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11. TERRITÓRIOS DE IDENTIDADE: MARGENS E CONFLUÊNCIAS

11.2 Metonímia (in)voluntária

Como é usada em Guimarães a noção de património? Também aqui se faz um uso encantatório da noção de “património”, demasiadas vezes meramente retórico e na verdade desprovido de considerações acerca das implicações económicas e sociais de uma verdadeira política de tipo patrimonialista (Durand, 2003: 299)? Nesta cidade, o valor do património já era reconhecido muito antes de o poder político iniciar a sua requalificação e dar origem a um processo de revalorização posteriormente reconhecido institucionalmente. Não aconteceu, obviamente, só em Guimarães: “Se há uma imagem comum que resulta da análise das monografias históricas de Aveiro, Braga, Coimbra e Porto é o peso que a antiguidade assume enquanto característica identitária de cada uma dessas cidades. Bem patente no material analítico menos recente, a antiguidade é um elemento que continua a ser posto em evidência nos panfletos e guias turísticos dos nossos dias” (Fortuna e Peixoto, 2002: 21). Observou-se, então, um relançamento patrimonial que se traduziu numa espécie de acréscimo torrencial de patrimonialização que ampliou o valor de uma parte para o fazer coincidir com o todo, metonímia de que acaba por beneficiar o conjunto, transformando, injustificadamente, a cidade de

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Para Le Goff, o lugar é um espaço particularmente passional porque há sempre uma ligação intrínseca entre espaço e tempo: é a razão porque a noção de território vem perdendo pertinência (Le Goff, 1998).

Guimarães em Património da Humanidade. Estatuto atribuído pela UNESCO ao centro histórico (rigorosamente delimitado pelas muralhas medievais), é toda uma cidade que, no discurso local e repetido também fora, sai valorizada patrimonialmente de modo consensual, originando um reforço do espaço social e das identidades colectivas.

Se concebermos a cidade como um objecto que se pode auto-representar enquanto produto que é alvo da procura dos consumidores, a imagem da cidade condiciona fortemente a sua procura; esta ideia tem vindo a apoderar-se dos eleitos locais e reflecte-se claramente no modo como eles estão a privilegiar as políticas de concepção e de gestão de imagens (Peixoto, 2000: 104-105). Desde a classificação pela UNESCO, a frase “Guimarães, património mundial” surge como rótulo em todos os folhetos e guias da cidade editados pela Zona de Turismo de Guimarães, publicações da Câmara Municipal e outdoors, a par dessa outra, mais antiga mas igualmente simbólica, “Guimarães aqui nasceu Portugal”, só que sobrevalorizada pelo tamanho da letra e destacando-se ao meio das capas, relegando esta para o fundo à direita. Em todas estas publicações passa, por isso, a ideia de que é a cidade e não só uma parte, a área classificada. Não é o caso, no entanto, do número zero da revista de Cultura Arquitectónica do Departamento Autónomo de Arquitectura da Universidade do Minho (Laura), que apresenta na página 1 “Guimarães- património cultural da humanidade- centro histórico”, evidenciando um rigor terminológico ausente nas publicações de responsabilidade da Câmara, referidas anteriormente.

Por que se usa este recurso que faz passar a ideia de que toda a cidade é património? Claramente para que todo o conjunto beneficie. Será um abuso? Para Debray (1999: 18-21) é disto que se trata, referindo-se à inflação de edifícios e sítios protegidos ou de interesse público do ponto de vista histórico ou artístico: é um abuso pois, quando tudo se torna monumento por um acto administrativo de classificação, a própria antiguidade já não é requerida e edifícios dos anos 50 e 60 podem ser “históricos”.

Em Guimarães o que foi efectivamente classificado, monumentalizado e protegido foi uma área delimitada pelas muralhas, o centro histórico, e não as zonas circundantes, mas igualmente centrais, nem as zonas suburbanas modernas, alargamento hipotético que acarretaria enormes dificuldades de gestão (sobretudo para o poder local e o Estado) e uma desvalorização simbólica do próprio centro histórico. Se amanhã tudo se tornar monumento, que sentido poderá manter o termo? “Nous en connaissons tous,

de ces lieux de mémoire où l’on accède de mieux en mieux aux lieux et de moins en moins à la mémoire” (Debray, 1999: 19), o que é também um abuso monumental.

O próprio centro histórico se revelou, à luz de abordagens feitas em L’abus

monumental? (Debray, 1999), um exemplo de conjunto monumental involuntário:

casas, igrejas, palácios e castelo, não foram construídos para serem monumentalizados e protegidos, não foram construídos a pensar em tal. Tão involuntários como a Torre Eiffel...: “Construite en ce lieu vide que le centenaire de la Révolution rend plus symbolique encore, la Tour est-elle un monument par intention ou par accident, par choix significatif du site ou choix hasardeux, ou tout simplement par privilège et rente de situation? La question peut s’étendre à d’autres monuments” (Gaillard, 1999: 114).

Este alargamento, abrangendo não só monumentos (voluntários e involuntários) mas igualmente etno-saberes ou recursos ameaçados por uma possível escassez (como é o caso da água) aproxima-nos novamente da questão do património e património colectivo: não só mudou a natureza dos bens actualmente patrimonializados como também mudaram as suas funções e as relações que os actores sociais têm com eles (Durand, 2003). O problema é que o património ou os patrimónios estão a passar por tratamentos diversos.

O património arquitectónico de Guimarães, valioso por ser histórico, artístico e autêntico não tem todo o mesmo tratamento. Os edifícios de habitação ou públicos e os monumentos que estão dentro do perímetro do centro histórico são mais património que os outros: diversos monumentos classificados, como é o caso das capelas de S. Lázaro e Santa Luzia e casas nobres urbanas do século XVII até ao século XIX (entre outros) não são sequer referenciados em mapas e guias da cidade fornecidos nos Postos de Turismo e distribuídos, de um modo geral, em todos os eventos organizados ou apoiados pela Câmara Municipal por estarem “fora” do “centro”108, distorção que Debray (1999) considerou um perigo do abuso monumental. Um monumento é algo que se torna interessante através de livros, guias, comentários, desenhos, fotos, anúncios e desse modo lembrado e celebrado “accumule anonymement noeuds de représentation et boucles d’itinéraire” (Debray, 1999: 20). Por isso pergunta ainda Debray: haveria a classificação de património mundial da UNESCO sem o Boeing e sem o Airbus?

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Mapas e guias assinalam fora do centro histórico: Capela dos Passos da Paixão de Cristo, Igreja dos Santos Passos, Igreja de S. Francisco, Palácio Vila-Flor, Igreja de S. Pedro, Igreja de S. Domingos, Museu Martins Sarmento, Igreja e Convento das Dominicas, Rua de D. João I e Igreja de S. Dâmaso.

Excluíndo o centro histórico classificado, toda a cidade é mostrada nos mapas fornecidos nos Postos de Turismo como uma mancha indistinta onde sobressaem ruas que parecem servir unicamente para se aceder ao burgo antigo, esse sim, com casas, monumentos, serviços, árvores, jardins e, subentende-se, pessoas. Fora do centro histórico só o estádio de futebol se destaca nos mapas pela dimensão e cores usadas. No entanto, monumentalizados, protegidos e patrimonializados como os do centro histórico, muitos outros locais da cidade permitiriam, de igual modo, “fruir a História e a atmosfera medieval dos primórdios da nacionalidade”109. Na realidade, o património arquitectónico do centro histórico, de medieval, tem tanto quanto ruas circundantes como a Rua de D. João I, Rua de Camões, Rua Dr. Bento Cardoso (zona poente da cidade) ou Largo V. Moreira de Sá (zona sul da cidade)110.