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10. O PASSADO COMO DESTINO TURÍSTICO: PERFIL DE UM IMPACTO

10.4 Sectorização, standardização e tax-free

O impacto sociocultural provocado pelo turismo- sobretudo quando há uma grande diferença socioeconómica entre turistas e locais- interessa desde há décadas aos antropólogos, preocupados com as mudanças culturais ocorridas, essencialmente, em comunidades indígenas do terceiro mundo (Nash, 1989; Smith, 1989; Crick 1989; Nunez, 1989; MacCannell, 1992; Cohen, 1993 a, b; Santana, 1997; Krippendorf, 1989). Progressivamente, estes estudos foram-se estendendo aos países desenvolvidos, também eles destinos turísticos que suscitam preocupações com a sustentabilidade do turismo (Brunt e Courtney, 1999; Ryan, 1991; Wahab e Pigram, 1997; Lozato-Giotari, 1990; Gamper, 1981).

Entendendo turismo como “as actividades realizadas por indivíduos durante as suas viagens e estadas em lugares distintos do seu ambiente habitual, por um período de tempo consecutivo e inferior a um ano, com fins de lazer, negócios ou outros motivos” e por comunidade de acolhimento aquela que vive num destino turístico, “um local visitado durante uma viagem ou estadia (turística)” (Eurosart, 1998: 2-7) importa, então, definir impactos socioculturais: “sont ceux où le tourisme contribue à changer les systèmes de valeurs, les comportements individuels, les conduites morales, les styles de vie collectifs, ou encore les cérémonies traditionnelles de la société d’accueil” (Guay e Lefebvre, 1995: 24). Referindo mudanças nos comportamentos individuais e colectivos e apontando a possibilidade de uma pluralidade de impactos, esta definição localiza as mudanças explicitamente na sociedade de acolhimento. “On pourrait encore mieux les définir par les «effets engendrés par les déplacements touristiques sur le genre de vie et sur les relations amicales ou autres que les individus entretiennent entre eux quand ils sont touchés de quelque façon par le phénomène touristique»“ (Gauthier, 1982: 108 cit.

Reconhecendo a dificuldade de separar o social do cultural, numa outra definição precisa-se a distinção entre impactos sociais e impactos culturais, sendo os primeiros, mudanças na vida das pessoas que vivem nas comunidades de destino e estão associadas a um contacto mais directo entre residentes e turistas, e os segundos, mudanças nas artes, artefactos, costumes, rituais e arquitectura das pessoas, mudanças de longa duração que resultam sobretudo do desenvolvimento turístico100 (Gee e Fayos- Solá, 1997: 234). Os impactos não se limitam, nesta definição, à dimensão comportamental- comportamentos individuais, condutas morais, estilos de vida colectiva- e simbólica- cerimónias e rituais- e estendem-se à dimensão cultural, consubstanciada nas artes, artefactos e arquitectura. Para além disto, refere o processo de comercialização da cultura ao estabelecer uma relação directa entre as produções locais e o desenvolvimento do turismo.

Esta visão em que os impactos eram, de um modo geral, apresentados como inevitavelmente negativos e o turismo visto como sinónimo de destruição cultural foi sendo reequacionada pela necessidade de reconhecer que as culturas não são blocos estáticos, encerrados em esquemas chamados tradição- ideia que a história ajudou a reforçar. Essa postura de relativismo cultural afirmou uma concepção plástica e porosa de cultura em que turismo podia não ser mesmo o maior agente de mudança, mas um entre vários. Ou ter efeitos biunívocos: para Barré (1997: 7) qualquer forma de turismo pode provocar um efeito cultural tanto no visitante como em quem recebe.

Valene Smith escreveu em Hosts and Guests (1989) que o grau até ao qual o efeito de demonstração pode directamente ser atribuído ao turismo, em contraste com outras influências externas da modernização incluindo os media e os imigrantes, permanece muito obscuro. Também Greenwood (1989: 181) levantou dúvidas a esse respeito: terá o turismo efeitos únicos? Serão as suas manifestações culturais sempre negativas? Outros autores levantaram dúvidas semelhantes (Crystal, 1989; Ryan, 1991). A literatura antropológica procura ainda compreender os efeitos do turismo.

A perspectiva do impacto sociocultural do turismo parece, no entanto, manter-se válida e a UNESCO continua a patrocinar estudos e conferências sobre a temática

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“Social impacts, as a rule, refer to changes in the lives of people who live in destination communities, and are associated more with direct contact between residents and tourists. Cultural impacts refer to changes in the arts, artefacts, customs, rituals and architecture of a people, and are longer term changes which result more from tourism development. Because most tourism consequences involve changes to both daily life and culture, the term sociocultural impacts is used to refer to changes to residents’ everyday experiences as well as to their values, way of life, and intellectual and artistic products” (Gee e Fayos-Solá, 1997: 234).

(Pandey, 1995; Barré, 1996; Soubert, 1995). Significativamente, à medida que o turismo se torna uma parte integrante do sistema de recepção, são os residentes locais que se têm que adaptar para manter o equilíbrio (Jafari, 1989: 39); o problema fundamental é saber como equilibrar o desenvolvimento económico perseguido pelo turismo com a preservação e protecção da herança cultural e identidade (Barré, 1996: 48).

A lógica de satisfação do turista-consumidor tem efeitos não desprezíveis sobre os locais de destino turístico, desde a submissão à lógica mercantil de numerosos aspectos materiais e não-materiais da sociedade, da economia e da cultura locais, até à alteração da fisionomia ambiental e morfológica dos lugares (Fortuna, 1995: 15). Se em Guimarães dificilmente se pode falar de impacto cultural, tal como definido por Gee e Fayos Solá (1997: 234), pode-se, em contrapartida, observar algumas mudanças económicas e sociais decorrentes dessa lógica de satisfação que, certamente, despertarão o interesse não só da antropologia mas de outras ciências sociais.

Mesmo sujeitos a uma significativa sazonalidade, restaurantes, bares e lojas de artesanato não param de surgir, contrariando a ideia com que se fica, depois de um contacto pessoal com os comerciantes, de que “não se vende quase nada, isto está mau” e alterando a fisionomia do centro histórico que começa a evidenciar alguma sectorização e consequente abandono de actividades comerciais mais diversificadas e moradores. Gloria Gómez alerta para este problema das cidades históricas com uma condição de cidades vivas: “integrar el turismo en la vida de la ciudad y no supeditar la ciudad al turismo, porque con ello se convertirían en «ciudades museos», en centros unifuncionales sin otra función mas que la turística. Son Patrimonio Cultural de la Humanidad, pero antes son Patrimonio Cultural de sus residentes” (Gómez, 1998: 91).

Ao nível do artesanato, o impacto não é de subestimar, mas não exactamente da mesma forma que Cohen (1993 a, b) identificou em países subdesenvolvidos em que a comercialização turística do artesanato implica, em função dos gostos e necessidades da procura, grandes alterações formais ou estéticas e a standardização101 e onde “Motifs and designs are often innovative, even unrelated to the culture of the producers” (Cohen, 1993a: 5). No comércio de artesanato vimaranense, os bordados repetem motivos e cores, aplicados, no entanto, em modelos que se vão renovando, as “cantarinhas”, que poucos vendem, mantêm o modelo e técnicas tradicionais, os

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“One of the principal trends of change in many tourist arts is towards simplification of motives and designs, as a consequence of economic constraints and the need to parry down complex themes to a few easily recognizable marks” (Cohen, 1993a: 5).

“registos” parecem antigos. Com excepção destes artigos, tudo o resto é feito fora de Guimarães: recriações em barro de casas do centro histórico, “D. Afonso Henriques” a imitar bronze, pratos de louça de Alcobaça onde se lê “Lembrança de Guimarães”, muralhas pintadas às cores, castelos pintados nos mais diversos suportes, azulejos “barrocos” parecendo recém-retirados de capelas de casas senhoriais, figuras de presépio acolhidas sob baldaquinos góticos. “Nace así el souvenir, donde las nuevas formas deben responder a lo que el comprador potencial, normalmente desconocedor de la artesanía tradicional-funcional, piensa y espera encontrar en el área. (...) En términos generales, el turista, cuando adquiere el objeto artesano como souvenir está comprando un reforzador de recuerdos y una demostración del «estar allí» que le diferencie del resto” (Santana, 1997: 101- 102). Por isso é pouco exigente.

“Guimarães quase não tem artesanato”, diz D. S., justificando-se do facto de vender bordados industriais, louças utilitárias, louças decorativas de Alcobaça, figurados de Barcelos e inúmeros outros objectos cuja proveniência dificilmente se adivinha, pela vulgaridade. Nada é feito em Guimarães porque “não há artesãos”, diz D. S. contrariado. F. R. faz questão de só vender artesanato português: peças em barro de proveniência variada, muitas das quais feitas de encomenda para Guimarães: o mais vendido é uma pequena representação da muralha onde se pode ler “Aqui nasceu Portugal”, fabricada em Barcelos em exclusivo para a sua loja. O artesanato contemporâneo vendido em duas outras lojas é interessante, mas sem revelar qualquer pretensão de manter a tradição local ou mesmo recriá-la. Algumas lojas de bordados acrescentam lingerie, roupa de cama e tapetes a montras com o distintivo tax-free.

A pressão do turismo em Guimarães criou empregos ao nível dos serviços mas não reactivou as actividades artesanais locais. O seu impacto levou, antes, à criação espontânea de produtos para consumo turístico, que foram evoluindo em função dos mercados102 (Cohen, 1993b) e geram significativa riqueza em zonas tradicionalmente ligadas à produção de artesanato em Portugal: Barcelos, Alcobaça, Alentejo, Viana do Castelo. Só o reduzido artesanato feito em Guimarães- bordados e cantarinhas- tem alguma tradição enquanto tal e se mantém relativamente inalterado.

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“Tourist arts, as commercialized folk arts, never remain identical for long with the baseline products from which their development had taken off. Owing to the imperatives of the market, representing the tastes, preferences and demands of the novel, external public to which the producers have to respond, at least partially, if their business is to remain viable, changes are introduced into materials, sizes, forms, coloration, functions, and production techniques of tourist art products. There is hardly any tourist art anywhere that after commercialisation remained viable as well as unchanged” (Cohen, 1993b: 157).