• Nenhum resultado encontrado

9. TERRITÓRIOS DE SOCIABILIDADE: VIVER EM ACORDO SEM SER DIVINO.

9.1. Novos palcos e plateias

A promoção de eventos culturais no centro histórico foi, a par da requalificação de espaços públicos e imóveis degradados, uma das estratégias adoptadas pelo poder local para a reabilitação desse espaço urbano, iniciada há perto de 20 anos. A animação de espaços públicos e o investimento em algumas infra-estruturas culturais foram assumidos pela Câmara de Guimarães, que em realizações próprias ou conjuntamente com outras entidades- por vezes, associações- durante anos programaram concertos, festivais, cinema, teatro, dança para certas praças e auditórios do centro histórico74.

Embora as políticas culturais do Estado estejam sobretudo dirigidas para o arquivo e a conservação, acentuando o perfil patrimonial que tem caracterizado globalmente a sua intervenção, de um modo geral, o Estado tem vindo a re-equacionar o seu papel interventor na cultura, quer como agente estruturador do campo de produção cultural autónoma- segundo uma lógica de intervenção directa-, quer como agente regulador dos mercados culturais, renovando as lógicas de assistência à produção cultural com ensaios de novas modalidades de parceria(s) entre o apoio público e o privado, e estendendo a sua acção às esferas do mercado dominadas pelas indústrias culturais (Santos e Abreu, 2002: 216-241). Não dando grande importância à cultura erudita nem tampouco à chamada cultura popular- nome inventado por quem está de fora- (Certeau, 1994), as cidades envolvem-se na criação deliberada de eventos histórico-culturais que produzem ambientes atractivos e agradáveis com o objectivo de reforçar o seu carácter exclusivo e atrair turistas (Knecht e Niedermüller, 2002: 91-92).

74

“A realização de eventos regulares (ateliers, workshops, conferências, seminários, colóquios, concertos, exposições, feiras, etc., cuja expressão máxima se encontra no figurino dos festivais), corresponde, cada vez mais, a estratégias de construção e projecção de imagens, um recurso incontornável para a entrada nas redes de fluxos culturais globalizados, e eventual apropriação ao nível do que Mike Featherstone designa por «terceiras culturas transnacionais» (1995: 86-101). No plano interno, marca ritmos de produção e formação, ritualizações identitárias, momentos de interacção e familiarização entre pares, relação directa com os públicos ou clientelas. Noutra dimensão, esses pontos altos de comunhão e desenvolvimento dos campos respectivos tendem a inscrever-se em geografias menos centrais, e constituem possibilidades de transposição para a localização territorial de elementos de capitalização simbólica, que podem constituir importantes recursos de dinamização cultural, e de «lógicas de aproximação ao centro» de pequenas cidades” (Santos e Abreu, 2002: 227).

Como se adaptaram, entretanto, os moradores do centro histórico a esta lógica do espectáculo e às novas exigências expositivas? Como convivem com esta pressão? Ajustaram-se à nova realidade, mudando gostos, valores e práticas de forma gradual, mantendo, por isso, os contactos sociais e reorientando definições identitárias ou, por outro lado, afastaram-se bruscamente dos seus referentes, dando origem a perdas de consenso, conflitualidade e desestruturação social? Para obter respostas para estas questões foi preciso ouvir quem perdeu o silêncio a que estava habituado, quem se regozijava por ver espectáculos de graça e ao ar livre, quem lamentava a perda de influência e dinâmica das associações, quem elogiava a Câmara por organizar esses mesmos eventos culturais. As apreciações que muitos faziam sobre a intervenção da Câmara e sobre os espaços de sociabilidade ganhos a partir da requalificação e, mais tarde, da classificação do centro histórico baralharam conclusões à primeira vista óbvias: apreciavam o barulho dos bares e espectáculos por se sentirem menos sós, criticavam a Câmara por ultrapassar as associações e organizar eventos culturais caros e mediáticos que muitos não apreciavam por ser de graça.

Atraídos por esses acontecimentos culturais, moradores, frequentadores e visitantes ocuparam, a partir de então, muitos momentos do seu tempo livre a assistir aos mais variados espectáculos, transformando a Praça de Santiago e o Largo da Oliveira, fundamentalmente, e o Largo João Franco ou o Campo de S. Mamede em novos palcos e plateias. Em Dezembro de 2001, as festas organizadas pela Câmara para comemorar a Classificação de Património da Humanidade- e mais tarde o 1º e 2º aniversários- constituíram alguns desses momentos: referidas por muitos como “a coisa

mais linda” das suas vidas, atraíram ao centro histórico milhares de pessoas que

sentiram uma alegria redobrada por ser experimentada colectivamente.

Desde o início da requalificação, assistir a espectáculos gratuitos e ao ar-livre passou a ser uma rotina, sobretudo no Verão, também para quem não tem por hábito esse consumo em salas de cinema ou auditórios. Mesmo que para tal seja necessário levar de casa um banco, não vão as cadeiras não chegar. As plateias que se formam à hora marcada na Praça de Santiago ou Largo da Oliveira prolongam-se por varandas de todas as alturas, privilégio de quem mora ou de quem pede para de lá ver e ouvir a representação. Uma moradora da Praça de Santiago, L. L., abre muitas vezes a porta da casa para deixar assistir, das varandas, a espectáculos ou quaisquer outros eventos. Frequentemente nem conhece as pessoas, como é o caso da Festa das Maçazinhas em que deixa as varandas encherem-se de estudantes. Por isso diz a propósito: “Há pessoas

na rua que são contra as festas: não gostam de sujar as escadas e de tirar os vasos das janelas”. Esta senhora não se importa, até gosta. Tal como esta, todos os outros

moradores e comerciantes se referem de modo favorável à realização de espectáculos no centro histórico. Não é deste barulho que alguns se queixam mas do causado pelos bares e esplanadas, pela noite dentro.

Uma das realizações culturais mais participadas é o “Cinema em noites de Verão”, no Largo da Oliveira e organizado pela Câmara Municipal e pelo Cineclube de Guimarães. Um dos membros da direcção desta associação, C. M., explica a origem desse sucesso: “Há muita gente que vê cinema no Largo da Oliveira porque os filmes

são passados nestas condições: é grátis e consegue aliar o estar naquele espaço agradável que é o centro histórico.(...) Já tivemos mais de 1000 pessoas a ver um filme. Há quem veja os filmes das varandas, sentados em bancos. Acabada a sessão de cinema, fecham as portas e vão para a cama, que é meia-noite. Muitas pessoas trazem os seus bancos para o largo porque sabem que as cadeiras não vão chegar...”.

C. M. classifica de “inter-geracional” a verdadeira multidão que durante algumas semanas se encontra no mesmo espaço para ver cinema ao ar-livre no Largo da Oliveira, criando um lugar de consenso em que as diferenças, implicando acordos tácitos ou pactos de não-agressão, tendem à homogeneidade característica dos espaços abstractos (Lefebvre, 2000: 61-70). Este consenso ou “economia espacial” de que fala Lefebvre não é de desvalorizar quando se assiste no centro histórico a duas tendências antagónicas e distanciadoras: por um lado o envelhecimento da população moradora, que vai perdendo espaços, e por outro a notória conquista de espaços públicos por adolescentes e jovens de outras zonas da cidade. O “barulho” a que muitos moradores se referem é sempre provocado por estes, que tentam “reapropriar-se”- para usos diferentes- de um espaço social- construído por quem lá vive- ou lugar, com valor simbólico ou significado por ter “logrado ligar, reunir, ordenar e identificar a aquellos que habitan esos espacios o que los frecuentam” (Augé, 1998: 98)75. O centro histórico passa actualmente por esta prova, decisiva para o seu futuro: ceder espaço sem perder a forma.

75

“Paralelamente se puede observar una fuerte concentración de espacios del tipo de los que yo he propuesto llamar no lugares: redes de autopistas, aeropuertos, supermercados, zonas de almacenamiento y a veces de venta, especialmente de productos que aceleran la circulación y la comunicación, a saber, automóviles, aparatos de televisión, ordenadores...El espacio urbano pierde sus fronteras y en cierta medida también su forma” (Augé, 1998: 127).

Sobre as motivações da associação, este dirigente diz ainda: “O Cineclube

concluiu muito antes da classificação que o centro histórico era um sítio interessante: começou há 15 anos a fazer sessões regularmente no Verão, a que chamou “Cinema em noites de Verão”. O centro histórico ainda não era moda, a sua reabilitação estava longe de ficar concluída. Nós próprios fomos sempre uma instituição do centro histórico. As nossas sedes foram sempre no centro histórico: do Largo Condessa do Juncal viemos para o Largo João Franco. Somos utilizadores enquanto moradores, enquanto instituição que tem e teve a sua sede no centro histórico e por outro lado percebemos o interesse em animar isto mesmo antes que isso fizesse parte de uma política cultural definida pelo próprio município. Já no início dos anos 70, o Cineclube de Guimarães fazia sessões no Largo da Oliveira, na Biblioteca Gulbenkian. De algum modo, as instituições de Guimarães e particularmente o Cineclube, antes mesmo da classificação e da preocupação com o nosso centro histórico, achavam que era interessante explorá-lo”. A animação a que C. M. se refere nesta passagem é também

importante porque se refere à presença regular de membros da direcção e inúmeros sócios na sede do Cineclube, actividade diária que mantém “o Largo João Franco, que

era um largo claramente deficitário em termos de movimento, um espaço vivo e mais seguro. Embora não habitemos aqui na casa, alguns de nós estão aqui até tão tarde que o Largo João Franco se torna mais seguro. Temos sempre as luzes acesas e as portas abertas. Portanto, é uma presença viva até altas horas da noite, ao contrário do Tribunal da Relação, por exemplo, que fica deserto”.