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4. PRÁTICAS PATRIMONIAIS: REINVENTAR A CIDADE

4.2 S.O.S: save our souls

Nos finais da década de 60, desenvolve-se em Portugal uma outra ideia de salvaguarda do património em que não só a criação arquitectónica isolada devia merecer a acção legisladora, mas o conjunto urbano e rural e em que a especificidade civilizacional e a história eram os princípios orientadores da selecção. Esta ideia defendida por Jorge Custódio (1993: 60-61) dá-nos também a noção de que o próprio conceito de monumento estava em mudança e não estavam então em causa apenas as grandes criações da humanidade, mas também «os monumentos modestos», início de um longo e sinuoso percurso que continua ainda hoje a colocar problemas aos obreiros da salvaguarda do património.

A Carta Europeia do Património Arquitectónico (1975) reafirmará isto mesmo: o património “é formado não somente pelos nossos monumentos mais importantes, mas também pelos conjuntos que constituem as nossas cidades e as nossas aldeias tradicionais, integradas nos seus ambientes natural e construído”. É nesta perspectiva de preservação global que Fernando Távora realizou, em 1979, o Plano Geral de Urbanização de Guimarães, propondo uma visão qualificadora que não se limitasse apenas a monumentos, edifícios de arquitectura erudita ou conjuntos urbanos ou rurais com interesse, mas que considerasse toda a área urbana um «valor cultural» (Ferrão, 2002: 230). Ainda segundo Bernardo Ferrão, o alargamento da noção de património arquitectónico que Fernando Távora pôs em prática neste plano articulava-se plenamente com a recomendação para a Salvaguarda dos Conjuntos Históricos e sua Função na Vida Contemporânea (1976), realizada no quadro da UNESCO, onde se clarificam os conceitos de “conjunto histórico e tradicional” e de “salvaguarda”. A noção de conjunto histórico e tradicional é definida como “uma fixação humana, em meio urbano ou rural, cuja coesão e valor são reconhecidos dos pontos de vista arqueológico, arquitectónico, pré-histórico, histórico, estético ou sócio-cultural” e a noção de salvaguarda como “a identificação, protecção, conservação, restauro, reabilitação, manutenção e revitalização dos conjuntos históricos ou tradicionais (...) e do seu tecido social, económico e cultural”.

A tomada de consciência da necessidade de defender o património local torna-se pública. Valorizado progressivamente aos olhos de um número significativo de gente, defende-se o estudo, divulgação e preservação do Património Cultural e Natural, bem como a prática de quaisquer outras actividades de índole cultural.

Politicamente, estas preocupações vão fazendo parte de planos municipais e programas até ao surgimento, em 1983, de um Gabinete do Centro Histórico- mais tarde Gabinete Técnico Local-, “ao qual caberá assegurar a gestão e a coordenação objectivadas das acções privadas e públicas e paralelamente a definição duma estratégia para a intervenção municipal” (Gesta, 1987: 51). Ainda segundo Alexandra Gesta, que coordenou praticamente desde o início o G.T.L., de todo o tecido urbano dariam prioridade aos edifícios que pela sua localização, tipologia, estado de conservação e vocação podiam servir como marcos exemplares para toda a operação. Quanto aos imóveis a adquirir pelo município, a escolha recairia nos de maior carga significante ou qualidade arquitectónica, enquanto objectos isolados ou parte integrante de um conjunto (Gesta, 1987: 93).

Da estratégia definida pelo G.T.L. fazia igualmente parte uma reabilitação urbana que preservasse a autenticidade de materiais e técnicas tradicionais de construção, orientação de natureza técnica que começou por esbarrar na falta de profissionais com conhecimentos dentro desta área: para colmatar essa carência, o G.T.L. organizou cursos de formação de aprendizes e de operários especializados em técnicas e ofícios de construção tradicional destinados aos desempregados da população residente do centro histórico, no final dos quais surgiu uma equipa municipal de operários- canteiros, carpinteiros, pintores, calceteiros, trolhas, jardineiros- que integrou as obras de requalificação e aplicou essas técnicas aos casos concretos. Evitou-se o fachadismo e intervenções de grande impacto, manteve-se valores sociais, identidade cultural e valores económicos ligados aos usos, às actividades e à produção que dá vida (Aguiar, 2002: 96). “Todos os materiais foram mantidos, a não ser que estivesse em

ruína. O que é possível manter, mantém-se, o que está em ruína é demolido e reconstruído igual ao original”, explicou J. T., empreiteiro e formador dos cursos

promovidos pelo G.T.L. “Ou seja, o G.T.L. não só superou a falta de mão-de-obra especializada, como resolveu grande parte dos problemas sociais com que se deparava”, balanço particular (Público, 14-12-2003) e optimista, pelo menos no que diz respeito aos problemas sociais, que tive dificuldade de comprovar no terreno.

Ainda segundo Ferrão (2002) e relatório do G.T.L., desde 1985 e ao nível dos espaços públicos procederá o G.T.L., dentre outras acções, à requalificação das Ruas Gravador Molarinho, Dr. Avelino Germano, Nuno Álvares Pereira, Tulha e Escadinhas da Alameda, Largo do Serralho e Rua da Rainha, Rua do Anjo e Rua Egas Moniz e ruas adjacentes. Concluirá também a renovação da Praça de Santiago e Largo da Câmara,

estas sob desenhos de F. Távora acessorados pelo gabinete e ainda do Largo Condessa do Juncal e Largo João Franco, segundo projectos do mesmo arquitecto. Por sua vez e no que concerne a edifícios municipais promoverá o G.T.L. a recuperação das suas próprias instalações na Rua Nova, ainda sob orientação de F. Távora, da Biblioteca Municipal, dos Postos de Turismo da Alameda e da Praça de Santiago, da Albergaria de S. Crispim, da Casa dos Pobres, da Associação Muralha e de alguns espaços interiores da Câmara Municipal, projectando também uma fonte para a Rua de S. António, algum mobiliário urbano e as instalações sanitárias da Praça de Santiago e da Alameda; importará não esquecer também, e no quadro da sua acção, a importantíssima tarefa de acompanhamento e controle dum extenso número de projectos de iniciativa privada, levados a efeito na sua área de intervenção e, também, fora dela (Ferrão, 2002: 237). Assim, a maioria dos espaços públicos foi reabilitada (cerca de 90%) e dos 493 edifícios da área intra-muros, 314 foram intervencionados, dos quais 103 foram objecto de intervenção com financiamento da Administração Central e Local (P.R.I.D. e R.E.C.R.I.A.) e 225 intervencionados pela iniciativa privada sem qualquer comparticipação.

Em todo este esforço de reabilitação foi restaurado o que era possível ainda preservar recorrendo a técnicas, produtos e materiais tradicionais, mas é evidente que muito foi construído de novo, sobretudo ao nível dos espaços públicos. Ruas e praças foram repavimentadas, dando lugar a novos espaços de circulação: “Nunca houve a ilusão de se estar perante uma tentativa de recriação da feição urbana vimaranense dos finais da Idade Média, onde necessariamente haveriam de ressurgir (...) ruas e vielas pestilentas, muitas vezes transformadas em chiqueiros (...) num tempo em que não existia abastecimento público de água potável nem sistema de saneamento...Uma cidade onde hoje ninguém quereria viver” Neves (2001).

Este trabalho de reabilitação urbana justificou a atribuição de vários prémios ao longo da requalificação (em 1993, o Prémio Nacional de Arquitectura; em 1996, o Prémio da Real Fundação Toledo; em 1999, Prémio Nacional Imagem da Cidade, pela reabilitação das Casas Alpendradas) que a Câmara Municipal procurou rentabilizar, publicitando-os nos folhetos distribuídos nos Postos de Turismo. A classificação de Património Cultural da Humanidade em 2001 culminou esse processo, atribuindo ao centro histórico a distinção mais desejada e cobiçada. Pelo menos nos folhetos, as referências a todas as outras passaram a ser omitidas: com o passar do tempo quem as lembrará como elementos de um percurso complexo e diverso?