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8. OUTRAS CLASSIFICAÇÕES: UM DEBATE ALARGADO

8.4 Ser autêntico é parecer-se com a imagem dos seus sonhos

Na Proposta de Candidatura elaborada pelo G.T.L pode ler-se: “No seu processo de consolidação, o centro histórico constitui hoje uma obra singular, de grande importância patrimonial, artística e simbólica (...). Quanto ao estado de conservação, a estrutura edificada encontra-se na sua maioria com um carácter envelhecido, sendo pouco visível a sua degradação física, uma vez que foram já intervencionados 60,2% do edificado relativamente ao total de edifícios existentes na zona proposta a classificação (493 edifícios)”. É, no entanto, voz corrente entre moradores e comerciantes- ouvidos no âmbito deste trabalho- que no centro histórico “está tudo a cair”. M. A., morador no Largo da Oliveira, é uma dessas vozes preocupadas: “Só é pena que não recuperem as

casas. A Rua Nova está em perigo. Está tudo a cair. É urgente a Câmara tomar posse dessas casas e recuperá-las. É um perigo: ao mexer nas que estão em ruína vão abanar as do lado”. E acrescenta, procurando uma justificação: “Em muitas casas não se faz nada porque há o problema das partilhas e também incapacidade monetária dos proprietários”. Concluiu, então, consciente da importância da sua presença na

valorização do espaço classificado: “é uma pena. Os moradores é que dão alma ao

centro histórico”. É uma pena, mas não se pode patrimonializar as pessoas.

Por ouvir com tanta frequência referir o mau estado generalizado das habitações antigas, sou levada a pensar que o reconhecimento local da reabilitação do centro histórico diz unicamente respeito à requalificação dos espaços públicos e recuperação de alguns imóveis municipais. Quando se referem de forma tão elogiosa e agradecida ao trabalho da Câmara é essencialmente pela parte visível da cidade, o espaço que todos podem visitar e usar, as zonas de circulação e não pelas condições de vida, neste caso precárias, que a habitação lhes proporciona.

“Calculadamente, deu-se prioridade a acções nos espaços públicos. Premeditadamente, adiou-se a elaboração de um regulamento escrito, com a intenção de ir quebrando o gelo, ir ganhando a confiança de quem recebeu com desconfiança a intervenção da Câmara, de ir aumentando os baixos níveis de auto-estima dos residentes, mostrando, por actos, que afinal viver no centro histórico pode ser interessante. Foi uma política de pequenos passos, com avanços e recuos, paciente e tolerante, fechando os olhos a algumas aberrações que não eram e não são irreversíveis, privilegiando arranjos de telhados, de janelas e varandas, de fachadas mais que de interiores, para os quais só se passou quando se sentiu que as populações tomaram em mãos o processo, o fizeram seu, identificando-se com as acções em curso”, escreveu Capela Dias (Povo de Guimarães, 21-12-2001), ex-vereador da Câmara Municipal de Guimarães. E explica igualmente que, politicamente, o mais complicado foi fazer prevalecer a ideia de usar um orçamento camarário, manifestamente apertado, em intervenções na propriedade privada em substituição dos seus proprietários- muitos deles senhorios desinteressados e até hostis às obras executadas pelo G.T.L.

Para Alexandra Gesta (1998: 70), “o Município soube assumir a obrigação do exemplo e a continuidade dessas acções iria produzir nos privados a iniciativa e o gosto pela reapropriação do seu espaço e também a invenção de muitas formas do viver na área antiga da cidade marcando-as com o sentido de Colectividade e o sentido de Humanidade que têm sido e só podem ser o fundamento de uma intervenção comummente assumida”.

Em 1994, data em que a Câmara começa a divulgar a preparação à candidatura, os vimaranenses puderam estabelecer, pela primeira vez, uma relação entre requalificação e classificação. Parece-me notório que a maioria dos moradores, distante dos debates políticos e teóricos sobre questões de defesa e preservação do património mas naturalmente atentos ao desenrolar do processo, aderiu “à causa” e de forma generosa: assistiram à reabilitação de muitos dos espaços públicos mas tiveram que

aceitar que em grande parte das casas, só as fachadas fossem reparadas, adiando provavelmente por muito tempo a melhoria das condições de habitabilidade dessas habitações. Mesmo assim os seus moradores avaliam muito positivamente a intervenção camarária e o seu esforço de valorizar o património imóvel do centro histórico de Guimarães.

Promovida a consciência patrimonial no seio da vida social- não por decreto, mas através de uma identificação de moradores e comerciantes com as acções em curso- a notícia da classificação- a recompensa prometida- só podia ser acolhida de forma tão entusiasta como aconteceu em Dezembro de 2001, esquecendo males particulares para celebrar alegrias colectivas. Provavelmente, acontece sempre desta forma pois “No interior de uma colectividade, não há medida política que não inclua vantagens para uma classe e sacrifícios para outra. (...) Ninguém pode decretar com segurança a medida em que tal indivíduo ou tal grupo deve ser sacrificado ao bem de outro grupo ou ao bem da colectividade global. O bem da colectividade global nunca pode ser definido a não ser por um grupo em particular” escreveu Aron (1994: 501) a propósito do pensamento de Weber sobre a condição humana.

O que é facto é que muitas das obras aprovadas e concretizadas não deram resposta às necessidades de muitos moradores, adiando exigências que modernamente se considera básicas e elementares: segurança, higiene, impermeabilização, condições mínimas de insonorização, iluminação natural. É o caso de F. F., proprietário de uma mercearia há 50 anos, que lamenta que o seu pedido de renovar o interior da casa- por cima da mercearia- tenha sido recusado: acabou por comprar um apartamento fora do centro histórico para onde se vai mudar em breve, apesar de não ser essa a sua vontade.

Os raros casos de gentrificação que conheci- e ultrapassada a dificuldade de distinguir o que são verdadeiros casos de gentrificação- durante o trabalho de campo testemunharam igualmente rigores e exigências apertadas por parte do G.T.L. “É um

exclusivo de poucos. A aquisição de uma casa no centro histórico não é para todos, fica caro. E aprovar qualquer coisa é mais complicado”, diz S. referindo-se, entre outros

aspectos, ao levantamento arqueológico anterior à demolição de todas as paredes e à aprovação do projecto da casa onde mora recentemente. A. C., um outro caso, manteve tudo o que era possível recuperar, “As paredes são todas em rodízio, não há placas, é só

soalho”. Resultou uma casa muito atraente que não agradaria, no entanto, a muitas

Cada caso é realmente um caso e as opções são sempre discutíveis mas a questão do conforto é para Álvaro Siza indiscutível: “É necessário introduzir conforto, novos equipamentos e, pode haver mesmo a ocasião para deitar abaixo e construir de novo” (Siza, 2001: 12). Mesmo que para isso se sacrifique sistemas construtivos tradicionais que são vestígios únicos de um tipo particular de concepção de cidade? Pode acontecer, mas não antes de se criarem as condições para o debate e a troca de experiências a fim de não se optar pela primeira impressão (Siza, 2001: 12). Concordando com uma política de pequenos passos, Siza aconselha o poder local a não ter pressa...

O que foi então proposto para ser classificado pela UNESCO? Todo o centro histórico, o reabilitado e o adiado, ou só o reabilitado, confiando na presença paciente dos moradores para celebrarem em festa colectiva, porque essa é para todos? Propôs-se, seguramente, o conjunto: o reabilitado, pela qualidade e cuidado da execução- espaços públicos, edifícios municipais e parte das habitações- e o que permanece intocável- muitas outras habitações particulares- como garante de autenticidade e integridade. Como justificação, pode ler-se na Proposta de Candidatura a Património Mundial, no primeiro parágrafo de todo o texto: A): “A área proposta a classificação, constitui um

vestígio único de um tipo particular de concepção de cidade, devido à morfologia do

seu tecido urbano medieval, que conforma uma sucessão de praças de grande valor formal e qualidade ambiental bem como, de um tipo particular de construção, nomeadamente, um edificado tipologicamente diversificado, integralmente erguido com sistemas construtivos tradicionais (...)”. E mais adiante: C): “A autenticidade do tecido urbano medieval do centro histórico de Guimarães, de matriz espontânea, é absoluta, pois testemunha mais de mil anos de ocupação, e contém um tipo particular de construção. Grande parte da estrutura edificada remonta ao séc. XVII e encontra-se erguida com as técnicas construtivas tradicionais. Estas construções que preenchem densamente a malha urbana, constituem uma herança cultural, inerente ao património a salvaguardar”.

A obrigatoriedade de salvaguardar um património histórico raro pela sua antiguidade é hoje uma ideia comum entre os moradores/comerciantes do centro histórico: frases como “Conservar é uma obrigação. Manter o passado é sagrado” e “O

valor que isto tem é ser histórico” são prova desse sentimento por muitos verbalizado

espontânea e calorosamente quando se apercebiam que essa era uma das questões que me importavam para o trabalho.

H. F. (vendedeira de fruta na Praça de Santiago) concorda, por isso, com as limitações à reconstrução das casas do centro histórico. “Não se pode mudar nada nas

portas e janelas. É bom: a rua tem 300 anos. É justo. Se é uma rua histórica...Não temos o direito de mudar. Acho bem tudo o que é antigo. Se é histórico fica como é. Aqui ao lado há uma casa que obrigaram a tirar as persianas de plástico e a pôr janelas aos quadrados. É por isso que depois os turistas gostam... Os turistas dizem que não há coisa mais linda no mundo”. Quando lhe pergunto como entende os turistas quando são estrangeiros, responde: “Há muitos que se entende bem. Eu percebo logo

que estão a dizer que a rua é muito bonita”. Entende obviamente o que quer.

Verifiquei, no entanto, que muitos moradores abdicariam de bom grado desta “autenticidade” que, na prática, de tão absoluta, se revela tão desajustada em relação aos padrões modernos do conforto e da funcionalidade. É o que concluo quando, relendo as minhas notas de campo, recordo as palavras de L. A., também moradora na Praça de Santiago desde muito nova: “Lavo-me à moda antiga. A casa não tem quarto-de-banho.

Não me importava de mudar para outra zona, para uma casa nova. Vinha depois visitar as amigas”. Cozinha no rés-do-chão, na entrada da casa, porque não pode subir as

escadas carregada com as compras até ao 3º andar- onde fica a cozinha-, pelo que, normalmente, deixa a porta aberta para a rua para ter luz directa. Disto já não se queixa: pode ver e conversar com quem passa e até se diverte a observar turistas “pasmados”, a abanar com a cabeça e a fazer gestos- penso que agradados por poderem apreciar uma prática tão “exótica”. Também eu sou convidada para almoçar e prometo voltar de propósito para isso.

É também por falta de condições de exaustão dentro de casa que, de vez em quando, cozinha no passeio, mesmo junto das esplanadas: “Às vezes, quando asso

sardinhas, vou para a rua por causa do cheiro. Eles olham e eu ofereço. E eles pegam. Mais vale dar que botar fora”.

É a necessidade prática que aqui impera, mas são imagens como estas que produzem uma ideia de cidade antiga e genuína. São, por isso, práticas que, conscientemente ou não, se repete por saber que agrada a outros, normalmente os turistas, gente que, em princípio, não gostaria de morar em casas com tão fracas condições mas que aprecia estas curiosidades como quem espreita a alma de um lugar, o sentimento de um povo.

9. TERRITÓRIOS DE SOCIABILIDADE: VIVER EM ACORDO SEM