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6. LUGARES DE PODER E DE MEMÓRIA: LEMBRAR PARA MANDAR

6.1 Valor histórico versus valor social

O início da requalificação urbana a que o centro histórico foi submetido deu corpo ao fortalecimento de um espaço físico até então desvalorizado socialmente, apesar de incluir a maior parte dos monumentos classificados existentes em Guimarães. Esta falta de correspondência entre valor social e valor histórico e patrimonial diz bastante sobre as opções políticas e sociais que, durante muito tempo, foram tomadas pelos sucessivos poderes instituídos, por um lado, e sobre a falta de intervenção cívica dos directamente afectados, por outro.

Em Portugal, a intervenção em matéria de conservação e preservação do património histórico e arquitectónico estava, de um modo geral, centralizada no Estado até à Lei nº 13/1985 do Património Cultural Português, que remeteu para os municípios algumas iniciativas de defesa do património. Esta descentralização de poderes permitiu um salto qualitativo em termos de protecção pois foi um passo decisivo no sentido de interessar os cidadãos pelas questões culturais, interesse que decorreu da proximidade com os centros de poder e de um reajustamento e reenquadramento das necessidades desses mesmos cidadãos por parte do poder político local.

Os representantes do poder político local agarraram esse gosto emergente pelo património e transformaram-no numa arma política poderosa; os cidadãos encontraram aí uma forma de dar visibilidade às suas especificidades culturais e de se promoverem, sem que para isso tivessem de se envolver activa e empenhadamente. Digamos que o património se vulgarizou e democratizou, com as mesmas virtudes e contradições das democracias. Hoje “São património, no sentido contemporâneo mais geral, «coisas» (que podem ser imateriais, quaisquer que sejam as dificuldades ou até as impossibilidades decorrentes daí) que passam por ter um valor mas cuja reprodução e continuidade, apesar deste valor colectivamente reconhecido, são vistas como incertas e que, em consequência, aparentam necessitar de uma intervenção protectora determinada e controlada pela comunidade” (Durand, 2003: 26).

A mudança de atitude por parte do poder político local, revelando, a partir de certa altura, sensibilidade perante as graves ameaças que o tempo vinha infligindo sobre um património arquitectónico de tão grande valor, tem também que ser encarada como um sinal de modernidade e de aproximação a uma tendência que era já patente na maioria dos países ocidentais. Para Bromberger e Chevallier (2004: 11) a sensibilidade para as questões do património e memória dos locais, as reivindicações regionais e a política de descentralização (entre outros) favoreceram esta preferência pelo autêntico e pelo particular; o declínio das ideologias universalistas e do mito do progresso bem como os grandes medos suscitados por produtos agro-industriais perigosos contribuíram igualmente para esse movimento de procura no local e tradicional de uma suposta autenticidade em vias de desaparecer.

A reescrita da história, as reconstruções do passado e a revitalização de tradições por toda a Europa surgiram a par da globalização económica e da modernização pós- industrial: a comemoração de tradições (recentemente inventadas) como autênticas, a defesa de identidades regionais através de práticas simbólicas de algum modo relacionadas com um alegado passado comum, a produção de uma legitimidade a partir de práticas de conservação e essencialização, bem como a noção de que «velho» ou «original» são equivalentes de «bom», têm sido algumas das estratégias praticadas pelas sociedades contemporâneas, razão pelas quais essas sociedades são por definição e de um modo geral pós-tradicionais (Knecht e Niedermüller, 2002: 89).

Apresentando o exemplo da França, para Chiva (1991) o termo «patrimoine», na ordem do dia desde 1975, ganhou pertinência científica e cultural e contribuiu para o desenvolvimento da etnologia em França quando foi criada no Ministério da Cultura, em 1977, a Direction du patrimoine35 que reagrupou as subdirecções dos Monumentos históricos, da Arqueologia e do Inventário geral das riquezas artísticas do país. Um outro passo para a consolidação do termo foi dado em 1980 quando Claude Lévi-Strauss escreveu sobre a necessidade de enriquecer o património cultural da humanidade (cuja sobrevivência se encontra na manutenção da diversidade), nomeadamente através do estudo e defesa dos elementos culturais fundadores das identidades culturais e étnicas, quer regionais, quer locais, paralelamente aos mecanismos de identidade genética, influenciados por regras e valores de origem social (Chiva, 1991: 229).

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“Le propre de cette nouvelle direction était d’assurer la connaissance, la protection et la mise en valeur de biens culturels matériels in situ, à la différence de ceux qui constituent les collections des musées, dont la gestion, la tutelle ou le contrôle relèvent de la Direction des musées de France” (Chiva, 1991: 229).

Patrimonializar- aceitando esta sufixação bárbara- é, no entanto, pôr à parte, é operar uma classificação, constatar uma mudança de função e de uso, sublinhar a consciência de um valor que já não é vivido na reprodução da sociedade mas que é decretado na protecção de traços, testemunhos e monumentos. Diferentemente de outras disciplinas próximas- caso da sociologia-, a etnologia está próxima dessas práticas, podendo mesmo dizer-se que esta forma de acção está estreitamente associada à sua definição original (Fabre, 1997: 64-65).

Constatou-se a existência de todo um movimento de ideias que ia da biologia ao direito, passando pela filosofia, a sociologia, a economia, à volta da noção de património: foi esse movimento que preparou a emergência da noção de património

etnológico. A par da diversidade, uma outra concepção compunha, ainda segundo Chiva

(1991) essa noção: a de urgência. Urgência de observação em consequência de tantas mudanças, alterações e desaparecimentos mas também do surgimento de criações culturais de toda a espécie que afectaram as sociedades humanas na transição rápida provocada pela urbanização, industrialização e vagas de migrações internas e externas. Surgiu, então, uma definição explícita: “Le patrimoine ethnologique d’un pays comprend les modes spécifiques d’existence matérielle et d’organisation sociale des groupes qui le composent, leurs savoirs, leur représentation du monde, et, de façon générale, les éléments qui fondent l’identité de chaque groupe social et le différencient des autres” (Chiva, 1991: 236). No espírito público, património e etnologia são noções associadas: pelo menos em França a etnologia é frequentemente considerada como uma actividade que visa a preservação, a conservação e a valorização do património material e imaterial, sendo o próprio processo de patrimonialização um objecto legítimo de pesquisa etnológica (Babadzan, 2001: 1).

Ainda segundo Chiva (1991), a noção da importância do património etnológico por comparação com o património arqueológico, histórico, natural, da arte erudita e monumental foi recebida pelos poderes públicos como irreversível, levando, no caso da França, à necessidade de uma regionalização das iniciativas e das actividades científicas e culturais neste domínio, em que o objectivo (estático), implícita ou explicitamente, era conservar a todo o preço. Esses esforços de conservação, competindo desigualmente com os mecanismos das sociedades ocidentais- votadas por natureza ao desenraizamento, à perda de valor e à destruição- não impediram a hegemonia do consumo e do efémero e que se salvasse grande coisa do esquecimento, mas proporcionaram aos governos dos países ocidentais um novo recurso para os seus

arsenais de propaganda: a política do património, uma política no verdadeiro sentido da palavra, que defendeu simultaneamente continuidade e mudança, conservação e criação, para que não se perdesse o que restava de identidade, coesão social e diversidade (Guillaume, 1980: 12-15). A ordem política moderna procurou uma legitimidade nova ou suplementar; a folclorização e a patrimonialização das culturas populares surgiram neste contexto histórico com o objectivo de criar uma identificação entre o Estado e a nação (Babadzan, 2001).

O que ocorreu nos séculos XVIII e XIX, nas sociedades modernas, em que as grandes mudanças sociais resultantes do fim de monarquias absolutas e do aparecimento de novos regimes e da industrialização levaram a que os Estados e as classes dirigentes sentissem a necessidade de inventar tradições, rituais e símbolos que se adaptassem aos novos modelos- recriando muitas vezes práticas antigas e usando velhos modelos com novos objectivos- para manter o poder ou assegurar a legitimidade (Hobsbawm, 1997), encontra hoje em dia paralelo na forma como a retórica do património se apresenta como um avatar- muito mais subtil- do paternalismo estatal, ajudando a definir o ideal e a ideologia do Estado moderno: assegurar o monopólio da memória e reduzir a memória de tudo à memória inscrita, conservada, autorizada36 (Guillaume, 1980: 14-16). A produção do passado tornou-se uma actividade essencial dos Estados modernos: não há nenhuma nação que não tenha os seus monumentos-emblema prolongando o simbolismo de bandeiras, hinos, festas, etc.(Guillaume, 1980: 184).

Para Pomian (1990: 194-198) também a história da constituição do património cultural foi condicionada por uma série de rupturas- mudanças nas crenças colectivas e modos de vida, transformações técnicas, propagação de estilos novos que substituíram os antigos- que implicaram que muitos artefactos fossem afastados da sua função, perdendo o seu valor de uso, mas salvos do abandono e esquecimento pela musealização que abarcou todas as categorias de objectos de todas as épocas37. A ideia de um

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“Pour assurer cette fiction, les «machines à mémoire» (archives, musées, monuments, villes sauvegardées, etc.) étendent leurs domaines d’intervention” (Guillaume, 1980: 16).

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“La constitution du patrimoine culturel s’étend sur plusieurs siècles: presque quinze si l’on en envisage les éléments les plus anciens qui, après être passés par les trésors et les collections particulières, sont arrivés jusqu’à nos musées. Elle commence en Italie et se propage de là vers le nord de l’Europe au fur et à mesure que progresse le christianisme, qui porte avec lui les scriptoria et les trésors des églises et des princes. Et elle recommence en Italie, à la Renaissance, avec les collections particulières, les musées et les premières mesures de protection des monuments. Le renversement de la direction de ce mouvement se produit au XIX siècle quand entrent dans les collections et les musées les objets médiévaux et préhistoriques, quand apparaissent des musées qui recueillent exclusivement les uns ou les autres, et quand on étend la protection à des objets de culture paysanne et à des restes des anciennes industries. Car cette vague-là se propage du nord vers le sud, de l’Angleterre et de la Scandinavie vers la France, l’Italie

património cultural comum à Europa surgiu unicamente depois da II Guerra Mundial, propagando-se por todo o mundo a partir da Europa Ocidental através de instituições de conservação do património- colecções, museus, serviços de protecção dos monumentos de toda a espécie; com o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução e da transmissão de imagens, o aumento do turismo e das migrações e a multiplicação das exposições temporárias (muitas vezes itinerantes), o património cultural mundial tornou-se, mesmo fora do âmbito da UNESCO, uma realidade em emergência.

Para Pomian (1990), o ritmo acelerado da constituição do património cultural nos últimos trinta anos manifesta uma mudança radical no modo de vida humano na terra e uma nova ruptura (cujo alcance desconhecemos ainda) entre o nosso presente e o passado que faz com que os objectos sejam recuperados antes de desaparecerem e se lhes dê funções e finalidades diferentes, servindo de intermediários entre o passado e o futuro.