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11. TERRITÓRIOS DE IDENTIDADE: MARGENS E CONFLUÊNCIAS

11.3 Querer e poder

Se só os edifícios do centro histórico são Património da Humanidade, dependeu de quem o afirmou e reafirmou e não unicamente do seu valor histórico, arquitectónico e artístico. Em Guimarães, como Marc Guillaume afirma em La politique du patrimoine (1980) ser característica das sociedades modernas, tornar-se património depende, por isso, do local que o poder político elegeu e escolheu para classificação. Também só o seu peso institucional levaria à classificação pela UNESCO, pois só o poder político está em condições de accionar os meios financeiros e técnicos de uma política patrimonial. Só o Estado está em excelente posição de tomar a seu cargo um discurso fundado na apologia da conservação, cruzando os seus poderes regulamentares e as suas intervenções autoritárias (Guillaume, 1980: 163).

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Frase incluída num dos folhetos editados pela Zona de Turismo de Guimarães e distribuídos nos Postos de Turismo.

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Comparando roteiros turísticos do Porto e de Guimarães é possível encontrar semelhanças e diferenças na forma como a classificação de Património da Humanidade é usada para valorizar as duas cidades. Tal como em Guimarães, o que é evidenciado é Porto. Património Mundial, ideia que surge, no entanto, acrescentada de: “depois de visitar o Centro Histórico, descubra o resto da cidade, passeando de eléctrico ao longo do rio, descansando numa esplanada ou num jardim, fazendo compras nas zonas comerciais, indo a um teatro ou a um bar”. Reafirmando este apelo a que se passe “as fronteiras” da zona classificada, o mapa incluído no roteiro representa todo o centro da cidade de igual forma, usando unicamente uma linha para delimitar o centro histórico. A zona classificada não surge nos mapas sobrevalorizada em relação ao resto da cidade, sendo, à primeira vista, difícil de destacar e identificar.

O poder político local, reforçado depois da descentralização, procura, sobretudo desde a década de 90, multiplicar as ocasiões que lhe garantem o acesso aos palcos mediáticos: forja, por isso, uma nova representação da cidade, promovendo a transformação da identidade simbólica através da instrumentalização e criação de símbolos ou da obtenção de um novo estatuto (Peixoto, 2000: 103).

Em relação à questão de definir quem deve liderar o processo de preservação da memória, F. Conceição (Povo de Guimarães, 12-12-2003) defendeu a seguinte opinião: “A tendência, muitas vezes, é considerar que são os outros que têm de fazer isso e neste caso os outros é o Estado, ou é a Câmara. Na realidade isto é um movimento que pode vir das pessoas ligadas aos acontecimentos. Para mim o ideal era partir de associações. (...) Não tem que ser a Câmara Municipal ou o Estado a criar as condições para esse trabalho, embora possam apoiar de diversas formas. Esse movimento deve vir de baixo para cima, precisamente para ser autêntico, genuíno. (...) O que é preciso é devolver o património à estima do cidadão. Isto é, fazer com que ele se aperceba do valor intrínseco do património. Amar esse património é a melhor maneira de o proteger e o divulgar”.

A Carta Urbana Europeia, refere, precisamente, esse envolvimento, não só por parte de associações mas também de cidadãos: “A política urbana interessa, ao mesmo tempo, à colectividade no seu conjunto e aos particulares, em diversos aspectos da sua vida privada. É uma forma importante de intervenção e de direcção dos poderes públicos; convém igualmente que resulte de uma cooperação permanente e regularmente renovada, entre eleitos e o público. Faz parte do património institucional democrático das cidades” (Ferreira, 1998: 95). É que, de facto, se fosse “património”, aquilo a que chamamos património, pelo facto de necessitar de ser preservado para sobreviver, estaria em estado de perpétua falência e aquilo a que chamamos cultura funcionaria como uma espécie de código imposto por alguns grupos de decisão, eventualmente cúmplices daqueles que detêm o poder real, grupos esses que, cumprindo uma estratégia de destruição da tradição, poderiam fabricar uma memória artificial que permitiria a supressão efectiva da memória genuína, verdadeiramente actuante da sua cultura (Jorge, 2003: 13).

O caso da revitalização do Caminho de Santiago é um bom exemplo de como o envolvimento das associações pode ser importante para as activações patrimoniais111,

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“Las declaraciones en el año 1987 por parte del Consejo de Europa del Camino como Primer Itinerario Cultural Europeo y en 1993 como Patrimonio Mundial da Humanidad por la UNESCO constituyen el

mas, igualmente, de como o poder político se apropria desse capital simbólico para implementar políticas patrimoniais, cujo fim é, essencialmente, o desenvolvimento turístico. Foi a partir das reivindicações e iniciativas das associações de amigos que as instituições políticas foram tomando consciência do enorme potencial do caminho. As contradições entre os objectivos de uns e dos outros surgiram entretanto: se, para as associações, o fundamental era a “experiência” do caminho, para as instituições políticas interessava definir estratégias mais ambiciosas, directamente dirigidas ao turista consumista que utiliza meios de transporte e serviços de hotelaria e restauração. Só um aspecto dos caminhantes interessou às instituições: a imagem do peregrino, uma marca de autenticidade que se pode usar tanto para a promoção de valores como para a venda de produtos (Pérez, 2003: 364-365).

O património no seu contexto, não devia, efectivamente, ser assunto exclusivo de especialistas e depender de decisões políticas, pois trata-se também da vontade de uma comunidade guardar ou encontrar as suas raízes. O domínio associativo, se a sua acção for bem controlada, pode trazer um contributo eficaz ao esforço de protecção, mobilizando-se para participar em trabalhos de restauro ou alertando os poderes públicos para os perigos que ameaçam certos edifícios, sítios ou conjuntos de objectos (Babelon e Chastel, 1994: 311). O envolvimento das instituições locais permite ser reconhecido mais amplamente pela comunidade de base: primeiro nível da responsabilidade colectiva, perto do terreno e da população, o sistema associativo é precioso para o futuro de uma cultura partilhada. Que estrutura pode melhor que as associações, dar a conhecer, difundir, interessar? Quem melhor pode fazer amar o património e fazê-lo assumir a sua função social primordial que é ajudar a fundar a comunidade e a legitimar os laços sociais? É desejável, por isso, que em matéria de defesa do património se encontre os princípios de um novo contrato entre o Estado e as colectividades locais, nomeadamente as associações, entre os profissionais e os voluntários, para que se opere o alargamento da base cultural, que é o objectivo menos procurado pelas políticas públicas (Colardelle, 1998: 132-135).

A actividade associativa em Guimarães, tão dinâmica noutros domínios- como referi anteriormente em 9. Territórios de Sociabilidade-, não foi, de um modo geral, actuante em matéria de política urbana. Sobretudo a partir do início da década de 80, houve denúncias importantes, mas essas mensagens obtiveram um alcance deficiente, marco legal de todo este proceso en el contexto del cual adquiere su especificidad la peregrinación actual...” (Pérez, 2003: 358).

não impedindo, desde essa data, a destruição de edifícios antigos no centro histórico- caso, por exemplo, de habitações no Largo Condessa do Juncal (referido na pag. 114)- e não originando um mais amplo reconhecimento público do valor dos bens culturais e arquitectónicos da cidade: por um lado não dispunha dos meios económicos e jurídicos que só o poder político pode assegurar e, por outro, manifestou uma grande dificuldade de mobilizar os grupos mais populares- ao contrário das outras associações do centro histórico-, neste caso, uma grande parte dos moradores e comerciantes do centro histórico. O fenómeno ocorreu em Guimarães, como, de um modo geral, ocorreria noutro local, pois o Portugal contemporâneo é ainda um país em que se verifica uma grande distância entre elites culturais e classes populares- característica que depende em grande parte do grau de desenvolvimento económico e social e não da «natureza» dos portugueses-, e em que aquelas têm tendência para hipostasiar a realidade portuguesa sem que, no entanto, sejam capazes de analisar objectivamente a realidade social nem desencadear nenhum movimento social significativo (Mattoso, 2001: 100-102).