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9. TERRITÓRIOS DE SOCIABILIDADE: VIVER EM ACORDO SEM SER DIVINO.

9.6 Janelas (in)discretas

De um modo geral, todos os cafés, restaurantes, feiras de velharias (chamadas Feiras do Entulho), bibliotecas, museus, ruas e praças, mercearias ou quaisquer outras lojas comerciais, podem representar, para quem as frequenta, locais de intensa sociabilidade e interacção ou, paralelamente, lugares de contactos fugazes que dificilmente quebram momentos de solidão, dependendo dos laços que se estabelece, da proximidade com o meio físico e social ou mesmo das rotinas.

No centro histórico, muitos outros espaços servem de ponto de encontro e favorecem a convivialidade. É o caso das janelas que podem aqui ser pontos de sociabilidade, acrescentando esta função à de exibir sardinheiras ou pendurar roupa a secar. Assim, é comum ver gente a conversar de janela para janela ou da janela para a rua, privilégio que só tem quem mora em casas feitas à sua dimensão. E das janelas também se observa o mundo, desde a classificação de Património da Humanidade mais variado, cosmopolita e próximo. É agora que vale a pena estar à janela: há sempre quem elogie ou leve essa imagem registada para mais tarde recordar. “Depois mandam-nas, de

todos os países. Gostam muito”, como diz a vendedeira de fruta da Rua de Sta. Maria,

sabendo que faz, ela própria, parte das curiosidades que encantam os turistas.

Pontos de sociabilidade são também as soleiras das portas: abrigam da chuva pares de namorados, servem de assento aos mais jovens que, de copo na mão, adiam o descanso nocturno, retêm quem passa devagar para observar um gato a dormir ao sol. E, se na Rua Egas Moniz as soleiras que serviram durante muito tempo para contactos fugazes que antecediam prazeres ilícitos estão agora vazias, em muitos outros locais as soleiras cumprem a função que sempre tiveram: sala-de-visitas sempre aberta pois, como diz G. F. “não se visita a casa de ninguém. Não me parece que os outros vizinhos

abram a casa aos outros. Não são pessoas de convivência. Se for na rua tudo bem”.

Também uma pequena sala de arranjos de roupa, na Rua Gravador Molarinho, pode ter este papel facilitador das relações sociais e ser importante por isso para quem lá vai. M.A.T., quem faz esses arranjos de roupa, afirma conhecer bem a maior parte dos seus clientes: mesmo que não saiba o nome, tem referências. Para além do muito trabalho que tem, recebe constantemente a visita de pessoas- sobretudo senhoras- que a procuram unicamente para conversar, para passar um bocado de tempo. “São pessoas

sozinhas. Chegam a descoser a roupa para ter o pretexto de se sentarem aqui e conversar”. Sabe que isto é verdade porque já o disse a algumas que o confirmaram:

responderam que não têm coragem de ir para ali só para conversar por receio de a aborrecer. Pagando, adquirem, de certo modo, esse direito, concluo eu. Sabe também que muitas dessas pessoas não têm pressa nenhuma que a roupa esteja arranjada “mas

vêm constantemente perguntar se já está. É um pretexto para saírem de casa e passarem por aqui. Muitas delas, aí pelos seus 70 anos, são de classe média-alta e não vivem no centro histórico. Outras são. Cada vez que entram para perguntar se já está pronto, sentam-se e conversam”. “Este trabalho faz falta a todos. Não é só a mim; também a quem pára aqui”.

Há janelas que dão para a rua e de dentro pode-se ver quem passa. São vizinhas e dizem bom-dia, mesmo da porta. Algumas só batem nos vidros e continuam. M.A.T. tem a sensação de conhecer toda a gente do centro histórico: “Passam por aqui todos os

dias. Se uma tem uma dor de barriga, a gente sabe logo: não passou na rua... Sabe-se logo que estão doentes”. Pergunta às vizinhas e há sempre alguém que sabe o que se

passou. Às vezes, pensa, envolve-se de mais com as clientes e a família (das clientes) não compreende isso: “A família não percebe essa amizade. Há pessoas que passam

aqui o tempo, sentadas nesse banco, mas a família nunca chega a saber”. Ela, no

grande variedade de problemas e que muitas usam a expressão “Vou à minha

consultora” para se referirem a ela própria.

São vivências que constróem relações de vizinhança já que o termo vizinhança sugere não só um determinado território a que os indivíduos estão ligados mas também um certo sentido de coesão enquanto grupo: vizinhança é um espaço onde há o hábito de visitar outros, trocar certos bens e serviços e, de um modo geral, fazer coisas em conjunto (Herbert e Thomas, 1990: 267). Mas que princípios produzem essa regularidade estatística, essa ordem observada? Como se geram essas práticas? Para Bourdieu (2000) para quem tudo se explica em função do espaço social

“as estruturas que são constitutivas de um tipo particular de meio ambiente (e. g. as condições materiais de existência características de uma condição de classe) e que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma das regularidades associadas a um meio ambiente socialmente estruturado produzem habitus, sistemas de disposições duradouras, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como tal, ou seja, enquanto princípio de geração de e de estruturação de práticas e de representações que podem ser objectivamente reguladas e regulares sem em nada serem o produto da obediência a regras, objectivamente adaptadas ao seu fim sem suporem a mira consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para os atingir, e sendo tudo isto, colectivamente orquestradas sem serem o produto da acção organizadora de um maestro de orquestra” (Bourdieu, 2000: 163-164).

Por hábito, por condições objectivas e por práticas concretamente compatíveis com essas condições objectivas, M. A. T. nunca deixará este espaço onde vive há trinta anos; unicamente pensou acabar com os arranjos de roupa- “a vista está a ficar

cansada”- e fazer alguma coisa relacionada com turismo, agora que atribuíram a

classificação de Património da Humanidade à área onde está instalada: “Um quiosque

com café, com jornais, um quiosque de multi-coisas, onde possa estar sempre em contacto com pessoas. As pessoas fazem-me falta”.

Para além de abrir perspectivas em termos profissionais, a classificação trouxe- lhe um orgulho redobrado pelo sítio onde mora e trabalha, “Uma certa alegria de ouvir

Guimarães nas bocas do mundo. Gosta-se de viver aqui. Há um conjunto de coisas que nos orgulham: os monumentos, as ruas, é um conjunto de coisas. A gente acordar de manhã e ver alguém a fazer a higiene das ruas, como na nossa própria casa...É bom para nós e para o turismo e dentro de pouco tempo é disso que vamos viver. Mais do turismo que doutra coisa qualquer”.

10. O PASSADO COMO DESTINO TURÍSTICO: PERFIL DE UM