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6. LUGARES DE PODER E DE MEMÓRIA: LEMBRAR PARA MANDAR

7.4. Património intangível

Ao longo de todo o texto da Proposta, as referências à autenticidade do centro histórico focam unicamente o tecido urbano construído, as características arquitectónicas, as pré-existências erguidas com técnicas construtivas tradicionais. É natural: do burgo medieval só as construções em pedra podem permanecer. E o ambiente social? Evidentemente modificado, mantém, no entanto, gestos e vivências, obviamente não medievais, mas de certo modo inesperados- talvez mais rurais58- na forma como se usa e ocupa normalmente o espaço social urbano. Práticas usuais no centro histórico como assar sardinhas na rua e oferecer a quem passa, sentar num banco no passeio porque é aí que há sol e gente para conversar, pôr uma colcha à janela para não destoar das vizinhas, continuar com a loja aberta para manter uma tertúlia e muitas outras práticas de coexistência social ou ambientes que fazem da cidade um organismo vivo e actuante (Leite, 2003: 24), resistiram igualmente ao tempo e são uma cultura viva que a maior parte dos moradores e comerciantes nunca dispensaria.

São formas de “autenticidade” difíceis de classificar, mas igualmente de grande valor patrimonial. Para mim, e provavelmente para muitos outros frequentadores, o centro histórico- pelo menos em comparação com as zonas modernas- é um espaço urbano onde se está de forma diferente porque mantém esses gestos que são pontes que nos aproximam com o passado e “devemos ter consciência de que, quando falamos de património, nos estamos portanto a referir à memória, quer esta se apresente no plano do individual, quer se apresente no plano do colectivo. Aliás, sem memória não seria sequer possível conceptualizar o património, essa herança que vem obviamente de trás, do que nos precedeu e que justifica aquilo que somos” (Jorge, 2003: 12). No centro histórico, o passado não é um país tão longínquo: é uma memória que facilmente actualizamos, acrescentamos e enriquecemos pois “Parece-nos indiscutível que são os valores da memória que o património consagra. (...) Portanto, a matéria do património é, também, a memória que os diversos discursos e narrativas artificializam através de objectos que usamos e cujos conteúdos actualizamos através desse uso”(Jorge,2003:15).

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“Isto significa que existiu uma profunda coerência cultural nas sociedades rurais até uma época recente. (...) a dinâmica de mudança, nelas, era lenta e não apreendida ao nível do pensamento consciente. É uma banalidade recordar que o mundo mudou muito mais desde o começo do século (a situar por volta de 1920) do que no decorrer dos dois milénios precedentes. Mas no interior mesmo desta mudança, sem precedentes na história, dos modelos tradicionais- géneros de vida e modos de pensar- subsistem, em numerosas zonas, modelos de que são ainda hoje portadoras a maior parte das pessoas de idade” (Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut, 1999: 3).

Ao defender-se o património de um centro histórico tem de se lembrar a sua forma de estar própria, os seus gestos rotineiros e sentidos, a sua cultura porque é isso que constitui a vida de uma cidade. Por si só, “Um espaço de património bem construído e conservado não faz uma cidade. Porque um conjunto de construções, obras de arte, ornamentos, decorações, ruas e avenidas, em si mesmas, não afirmam a razão vital, a força criadora, a capacidade de mudança (ou pelo contrário, de permanência) que corporizam a cidade”. Foi Helder Pacheco (1996: 12) quem o afirmou, atento aos trabalhos de requalificação da zona histórica do Porto que antecederam a classificação de Património da Humanidade que poderia transformar a “sua” cidade numa cidade “para turistas verem, para vender em postais coloridos ou para servir de enquadramento de fotografias em Kodak” (Pacheco, 1996: 18).

O que tem então de se preservar para que uma cidade não perca as suas referências, a sua identidade, o seu património intangível ou imaterial? De que precisa uma cidade?

“Precisa, antes do mais, de gente com ternura pelos sítios e as coisas, passadas e presentes, que corporizam o espírito dos lugares. E precisa, depois, de gente que, num mundo que se despersonaliza e onde as diferenças se liquefazem no amorfismo cinzento do número, mantenha desperto o sentido vital de pertença a uma comunidade- rua, largo, viela, bairro, freguesia- identificável. A uma comunidade que harmonize as identidades sem as unificar, tonifique a solidariedade sem dependências, concite a comunicação sem abafar as vozes. O silêncio das ruas desabitadas é, mais do que um crime, uma abjecção do mundo contemporâneo, que deixa perder ou assassina o sentido da existência. Porque uma cidade é feita de vizinhos. É feita de bulícios, gestos, choros, falas, congruências e incongruências. Passado e presente, memória e esquecimento. Uma cidade é feita de actos de viver: (...) atitudes concretas que fazem parte de um universo habitável e poético onde cada um, por humilde e apagado que seja, desempenha o seu papel no jogo complexo e contraditório de ser cidadão”(Pacheco,1996:29-39).

Após a adopção da Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural, em 1972, alguns Estados-membros manifestaram interesse em alargar a noção de património de forma a poder identificar, proteger, revitalizar e classificar manifestações do património oral e imaterial. Surgiu então o conceito de “património intangível ou imaterial” definido pela UNESCO59 como tudo aquilo que

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“A UNESCO, por iniciativa do seu actual director-geral, o japonês Koïchiro Matsuura, procurou nos últimos anos definir os fundamentos jurídicos de uma Convenção sobre o Património Imaterial (ou Intangível) da Humanidade. Concebida como instrumento jurídico abrangente que consolidasse as concepções programáticas que se encontram inscritas na recomendação da UNESCO sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, de 1989, bem como no seu Projecto de Proclamação das Obras Primas

engloba manifestações culturais tradicionais, formas de expressão popular, saberes colectivos produzidos por uma certa comunidade e fundados sobre uma tradição, transmitidos oralmente, através de gestos, modificados através dos tempos por um processo de recriação colectiva- por exemplo, a música, a dança, os rituais, as festividades, a medicina, a farmacopeia tradicional, os jogos, a mitologia, artesanato, as artes da mesa, as formas tradicionais de comunicação e informação, etc. A primeira edição da Proclamação teve lugar em 2001 e foram proclamadas 19 Obras-primas do Património Oral e Imaterial da Humanidade.

Não tem sido, no entanto, um percurso fácil: se hoje conseguimos estabelecer mecanismos para preservar o património construído, o dito património material, a obra de arte, a arquitectura, o mesmo já não acontece em relação ao património imaterial, até porque este, na realidade, ainda não está identificado ou não foi identificado na sua totalidade (Leite, 2003: 24-25). A protecção do património imaterial apresenta, de facto, uma maior dificuldade porque não há um suporte físico, ou nem sempre há um suporte físico, como no chamado património edificado (Reis, 2003: 89).

Para além destas dificuldades que limitam, de um modo geral, a salvaguarda das tradições culturais e património imaterial, o próprio conceito de património imaterial ou intangível tem vindo a ser questionado.

“Uma das questões mais preocupantes da proposta Convenção da UNESCO sobre o património imaterial da humanidade, como base para uma suposta salvaguarda da diversidade cultural, é o modo como ela surge alheada em termos de uma salutar consciência auto- referencial. Como é possível, com efeito, propugnar a salvaguarda da diversidade cultural através de mecanismos legais equalizadores que, para além de imputar aos estados uma tal gestão, provêm de um molde discursivo culturalmente determinado? Dito de outro modo, qual a validade de aplicação universal de um critério de classificação dependente de um molde teológico, linguístico e filosófico cristão ocidental? Como poderemos estar seguros que a dicotomia material/imaterial60 faz algum sentido fora das estreitas fronteiras do dualismo cristão ocidental e da padronização linguística latina- por mais invasiva e colonizadora que ela se manifeste?” (Ramos, 2003: 54-55).

do Património Oral e Imaterial da Humanidade, de 2001, a Convenção foi aprovada a 17 de Outubro de 2003” (Ramos, 2003. 7).

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“Em Dezembro de 2001, ao entrevistar um pintor etíope sobre um retrato de Cristo que ele estava então a executar, fui surpreendido com esta afirmação, que ele pretendeu reportar em inglês: -I’m painting the

spirit body of Christ. Esta formulação remete-nos claramente para uma problemática teológica que é

estranha ao dogma do cristianismo calcedónio. A ideia de um «corpo-espírito» parece confusa a quem é educado numa perspectiva cristã dualista- duofisita. No contexto ortodoxo etíope, no entanto, a tradição- suportada por uma morfologia linguística não indo-europeia mas semita- postula ideias de consubstancialidade forte entre «espírito» e «corpo», entre «substância» e «pessoa» (Ramos, 2003: 54).

Para todas estas questões, João Ramos encontra uma chave fundamental: quando falamos de salvaguarda das tradições culturais e de património imaterial da humanidade ou intangibilidade, referimo-nos indirectamente ao património ideológico e discursivo, legado por autores como Lévi-Strauss, que condicionaram o campo de análise antropológica e de acção política nos círculos da UNESCO; no entanto, devemos reconhecer que, num certo sentido, pessoas de culturas e de línguas diferentes vivem em universos mentais diferentes, por mais que certos antropólogos nos pretendam persuadir do contrário (Ramos, 2003: 53). Tem sido a prática do Ocidente: atribui sentidos porque não tem qualquer consideração pelos sentidos que outras culturas atribuíram aos objectos de que nos apropriámos (Pinto, 2003: 73).

De facto, a influência das teorias estruturalistas de Lévi-Strauss manteve-se e o estruturalismo foi ao longo da sua história um fenómeno tanto internacional como transdisciplinar que deixou uma tradição na antropologia (Barnard, 2000: 137). As críticas ao formalismo das suas ideias orientaram pos-estruturalistas e pos-modernistas cujas ideias desafiavam a autoridade da escrita etnográfica e os métodos de análise característicos da antropologia estrutural, rejeição que esteve na base da sua própria essência: “They depend, at least in anthropology (perhaps less so in literary criticism, for example), on their own structural opposition to structuralism itself” (Barnard, 2000: 184). Esta dependência levou Reynoso (1998) a afirmar que a antropologia contemporânea se limita a desconstruir, de forma gratuita e com características próprias das modas intelectuais, a obra dos outros antropólogos, muitas vezes sob o disfarce de um interesse pelos aspectos literários da escrita etnográfica. Para Barnard (2000: 182) as velhas teorias antropológicas nunca morreram: em geral foram incorporadas em novas tendências ou regressaram mais tarde com outra aparência.

Mesmo que limitada por estes condicionalismos que afectam a ciência antropológica, a UNESCO (cuja inspiração muito lhe deve), através de inúmeras recomendações, apoio técnico a projectos de conservação e reabilitação de conjuntos históricos, informação e verificação, tem praticado uma política de defesa e preservação do património material da humanidade que, consequentemente, tem salvado da destruição muitas manifestações culturais- imateriais- que encontram na materialidade o seu suporte físico e estruturante. É o conjunto das duas manifestações- material e imaterial- que exprime de forma indissolúvel a cultura de um povo. Só defendendo o património como um bem cultural completo se garante a identidade de uma comunidade pois dá segurança às comunidades, serve-lhes de referência, ajuda a axializar os seus

itinerários, serve de ancoradouros de memória, transmite valores e padrões (Ferreira de Almeida, 1993: 411-412). Esta perspectiva dinâmica de património não o encara como uma reserva ou recordação do passado mas como algo que tem de fazer parte do nosso presente. E, como parte do nosso quotidiano, tem que ter vida.

Um centro histórico seduz e atrai quem o visita mas torna-se difícil definir porquê: de facto, não se explica levianamente a alma de um lugar. À falta de melhor, chamam-lhe património imaterial, o que o distancia, no entanto, do património material quando sabemos que um não vive sem o outro. Só assim pode inspirar os poetas que deambulam com os sentidos sempre atentos e o olhar demorado:

“O encanto dos velhos burgos, principalmente daqueles que preservam melhor os traços da sua inspiração medieval, não é seguramente uma mera sugestão da indústria turística. Ele existe mesmo, reconhecemo-lo de imediato, embora não o possamos definir nem apreender discursivamente. Ruas tortuosas, vielas esconsas, fachadas tortas, interiores soturnos e desconfortáveis, condições higiénicas muito duvidosas- por que têm tanto encanto? Talvez porque aí ainda é possível ficar a ouvir a chuva. Talvez porque aí há sempre um gato bem- aventurado a dormitar ao sol de fim de Outono” (Falcão, 2004: 48).

No caso de Guimarães, a classificação de Património da Humanidade não consagrou tradições populares ou quaisquer obras-primas do património oral e imaterial da humanidade. Dificilmente o faria, na minha opinião: as vozes, gestos, sons, cores, procissões, desfiles, rituais e demais práticas sociais que se pode observar no centro histórico são os mesmos que, descontando pequenas diferenças, se pode encontrar em qualquer espaço da mesma natureza, em Portugal. Reflectem a comunidade que os produz e têm que ser preservados para que o centro histórico se mantenha um espaço vivo e autêntico mas não têm a originalidade e importância como fonte de inspiração, troca intercultural e papel cultural e social na comunidade envolvida, de outras distinções já atribuídas pela UNESCO, como é o caso da Praça das Palavras em Marraquexe ou mesmo o caso das propostas apresentadas por Portugal em 30 de Dezembro de 2000: Impérios dos Açores, Representação do Auto de Floripes, em Viana do Castelo, Bailinhos de Carnaval da Ilha Terceira, Fado e Doçaria Tradicional portuguesa. Na falta desta classificação, tem de ser mesmo a preservação do património material, artístico, monumental e arquitectónico, esse sim, de valor excepcional, que tem de contribuir para salvaguardar- sem musealizar ou artificializar- as especificidades do ambiente social deste espaço urbano, facto que, a não ocorrer, provaria o fracasso desta classificação de Património da Humanidade.