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11. TERRITÓRIOS DE IDENTIDADE: MARGENS E CONFLUÊNCIAS

11.1 O património como espelho dos valores de uma comunidade

Efeito perverso da globalização que torna as cidades «tecnicamente reproduzíveis» à medida que nelas se implantam as mesmas redes de pronto-a-vestir e pronto-a-comer, os mesmos sistemas de transportes e comunicações, os mesmos hotéis e lojas comerciais, a experiência de visitar cidades tende a ver diminuído o seu encantamento. Assim, é na minúcia do exemplar histórico e monumental da cidade, nas suas ruínas e edifícios decadentes, na exemplaridade histórico-temporal da sua arquitectura que se vislumbram hoje os traços da sua singularidade (Fortuna, 1995: 25).

Na origem do surto de patrimonializações e de relançamentos de tradições103 na Europa contemporânea estão, consequentemente, não só a perspectiva de promoção cultural e económica, mas igualmente a vontade de tornar visível e exclusivo um território, visando quer a reconstituição de fronteiras que tendem a confundir-se ou a construção de uma nova entidade espacial (de dimensões mais restritas ou mais largas que a tradicional), processo que pode transformar um não-lugar num território singular, contribuindo para criar um lugar: em qualquer dos casos, as configurações espaciais resultantes desses relançamentos surgem certificadas, dilatadas e singularizadas, podendo afirmar identidades ameaçadas (Bromberger e Chevallier, 2004). Pela transmissão, o património, tal como a etimologia o atesta, participa na conservação da identidade (quer seja de uma linhagem familiar, de uma empresa ou de uma nação (Guillaume, 1997: 40).

Os bens, entretanto, considerados património são resultado de escolhas em que participam os diversos actores sociais, tendo por objectivo atingir determinados fins

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“Par relance, nous entendons l’ensemble du processus, de sa genèse à sa mise en scène, et de la configuration qui le sous-tend: une adaptation de pratiques et de savoirs obsolètes ou dormants à une nouvelle demande; l’élaboration de modèles et de normes attestant de leur authenticité; l’insistance emphatique sur la singularité du territoire où est circonscrit le phénomène; le recours à l’histoire et à la mémoire pour garantir la typicité du produit; la mobilisation de réseaux d’acteurs (individus, institutions) concourant au projet et à sa promotion auprès du public. On peut distinguer la relance d’une pratique disparue, essoufflée ou en crise, de la réactivation d’un usage encore vif par le recours à divers procédés d’authentification (l’attribution d’un label, la construction d’une histoire légendaire,(…) et, plus généralement, pour les produits de terroir qui reçoivent une appellation d’origine contrôlée)” (Bromberger e Chevallier, 2004: 13).

(económicos, artísticos, arquitectónicos, históricos, etc. , implicando, por isso, que possam mudar historicamente de acordo com os critérios e interesses do momento): inventar património não se pode entender sem hegemonia social e cultural e nenhuma activação patrimonial é, por isso, neutral ou inocente (Prats, 1997: 20-32). Expressão da sua natureza e das suas escolhas, o património reflecte verdadeiramente uma sociedade, mesmo que (ou sobretudo quando) as escolhas dos poderes públicos- classificando monumentos, sítios, etc.- possam não coincidir com as escolhas de cada indivíduo- que pode não considerar ou aceitar essas classificações- (Le Goff, 1998: 430).

É a intersecção de interesses, tais como os económicos privados, protecção estatal e diferentes horizontes históricos, muitos deles em conflito e contradição, que faz considerar o património como uma pluralidade de dimensões e sentidos que obriga a estratégias de «resistência», «manipulação» e «controlo» por parte da população e dos distintos poderes104 (Alcantud, 2003: 28). Sendo facilmente reconhecido o valor histórico do património arquitectónico e artístico e sabendo, também, que há evidentes interesses económicos privados que defendem a protecção patrimonial, torna-se necessário compreender que interesses pode ter nisso o Estado. A “produção” do passado tornou-se uma actividade essencial dos Estados modernos- e elemento seguro da sua política do espectáculo (Guillaume, 1980: 178)- pois o ideal do Estado moderno é assegurar o monopólio da memória, reduzindo a memória do todo à memória conservada, autorizada (Guillaume,1980: 16). Foi com este objectivo que os governos dos países ocidentais enriqueceram os seus arsenais de propaganda com um artifício novo: a política do património (Guillaume, 1980: 13).

Verdadeira política por se tratar de um vasto conjunto de ideologias, instituições e técnicas, a política de conservação do património serve de fronteira que nos separa das sociedades tradicionais- nas sociedades holistas, por exemplo, estas práticas relevam da sociedade civil e da sua estrutura simbólica, sendo conservados materialmente ou salvos do esquecimento os objectos e os factos que a tradição designa- pelo contraste das suas políticas de conservação e memória em relação às nossas e pelo espaço que é deixado ao poder político neste domínio: “Dans toutes les sociétés qui reconnaissent un pouvoir

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“Así lo vio para «Rethemnos», en Creta, Michael Herzfeld, quien detecta en los conflictos patrimoniales de la ciudad histórica, un control muy estricto del Estado, contraproducente incluso para la propia conservación del patrimonio. Junto a ello existirían estrategias de manipulación de los vecinos para sortear estos obstáculos, amén de la presencia de un conflicto simbólico entre el horizonte veneciano y el turco en la arquitectura urbana, del cual se infieren diferentes líneas de restauración (Herzfeld, 1991: 258- 259). La responsabilidad política del Estado sobre el patrimonio se ha querido equilibrar y desplazar incluso con una concepción resistente del mismo” (Alcantud, 2003: 28).

politique, ce dernier symbolise sa prééminence et assure son empreinte par la création et la conservation de quelques emblèmes (monuments, médailles, archives, tombeaux, etc.), fragments matérialisés de son histoire. De ce dernier trait il résulte d’ailleurs une apparente continuité, de l’Antiquité jusqu’à nous, en ce qui concerne ces objets emblématiques et l’histoire dont ils sont les supports” (Guillaume, 1980: 111-112).

Na verdade, a antiguidade, ao ajudar-nos a ordenar e a dar um sentido ao que nos rodeia por via das referências identitárias que oferece, não se limita a fomentar a integração e a orientação sociais dos sujeitos e dos grupos: a antiguidade adquire um valor estratégico fundamental no sentido em que, por um lado, fornece recursos materiais e simbólicos que alimentam a indústria do turismo cultural e patrimonial por que muitas cidades competem, e, por outro lado, porque o recalcar do passado apela à continuidade e à legitimação de protagonismos e hierarquias, preenchendo, assim, uma expressiva função política (Fortuna e Peixoto, 2002: 23). Por isso o poder político- ou a sociedade civil mas, necessariamente, com o apoio do poder político- mobiliza os recursos necessários para patrimonializações e relançamentos de tradições que se tornam facilmente numa imagem de marca de uma comunidade, espelho dos seus valores e referência identitária.

A tradição, mesmo quando inventada, condensa mecanismos de identificação simbólica indispensáveis à constituição das novas identidades (Hobsbawm, 1997). No caso de Guimarães, diz Silvano (1997) que estudou aí a questão da identidade cultural a partir da relação que as comunidades e os indivíduos estabelecem com o espaço, não se trata de invenção de tradições mas de utilização de tradições: no mito de fundação, a narrativa integra os factos históricos numa leitura autocentrada glorificante e a celebração ritual do “nascimento da nacionalidade” através da valorização simbólica da sua localização105 é rendibilizada localmente; nas Gualterianas, o momento mais alto do ciclo festivo da região, a narrativa é ritualmente actualizada, sobretudo durante o cortejo alegórico- chamado Marcha Gualteriana, que costuma juntar nas principais ruas da cidade cerca de 100 mil pessoas. Ambos produzem um efeito de reconhecimento de uma identidade (face a si próprio e aos outros, mesmo não tendo a expressão nacional desejada por muitos vimaranenses), conseguido pela repetição periódica e ritualizada de uma narrativa e ambos permitem a negociação/ transformação dessa mesma identidade.

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O mito da fundação produz, ao localizar na Colina Sagrada a origem da nacionalidade, um fenómeno de aglutinação espacial. Do ponto de vista do mito, o território português contrai-se para se sobrepor morfologicamente ao recorte espacial correspondente a essa colina. Virtualmente, todo o país está lá. (Silvano, 1997: 56).

Ao afirmar a sua origem histórica, Guimarães põe mais uma vez a funcionar o dispositivo simbólico que constitui a identidade da cidade por referência ao passado (Silvano 1997: 54). A história não é, no entanto, a única referência pois, apesar da centralidade dos traços identitários de cidade histórica nos discursos representacionais da cidade, e a despeito de D. Afonso Henriques ser indiscutivelmente a principal personagem histórica vista como identificadora de Guimarães, a «Cidade berço» é, numa outra dimensão representacional, uma cidade industrial. As próprias Festas Gualterianas, não só por terem sido criadas no início do século por iniciativa da associação Comercial de Guimarães, mas também por terem uma vertente comercial e industrial muito notória, simbolizam e valorizam esta dimensão representacional da cidade. Os têxteis e as cutelarias e, mais recentemente, a indústria do calçado e dos plásticos, conferem a Guimarães uma imagem de cidade industrial “onde predominam «impressionantes gestos de afirmação bairrista» (Garibáldi, 1971) característicos da sociabilidades operárias” (Fortuna e Peixoto, 2002: 31-32).

Presença constante nos debates antropológicos, o conceito de identidade tem oscilado entre ser ou não ser objecto social, termos só aparentemente contraditórios e exclusivos (Bromberger, Centlivres, Collomb, 1989: 137-138) 106. Para Silvano (1997) é através das representações do espaço que os indivíduos conferem uma especificidade ao seu território e reconhecem uma identidade à sua colectividade, o que significa que se estabelece um laço indissociável entre o sentimento de pertença a uma colectividade e o sentimento de pertença a um território. Para a antropologia, o território é uma forma de a cultura estruturar a sua relação com os objectos (com a materialidade) e as representações do espaço são, enquanto configuração simbólica, um dos meios de constituição desse mesmo território (Silvano, 1997: 11).

Assim, a identidade fornecida por um lugar é tanto mais simbólica (nomeada) quanto mais existir somente um pulular de passantes, uma rede de estradas tomadas de empréstimo, um universo de deslocações por um não-lugar ou por lugares sonhados

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“Le débat autour du concept d’identité est sans doute un détour obligé des disciplines anthropologiques (…). Il s’organise autour de deux termes, que l’on pourrait résumer par deux propositions: -l’identité n’existe pas comme objet social, ce que rappelait Claude Lévi-Strauss en conclusion d’un séminaire consacré à cette notion: «l’identité se réduit moins à la postuler ou à l’affirmer qu’à la refaire, la reconstruire», elle est «une sorte de foyer virtuel auquel il nous est indispensable de nous référer pour expliquer un certain nombre de choses, mais sans qu’il ait jamais d’existence réelle»; - l’identité apparaît comme indissociable de la formation sociale, modalité de l’existence du groupe, qui ne peut se reconnaître comme tel qu’à travers un principe d’unification identitaire. Ces deux termes, qui ne sont certes pas contradictoires ni exclusifs, restent, semble-t-il, malaisés à penser conjointement, et la prise en charge du concept d’identité se fait le plus souvent au travers d’une oscillation constante entre ces deux polarités, entre objectivation et perte dans l’historicité”(Bromberger, Centlivres, Collomb,1989).

(Certeau, 1994: 183) e tanto mais real quanto os indivíduos se identificam com uma multiplicidade de figuras e compõem uma constelação identitária que é pessoal e única , através da construção de uma relação coerente entre diferentes divisões espaciais (Silvano, 1997: 8).

Para Le Goff, (1998: 428-434) o laço entre identidade e lugar107 é mesmo um dos elementos fundamentais das paixões identitárias e patrimoniais porque defender uma identidade e defender um património é também defender lugares e muitas vezes um lugar. Aos que não têm nem território nem identidade, só lhes resta uma possibilidade que é reconstruir raízes, um espaço compensatório no passado para tentar recriar artificialmente as diferenças que o presente não tolera; para assegurar esta ficção, as máquinas da memória (arquivos, museus, monumentos, cidades conservadas) estendem os seus domínios de intervenção (Guillaume, 1980).