando de cerca de 50% a fundo perdido, mas lamentaram todos não terem podido alterar o interior ao gosto de cada um. “Os interiores devia-se poder

substituir”, conservando ou reconstruindo as fachadas. Para S., uma moradora recente

do Largo João Franco- um dos casos de gentrificação que identifiquei-, viver no centro histórico “é um exclusivo de poucos”. A aquisição de uma casa não é para todos, afirma: “Fica caro. E aprovar qualquer coisa no centro histórico é mais complicado”. Neste caso preciso, após levantamento arqueológico, deitaram abaixo todas as paredes e reconstruíram todo o interior; só tiveram que manter a fachada.

A lenda diz que S. Crispim deixou moedas para dar uma ceia de Natal a 20 pobres, todos os anos”. J. T. é

actualmente o mesário da Irmandade e o responsável pela Ceia. “Em 2002 apareceram 52 pobres para a

ceia de Natal. Os pobres que aparecem são sobretudo toxicodependentes e prostitutas”. Quinze pessoas

ajudam regularmente. A sua família ajudou sempre e desde sempre só começam a ceia familiar depois de tudo arrumado no Albergue. “Já aconteceu irmos para casa às 4 horas da amanhã. Era quando havia

mais pobres”. Para além da ceia, o Albergue serve de residência feminina (tem 10 quartos de dormir). A

estadia, totalmente grátis, pode durar décadas. “A última senhora que saiu daqui para o lar, viveu aqui 30

anos. Normalmente estão menos tempo. É conforme. Têm é que ser pessoas válidas, têm que se governar”.

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O GTL promoveu a realização de cursos de formação de operários da construção civil com a finalidade de se especializarem em técnicas de construção tradicional, exigindo a aplicação prática dessas técnicas aos casos concretos: J. T. foi um dos formadores.

Muitos outros moradores do centro histórico não receberam, no entanto, quaisquer apoios, como nos casos que refiro seguidamente. M. S., morador no Largo da Oliveira há 45 anos, acompanhou a requalificação desde o início. Diz mesmo, como se referisse o início de uma construção: “O centro histórico começou com o restauro da

Praça da Oliveira, com o restauro da Pousada”. Aparentemente, o “centro histórico”

antes, ou não era centro ou não era histórico, ou não era nada que valesse a pena referir. E continua: “De lá para cá, isto tem sido sempre a progredir. A Câmara põe todas as

casas bonitas”. Se a nossa conversa tivesse terminado aqui, teria pensado que

beneficiou dos referidos apoios da Câmara. Não, pois segundo me explicou “só podia

ser quem tivesse caseiros a pagar rendas muito baixas. Nessa altura já era proprietário. Aqui nem a fachada”. Fez ele próprio as obras, para valorizar não só a

casa mas a praça que ele acha “um lugar sagrado, um lugar nobre”.

A. A., a mais antiga moradora da Praça de Santiago e também proprietária de uma loja de artesanato, no rés-do-chão, é uma das grandes entusiastas da requalificação do centro histórico. Reconhece que o centro histórico não foi todo tratado (reabilitado) da mesma forma mas pensa que deram mais atenção à Praça de Santiago simplesmente porque “era mais pobre, precisava mais”. Tem sido procurada frequentemente para dar entrevistas quer a jornalistas, quer a estudantes e está representada em livros recentes sobre o centro histórico. Tudo isso são motivos de orgulho que lhe dizem muito. Por isso mantém a casa, de que é proprietária, muito bem arranjada e faz “sempre obras” quando lhe pedem: pinta a fachada, os caixilhos das janelas, as varandas. Por dentro conserva tudo o que é antigo, “assim é que é bonito”.