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10. O PASSADO COMO DESTINO TURÍSTICO: PERFIL DE UM IMPACTO

10.2 Os turistas parecem-se com os carneiros

Em Guimarães, um aumento tão significativo de turistas (64,2% em 2002) constituiu certamente um aumento de rendimento quer para o sector público, quer para o privado. Era, por isso, de esperar que tal não passasse despercebido e muitos tentassem tirar partido, de uma forma ou outra, deste aumento do turismo e da procura de património que o assemelha a um qualquer artigo de consumo. Assim, foi notório o aumento do número de cafés e bares neste período, sobretudo na Praça de Santiago, Largo da Oliveira e Largo João Franco; em 1997 havia seis lojas de artesanato no centro histórico94 mas em 2002 registei catorze. As entrevistas aos proprietários de todas estas lojas revelaram, porém, grandes diferenças na forma como relacionam a sua actividade comercial com a classificação de Património da Humanidade e o consequente aumento de afluência de turistas e visitantes.

Para F. R., proprietário de uma loja de artesanato na Rua de Santa Maria desde 1995, o que encontrou de mais positivo na classificação de Património da Humanidade foi ter aumentado muito o número de visitantes e, por isso, o número de clientes. Vendeu muito mais em 2001 e 2002 do que em qualquer dos outros anos anteriores, o que se compreende dada a localização: esta loja de artesanato situa-se em frente à Câmara Municipal e está no percurso mais usado pelos turistas- descida “obrigatória” do Castelo para o centro histórico-, quer os que se deslocam em grandes grupos, quer aos pares ou individualmente, tirando partido de passos tão previsíveis e condicionados. Isto mesmo pude constatar durante as minhas pesquisas no centro histórico: incontestavelmente, a Rua de Sta. Maria é a que apresenta o maior número de turistas de todo o centro histórico.

Na Rua da Rainha, muito próximo do Largo da Oliveira, contactei outra proprietária de uma loja de artesanato, M.C.R.95, que registou igualmente um significativo aumento nas vendas desde a classificação de Património da Humanidade, sobretudo a turistas nacionais: “Sabia pelas notícias que o centro histórico ia ser

classificado. Havia uma fezada que o negócio ia melhorar...e melhorou. Há cada vez

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Dado obtido a partir do Projecto Especial de Revitalização Comercial do Centro Histórico de

Guimarães, 1997, pag. 46. 95

Tem esta loja há 20 anos. Começou como loja de pronto-a-vestir e passou depois a loja de bordados da Madeira (feitos na China). Só em 1994 começou a vender bordados artesanais regionais, maioritariamente de Guimarães. “Os turistas procuravam bordados regionais”, diz a proprietária, revelando um grande sentido comercial. Tem bordadeiras a trabalhar para a loja em exclusivo (“há muitas na zona de

Guimarães”). Encomenda o que é tradicional, criando de novo um ou outro artigo (ex: pequenos lenços

mais turistas. Quem compra são os nacionais. Os estrangeiros ficam maravilhados mas compram muito menos”.

A. A., também comerciante de bordados96,- única loja na Praça de Santiago- recorda Dezembro de 2001 como um momento “formidável, encantador”. O número de turistas e compradores aumentou nessa altura: “Era uma loucura”, diz esta senhora, a mais antiga moradora da Praça e uma das pessoas mais entusiasmadas com a requalificação e classificação do centro histórico que conheci ao longo do meu trabalho. “Os turistas nacionais aumentaram, são os que compram mais. Sobretudo os de Lisboa.

Sobretudo linhos”.

Embora menos entusiasmado do que esta senhora, D. S., comerciante de artesanato em frente ao Paço dos Duques há 15 anos (referido já na pag. 46), registou também aumentos nas vendas e no número de visitantes desde 2001. Para além disto, notou mudanças no tipo de clientes: os turistas são cada vez mais exigentes e informados. Os nacionais- em maioria- procuram sobretudo artesanato relativo a Guimarães: “Que esteja lá escrito Guimarães”. Os estrangeiros compram coisas mais diversas: “Bordados, louças utilitárias, louças decorativas, figurados de Barcelos97”.

Estes quatro comerciantes de artesanato foram os únicos para quem a classificação de Património da Humanidade trouxe um significativo crescimento do volume de vendas. As quatro lojas estão situadas nos principais pontos de passagem dos turistas- em frente ao Paço dos Duques, Rua de Santa Maria, Praça de Santiago e Rua da Rainha, junto ao Largo da Oliveira-, quer dos que visitam Guimarães em grandes grupos, quer dos que podem gerir tempos e percursos ao seu gosto e ritmo. Contrariando um evidente aumento de visitantes na cidade, todos os outros comerciantes (dez) se mostraram desiludidos e de certo modo descontentes perante o facto de o volume de vendas se ter mantido ou mesmo diminuído, em alguns dos casos.

Tendo por base as suas declarações, para a maioria dos comerciantes de artesanato, o volume de negócios não aumentou desde a classificação de Património da Humanidade. Reconhecem que há mais turistas nas ruas mas afirmam não corresponder a quaisquer melhorias dos seus negócios. As razões são comuns pois todos repetem as mesmas frases: “Os turistas passam muito pouco por aqui: a zona nobre passou a ser a

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Abriu a loja em 1999, com apoios do PROCOM. Não era uma loja de artesanato que queria (já trabalhava antes em costura, no mesmo espaço) mas reconhece que isto está mais de acordo com a Praça de Santiago. Vende bordados e algumas cantarinhas de Guimarães. Tem também bordados e rendas da Lixa e tapetes de Arraiolos. Muitos dos bordados são feitos por ela própria

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O seu sonho era ter só artesanato de Guimarães, mas não há, segundo este comerciante, artesãos. “Guimarães quase não tem artesanato”, diz D. S.

Rua de Santa Maria, a Oliveira e a Praça de Santiago. É para lá que são canalizados pelos guias turísticos” e “Os estrangeiros não compram, principalmente os que vêm em grupos”.

Denotando alguma desilusão, estes comerciantes atribuem o fracasso dos seus negócios ao comportamento estereotipado de muitos turistas, que visitam a cidade usando percursos pré-definidos ou sugeridos por informação turística, que exerce, de certa forma, controlo sobre aquilo que deve ser visto. Para Urry e Crawshaw (1995: 55) é, contudo, possível praticar uma espécie de antiturismo que supõe um confronto poético com os «recantos obscuros» habitados pelos despojados e pelos marginais das cidades e vilas, ou seja, conhecer a experiência de uma vida supostamente «real» e «autêntica», desobstruída das imagens visuais dominantes do lugar em questão. Para estes autores há maneiras de se ser turista que, de facto, desafiam e desestabilizam as construções dominantes dos espaços das cidades: enquanto o «flâneur» da classe média- o viajante que, deambulando a pé, é capaz de viajar, chegar, mirar, prosseguir viagem e permanecer anónimo, numa espécie de zona liminar- se sente atraído pelos recantos obscuros da cidade e pelos encontros fortuitos com o inesperado, muitos turistas actualmente limitam-se a vaguear pelos locais devidamente assinalados. Baseando-me na informação prestada pelos comerciantes de artesanato e na minha própria observação, em Guimarães a maioria dos visitantes “atravessa” a cidade sob o olhar vigilante dos promotores turísticos que escolhem, solicitamente, a paisagem urbana mais facilmente reconhecida por todos, mesmo que mais superficial ou encenada que outras áreas e, talvez por isso mesmo, menos interessante.

A. M. constitui um desses exemplos de comerciantes desiludidos: durante três anos manteve a loja de artesanato- uma das poucas lojas de artesanato contemporâneo, de gosto cuidado e revelando apertado critério de selecção por parte da proprietária- que abriu em 1998 na Praça de Santiago, na expectativa da classificação de Património da Humanidade. “Era um negócio pouco rentável e continua a ser mesmo agora”, afirma esta jovem proprietária. Não vê mesmo qualquer diferença a partir de Dezembro de 2001. Está informada pelo Posto de Turismo que o número de visitantes aumentou muito mas descreve essas visitas do seguinte modo: “As camionetas deixam-nos em

frente ao Paço dos Duques, fazem uma visita rápida e descem até á Rua de Santa Maria, Praça de Santiago e Largo da Oliveira, quase sem parar, até chegarem novamente à camioneta que os espera no largo de S. Gualter. Têm meia hora para fazer todo este percurso, não podem parar para comprar o que quer que seja”. Por esta

razão, a maior parte dos seus clientes é constituída pelos que vêm aos pares ou isoladamente; nunca lá chegam turistas em grupo e em grande número. São sobretudo portugueses, muitos dos quais coleccionadores, seguidos pelos espanhóis: “Os

nacionais e os espanhóis compram mais, sobretudo os casais”. A procura por parte dos

vimaranenses foi aumentando gradualmente, segundo esta comerciante num contacto posterior, fruto de um gosto surgido entretanto, que levou muita gente a procurar artesanato decorativo, demarcando-se de uma determinada imagem que imperava em lojas desta especialidade: “As pessoas chegaram à conclusão que uma loja de

artesanato não tem de ser um sítio confuso onde tudo está amontoado”. Os gostos,

como as outras escolhas feitas por uma determinada pessoa, são o produto do encontro entre o gosto do artista e o gosto do consumidor: só falta compreender como acontece que em determinada altura haja bens para todos os gostos (Bourdieu, 1980b: 163).

Mesmo ao lado, na estreita Rua Dr. A. M. Prego, situa-se outra das poucas lojas com artesanato contemporâneo de qualidade: peças de joalharia e artigos de artesãos portugueses, espanhóis e alemães. Segundo a sua proprietária não vende muito a turistas. Muitos dos seus clientes são vimaranenses que “procuram uma peça diferente

para ter em casa ou oferecer”. Sabe que há mais turistas estrangeiros do que antes de

2001 mas não chegam a passar em frente da sua loja. Descreve estes percursos ainda com mais pormenor do que A. M.: “Descem do Castelo pela Rua de Santa Maria

abaixo, atravessam a Praça de Santiago encostados às casas do topo da Praça, passam por baixo dos arcos, param por momentos na Oliveira e vão a correr como carneiros para as camionetas que estão na Senhora da Guia. É só 3ª idade e esses não compram artesanato. Os estrangeiros não compram nada”.

M. G., proprietária de uma loja na Rua Egas Moniz desde Outubro de 2001, atribui o pouco interesse dos turistas pelos artigos de artesanato que vende a razão diferente: o mau ambiente da rua. “Atiram água pela janela, põem roupa a secar e a

pingar. Aqui é um atraso de vida. A Câmara devia proibir a roupa a secar. Eles proibiram mas não cumprem. Devia haver vigilância. Em 20 anos não evoluíram nada. Fazem fogueiras na rua para assar sardinhas, sentam-se em bancos nos passeios a falar. Sacodem os tapetes à janela. Pegam-se e insultam-se muito. É falta de cultura”. E

conclui: “Isto afasta os turistas. O aspecto das pessoas assusta os turistas. Têm medo

de ser assaltados. Não sorriem, não cumprimentam, não param. Fotografam sempre a correr. Prejudica o turismo e o comércio”.

A proprietária da loja mais antiga em frente ao Paço dos Duques98 (já referida na pag. 45) aponta duas razões diferentes destas para a redução nas vendas: a abertura de uma loja dentro do Paço- onde os guias aconselham a comprar- e maior brevidade na permanência na Colina Sagrada para poder visitar o centro histórico: “Descem todos por

aí abaixo: muitos mal param aqui”, diz M. F. manifestamente desalentada.

Nas lojas mais antigas- sobretudo de bordados- nem o aumento de turistas nem o de clientes, em geral, é reconhecido. “A maioria dos clientes é de Guimarães. Há uma

clientela fidelizada. O centro histórico está a ficar desertificado e o comércio ressente- se disso. Não anda ninguém na rua”, diz P., dono de uma loja de bordados há 40 anos99. A proprietária de outra destas lojas, M. L. N., afirma vender cada vez menos: “Há 18

anos era outra coisa. Depois abriram muitas lojas, o Continente tirou gente. O comércio tradicional está a desaparecer”, atribuindo o decréscimo do seu negócio a

razões independentes da classificação de Património da Humanidade ou da requalificação urbana. Tudo isto lhe foi indiferente: desconhece os limites do centro histórico e só sabe que a sua loja faz parte porque “a Câmara está sempre a proibir”, referindo-se a eventuais obras no estabelecimento. Também não reconhece que se tenha valorizado a parte antiga pois diz que “Está tudo igual”.

Uma das alterações esperadas pela maioria dos comerciantes é, no entanto, a proibição de trânsito de automóveis nas ruas do centro histórico. Pelas queixas de muitos comerciantes, é notório que as regras que a Câmara foi impondo progressivamente, limitando o trânsito em várias ruas durante certas horas do dia, não satisfizeram suficientemente. De facto, a maioria dos comerciantes de artesanato concorda com os limites de trânsito impostos pela Câmara, considerando-os mesmo determinantes para a animação do centro histórico. “As pessoas vinham aqui mais,

havia mais espaços para esplanadas e seria mais seguro para as crianças”, diz M. F.

referindo-se mais aos vimaranenses do que aos turistas, já vende muito pouco a turistas, sendo a maior parte dos seus clientes de Guimarães. Se o trânsito fosse retirado de vez, “Os turistas teriam mais condições para passear e ver montras em segurança”, diz também M.C.R., que como muitos outros, vêem na facilidade de circulação de peões melhorias para o comércio.

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Vende um artesanato de fraca qualidade, misturando um pouco de tudo: pequenos objectos em barro, bonecos de plástico, atoalhados fabricados industrialmente. O que tem mais procura são os gelados e postais do Castelo.

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