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9. TERRITÓRIOS DE SOCIABILIDADE: VIVER EM ACORDO SEM SER DIVINO.

9.2 Espaços que (re)produzem padrões sociais

A Associação Cultural e Recreativa “O Convívio” 76., instalada numa casa do

séc. XVIII do Largo João Franco, é uma “referência obrigatória da vida cultural de

Guimarães e lugar agradável de lazer e convivência. O Convívio, como instituição, movimenta o largo, sobretudo à noite. Se não fosse o Convívio, era morto”, diz o seu

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“O Convívio é uma associação de cariz cultural e recreativa, sem fins lucrativos, fundado em 21 de

Outubro de 1961. Tendo sido capaz de integrar no seu projecto muitos dos quadros culturais de maior prestígio na cidade, a acção do Convívio desdobrar-se-á ao longo dos anos em múltiplas realizações e colaborações: conferências, colóquios, exposições, concursos literários, ciclos de concertos de música clássica [Encontros da Primavera], espectáculos de jazz [Guimarães Jazz], Cursos Internacionais de Música, Oficinas de Jazz”, explica J. M.

presidente, J. M., que reconhece que a associação, apesar de dinâmica, não representa socialmente o centro histórico: dos seus 520 sócios, só 2 moram na zona intra-muros. Não é só o Largo João Franco que tira partido da actividade desta associação: grande parte dos concertos aqui organizados decorrem no Paço dos Duques ou, eventualmente, no Museu de Alberto Sampaio, fazendo deslocar ao centro histórico muita gente da cidade e de fora. Não sendo gratuitos e decorrendo em espaços fechados, estes eventos culturais atraem uma frequência muito mais restrita do que os realizados por outras entidades na Praça de Santiago ou Largo da Oliveira. Apesar da proximidade, por hábito- ou falta dele- a maioria dos moradores do centro histórico não frequenta a sede do Convívio, nem esses espectáculos: decorrem em espaços históricos- o Paço dos Duques, o Museu de Alberto Sampaio e o Auditório da Universidade do Minho- que, segundo Lefebvre (2000: 70-71), a burguesia elitizou e aburguesou, numa espécie de neo-colonialismo que se pode ler na forma como esse espaço foi produzido.

Para Bourdieu (1980: 229-230), a legitimação da ordem estabelecida já não é tarefa exclusiva dos mecanismos tradicionalmente considerados pertencentes à ordem ideológica, como o direito. Actualmente é o sistema de produção de bens culturais que contribui, de forma camuflada, para a reprodução da ordem social sob uma aparência de igualdade formal: os efeitos ideológicos mais seguros são os que, para se exercer, não necessitam de palavras, mas da complacência e do silêncio cúmplice. De facto, as desigualdades sociais no acesso às formas de expressão cultural e artística mais nobres não desapareceram, nem objectiva nem subjectivamente: os domínios e as competências de exercício do poder de hierarquização serão, hoje, menos facilmente identificáveis, e portanto provavelmente mais sujeitos a diversidades de representação, mas não deixarão de (re)produzir padrões, eventualmente mais complexos e segmentados, de referência e distinção cultural (Santos e Abreu, 2002: 215).

Para Castells (1991) a preservação destes lugares para a elite tradicional é um ponto-chave na autodefinição desta elite:

“Es toda la adhesión elitista a los valores de la cultura urbana lo que está en juego, es la defensa de los grupos de la inteligencia, de las sedes de expresón cultural, tradicional: teatros, conciertos, museos, lugares de encuentro, instituciones religiosas, comercio selecto, espectáculos de calidad, etc. Entendámonos: no pretendemos que este conjunto de expresiones culturales sea patrimonio exclusivo de la élite, sino, sencillamente, que se exprese ecológicamente una cierta

cultura en el viejo centro, al tiempo que las nuevas expresiones «de masa» han encontrado otras

localizaciones (por ejemplo, los drive-in), o simplemente no tienen ya localización particular (los

Não são unicamente estes os espaços públicos do centro histórico definidos por relações sociais: as esplanadas, entre outros, têm, de facto, um ar citadino e burguês que contrasta com as fachadas das casas circundantes e com quem lá mora. “Não frequento.

Tenho vergonha, mas gosto de ver. Fico contente quando as esplanadas estão cheias. (...) eu até gosto do ruído da Praça. Não vou a lado nenhum, a minha vida é isto e assim até me distraio”, diz, por exemplo, H. F., moradora na Praça de Santiago. Vários

moradores, os mais velhos, me disseram não frequentar essas esplanadas por vergonha: para eles, ruas e praças são locais de passagem que pertencem aos utilizadores de fora como espaços de lazer. E gostam, mesmo assim, porque se sentem no seu lugar. “C’est ce sense of one’s place qui, dans les interactions, conduit les gens qu’en français on appelle «les gens modestes» à se tenir à leur place «modestement» et les autres à «garder les distances» ou à «tenir leur rang», à «ne pas se familiariser»”, diz Bourdieu (1987: 153) para quem essas estratégias podem ser perfeitamente inconscientes, mesmo para quem escolhe no conjunto dos bens e dos serviços, os bens que ocupam uma posição homóloga à posição que essas pessoas ocupam no espaço social.

Para Weber, toda a relação social é, em certa medida e em certas circunstâncias, uma relação de poder em que o principal sustentáculo da dominação é o carácter legítimo de que a dominação se reveste aos olhos dos próprios subordinados (Giddens, 1994). Até uma conversa pode ser uma relação de poder (Giddens,1996b). Muitas vezes esta hierarquização social não coincide com as relações actuais em termos de poder real mas com relações sociais que estão reguladas por valores e por modelos culturais de relações: a nossa vida social tem a marca de uma anterior sociedade rural (folk society), cujos sinais característicos de organização eram a vida agrícola, a casa senhorial e a aldeia, influência histórica que não se apagou completamente (Wirth, 2001: 46).

Os jovens moradores do centro histórico souberam resolver melhor a questão da partilha do espaço, e, não abdicando de nada, ocupam espaços públicos, esplanadas, cafés e bares, quer como espaço de lazer, quer como ocupação remunerada, tirando partido dos ventos e da maré e dando origem a novas ordens e reconfigurações sociais que ajudam a compreender a grande variedade de relações e os múltiplos significados de que se reveste o pertencer ao centro histórico. Nem é necessário continuar a morar no centro histórico para lhe pertencer: os mais jovens que residem agora em áreas suburbanas alimentam esse sentimento de pertença com a manutenção de rotinas como a de almoçar em casa dos pais ou deixar as crianças com os avós, pretextos para diariamente reverem confortos e memórias.