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1.2 O CENÁRIO INTERNACIONAL DO PÓS-GUERRA ATÉ A DÉCADA DE

Como vimos, a questão da pobreza como problema social surge como consequência de diversos fatores que podem ser atribuídos, em linhas gerais, à expansão da economia mercantil, dos processos de urbanização levando ao empobrecimento massivo e devido à monetarização da sociedade. A partir disso, os pobres passaram a ser definidos como carentes daquilo que os ricos podiam ter em termos de dinheiro e posses (RAHNEMA, 2000, p. 230). Em outras palavras, podemos dizer então que a pobreza se torna um “problema social” com ascensão e consolidação do sistema capitalista e sua sociedade de classes.

Entendemos a emergência da pobreza como questão social como parte do processo mais geral de desenvolvimento capitalista, no qual as relações sociais e econômicas foram duramente afetadas pelos processos de industrialização e urbanização, rompendo com as relações tradicionais de autoridade e de solidariedade existentes no interior das famílias e das pequenas comunidades, dando lugar a processos de constituição de novas classes e atores coletivos em uma nova ordem social e política (FLEURY, 1994, pp.63-64). Vimos também que, desde o surgimento do capitalismo como sistema econômico vigente, a pobreza atraiu os interesses intelectuais e políticos, resultando em debates entre governos e grupos dirigentes quanto à definição das necessidades dos pobres em relação a suas rendas. Antes mesmo da Revolução Industrial, em especial na Inglaterra e na Europa Ocidental, dirigentes de pequenas áreas (como paróquias, por exemplo) buscavam criar formas de alívio e compensação voltadas aos pobres que viviam dentro e fora de suas instituições. Com o avanço do processo de industrialização no século XIX, as pequenas iniciativas isoladas passaram a ser insuficientes, tendo em vista a crescente miserabilidade das classes trabalhadoras urbanas (CODES, 2008. p. 12).

Todos os tipos de miséria, sobretudo a pobreza, tinham de ser encarados como males curáveis, não como eternos companheiros da existência humana. Essa percepção das misérias humanas como socialmente condicionadas, e, portanto elimináveis, é um constituinte fundamental da própria ‘questão social’ (HELLER e FEHER, 1998, p. 156- 157).

O início do século XX, marcado pelas duas grandes guerras mundiais - a Primeira Guerra Mundial (1914-1917) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) intercalado pela

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Grande Depressão (1929-1933) -, foi um período de redefinição econômica nos países centrais (países europeus e os EUA). Nesses países, as bases da produção industrial estavam calcadas nas técnicas tayloristas (desenvolvidas por Frederick W. Taylor) as quais consistiam em um modelo de gestão empresarial, com o objetivo de tornar o trabalhador mais produtivo, ou seja, fazer o trabalhador uma parte da empresa, incorporando-o à máquina. Os princípios básicos do taylorismo podem ser assim resumidos: a divisão do trabalho, a padronização das tarefas, a separação entre o planejamento e a execução, treinamento e substituição dos trabalhadores.

Nesse período, associando às técnicas tayloristas ocorre a alteração no modelo de produção e de acumulação capitalista, sob o que chamamos de produção fordista10, baseada na produção em massa para um consumo de massa. Alterando o sistema de reprodução da força de trabalho, a gerência e o controle do trabalho, resultando em “[...] um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista” (HARVEY, 2000, p.121).

Segundo Hobsbawm (2006), mesmo antes da Grande Depressão, os países europeus apresentavam taxas muito baixas de alguma forma de proteção social destinada aos trabalhadores, tais como planos de seguro-desemprego: a Grã-Bretanha com menos de 60%; a Alemanha com cerca de 40%. Nesse período, a ideia da seguridade social visava garantir aos trabalhadores a “[...] proteção contra as terríveis incertezas do desemprego, doença ou acidente, e as terríveis certezas de uma velhice sem ganhos” (HOBSBAWM, 2006, p. 96). Com a Depressão, ocorre uma importante queda na importação de alimentos nos países camponeses coloniais e o aumento do desemprego em grande escala nos países industrializados, culminando em fortes pressões sociais, em especial da classe trabalhadora, forçando a criação de modelos de previdência pública na forma de seguros sociais, como o auxílio desemprego por exemplo. Assim, ocorre a implementação dos sistemas de

10 “Entre os principais ícones dessa modernidade estavam a fábrica fordista, que reduzia as atividades

humanas e movimentos simples, rotineiros e predeterminados, destinados a serem obedientes e mecanicamente seguidos, sem desenvolver faculdades mentais e excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual. [tendo por características] meticulosa separação entre projeto e execução, iniciativa e atendimento a comandos, liberdade e obediência, invenção e determinação, com estreito entrelaçamento dos opostos dentro de cada uma das operações binárias e a suave transmissão de comando do primeiros elemento de cada par ao segundo” (BAUMAN, 2001, pp. 33-34/68).

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previdência e/ou de proteção social11 em diversos países, tendo como inspiração os

modelos já existentes - ingleses e alemães12.

De tal forma que, após a Grande Depressão, entram na agenda política dos governos dos países desenvolvidos questões como garantias ao emprego, à estabilidade e ao crescimento econômico. Com isso, os governos passaram a assumir a responsabilidade em garantir a seus cidadãos certo bem-estar social, baseado na necessidade de intervencionismo estatal na economia a fim de manter níveis adequados de emprego, pela criação de um conjunto de estratégias administrativas científicas e poderes estatais para estabilizar o capitalismo.

Segundo Arretche (1995, p.3), somente após a Segunda Guerra Mundial ocorre o desenvolvimento dos programas de proteção social possibilitando a instituição das políticas de bem estar social, da seguinte forma:

Ainda que alguns países – como a Alemanha, por exemplo – tenham dado origem a programas de seguro social já no final do século passado e que políticas de proteção a idosos, mulheres, incapacitados etc. se tenham desenvolvido em vários países já no início deste século, é certo que o fenômeno do welfare state experimentou incontestável expansão e até mesmo institucionalização no período do pós-guerra. É a partir de então que se generaliza e ganha dimensões quase universais nesses países um conjunto articulado de programas de proteção social, assegurando o direito à aposentadoria, habitação, educação, saúde etc.

No pós-Segunda Guerra Mundial, as políticas de pleno emprego tornaram-se a pedra fundamental da política econômica nos países de capitalismo democrático, tomando por base as reflexões do economista britânico John Keynes13, que defendia que a demanda

11 Segundo TEIXEIRA (1985), as diferentes formas assumidas pela proteção social podem ser resumidas em

três modalidades: a Assistência Social (medidas de proteção social criadas em contextos rigidamente liberal, de baixa intervenção estatal, de natureza compensatória e punitiva, condição política de “cidadania invertida”), o Seguro Social (estabelece uma relação jurídica com os operários assalariados, com participação compulsória e de direito social, tendo como base a “cidadania regulada”) e o Estado de bem-estar social (propõe uma relação de “cidadania plena” a qual determina como responsabilidade do Estado a garantia de um mínimo vital a todos cidadãos, atrelando a noção de direito social ao exercício da cidadania através da organização da política social).

12 Um tipo de intervenção pública surgiu na Alemanha de Bismarck na virada do século XIX para o século

XX (com base em seguros) e na Inglaterra pelas lutas trabalhistas do pós-guerra (com base em direitos de cidadania) (KERSTENETZKY, 2012, p. 5).

13 Em sua obra “Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro”, na década de 1930 Keynes faz uma

revisão da economia liberal instaurada por Adam Smith. “[...] implica no estudo das medidas de intervenção do governo na economia, visando o pleno emprego, o maior desenvolvimento econômico, a estabilidade monetária e a melhor distribuição da renda” (BRESSER-PEREIRA, 1968, p.2).

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gerada pela renda de trabalhadores com pleno emprego estimulava a economia em recessão.

Com o final da Segunda Guerra Mundial em 1945, segundo David Harvey (2000, p.125):

O problema da configuração e uso próprio dos poderes do Estado só foi resolvido depois de 1945. Isso levou o fordismo à maturidade como regime de acumulação plenamente acabado e distinto. Como tal, ele veio a formar a base de um longo período de expansão pós-guerra que se manteve mais ou menos intacto até 1973. Ao longo desse período, o capitalismo nos países capitalistas avançados alcançou taxas fortes, mas relativamente estáveis de crescimento econômico. Os padrões de vida se elevaram, as tendências de crises foram contidas, a democracia de massa, preservada e a ameaça de guerras intercapitalistas, tornada remota. O fordismo se aliou firmemente ao keynesianismo, e o capitalismo se dedicou a um surto de expansões internacionalistas de alcance mundial que atraiu para a sua rede inúmeras nações descolonizadas.

Tendo como base a associação do modelo de produção fordista e uma gestão econômica keynesiana, alguns pesquisadores construíram tipologias sobre os diferentes modelos de Estado de bem-estar social resultantes, as tipologias mais utilizadas pela literatura são a de Richard Titmus (1965) - dividiu os tipos de bem-estar social em três categorias básicas: bem-estar público, bem-estar fiscal e tributário e de bem-estar no trabalho, resultando em três modelos: residual; industrial e redistributivo -, e de Esping Andersen (1991) - identificou três modalidades ou regimes de welfare states: liberal; conservador e social democrata. Para nossa análise adotaremos o modelo denominado por Jessop (2008, p. 67) da seguinte forma:

El fordismo atlântico [Estados Unidos, Canadá, Europa Norte Ocidental, Austrália e Nova Zelândia] puede definirse de forma resumida como un régimen de acumulación baseado en un circulo virtuoso autocéntrico de producción y consumo masivos, garantizado a través de un modo de regulación característico que se materializó de manera discursiva, instituicional y practica en el Estado nacional de bienestar keynesiano o (ENBK).

No período que se segue ao final da Segunda Guerra Mundial, por conta do fortalecimento da União Soviética de um lado e dos Estados Unidos de outro, associada à simpatia dos movimentos trabalhistas especialmente entre os europeus quantos às políticas de cunho socialistas e comunistas adotadas, uma nova guerra se instaura no mundo todo conhecida como Guerra Fria14.

14 “A Guerra Fria transformara o panorama internacional em três aspectos. Primeiro, eliminara inteiramente,

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A peculiaridade da Guerra Fria era de que, em termos objetivos, não existia perigo eminente de guerra mundial. Mais que isso: apesar da retórica apocalíptica de ambos os lados, mas sobretudo do lado americano, os governos das duas superpotências aceitaram a distribuição global de forças no fim da Segunda Guerra Mundial, que equivalia a um equilíbrio de poder desigual mas não contestado em sua essência. A URSS controlava uma parte do globo, ou sobre ela exercia predominante influencia – a zona ocupada pelo Exército Vermelho e/ou outras Forças Armadas comunistas no término da guerra – e não tentava aplica-la com o uso da força militar. Os EUA exerciam controle e predominância sobre o resto do mundo capitalista, além do hemisfério norte e oceanos, assumindo o que restava da velha hegemonia imperial das antigas potências coloniais. Em troca, não intervinha na zona aceita de hegemonia soviética. (HOBSBAWM, 2006, p. 224).

Como parte da Guerra Fria, em junho de 1947 foi lançado o Plano Marshall15 que

pretendia, em linhas gerais, por disposições dos EUA fortalecer a economia europeia, e posteriormente, a japonesa. Consistia em um plano para recuperar a economia do pós- guerra de livre comércio, livre conversão e livres mercados, parte da aliança militar antissoviética (destaque para a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, em 1949). Outra medida adotada para o fortalecimento do capitalismo durante a Guerra Fria foi a criação da “Comunidade do Carvão e do Aço” em 1950, a qual em 1993 passou a ser chamada apenas de “União Europeia” (HOBSBAWM, 2006).

A principal potência capitalista da época, os Estados Unidos, usou sua posição dominante para ajudar a criar, juntamente com seus principais aliados, um novo quadro para a ordem global. Incentivou a descolonização e o desmantelamento dos impérios anteriores (britânico, francês, holandês etc.) e intermediou o nascimento das Nações Unidas e do Acordo de Bretton Woods de 1944, que definiu as regras do comércio internacional. Quando a Guerra Fria começou, os EUA usaram seu poderio militar para oferecer (“vender”) proteção a todos aqueles que optaram por alinhar-se com o mundo não comunista. (HARVEY, 2011, p. 34).

Assim, as décadas de 1950 e 1960 foram marcadas pela afirmação dos governos capitalistas de intervencionismo econômico como tentativa a impedir novas catástrofes econômicas como as ocorridas no período entreguerras e evitar perigos políticos radicais como o comunismo (HOBSBAWM, 2006).

Mundial, com exceção de um. [...] Segundo, a Guerra Fria congelara a situação internacional, e ao fazer isso estabilizara um estado de coisas essencialmente não fixo e provisório. [...] Terceiro, a Guerra Fria encheu o mundo de armas num grau que desafia a crença.” (HOBSBAWM, 2006, pp.248-252).

15 “Tudo isso se abrigava sob o guarda-chuva hegemônico do poder econômico e financeiro dos Estados

Unidos, baseado no domínio militar. O acordo de Bretton Woods, de 1944, transformou o dólar na moeda- reserva mundial e vinculou com firmeza o desenvolvimento econômico do mundo à política fiscal e monetária norte-americana. A América agia como banqueiro do mundo em troca de uma abertura dos mercados de capital e de mercadorias ao poder das grandes corporações.” (HARVEY, 2000, p.131).

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As desigualdades geradas pelo sistema de produção trouxeram tensões sociais graves reveladas pelos movimentos sociais, como por exemplo, as questões raciais, de gênero e de origem étnica, bem como movimentos sociais associados à população que não possuía acesso ao consumo de massa e ao trabalho assalariado, em compensação a redução do papel dos sindicatos a grupos de interesses fragmentados16. Assim, para conter a insatisfação gerada pelo modelo de acumulação posto a cabo pelo fordismo:

No mínimo, o Estado tinha de tentar garantir alguma espécie de salário social adequado para todos ou engajar-se em políticas redistributivas ou ações legais que remediassem ativamente as desigualdades, combatessem o relativo empobrecimento e a exclusão das minorias (HARVEY, 2000, p. 133).

O modelo de ações de Estado adotado até a década de 1960 (entrando em crise17 em 1973 com o crash do petróleo18), basicamente em todo mundo capitalista, visando combinar de um lado o desenvolvimento econômico e de outro as políticas sociais mais universais, é o que conhecemos por Estado de Bem-estar social19.

[...] o aparecimento de Estados de Bem-estar no sentido literal da palavra, quer dizer, Estados em que gastos com a seguridade social – manutenção da renda, assistência, educação – se tornaram a maior parte dos gastos públicos totais, e as pessoas envolvidas em atividades de seguridade social formavam o maior corpo de todo o funcionamento público [...]. No fim da década de 1970, todos os Estados capitalistas avançados se haviam tornado “Estados de Bem-estar” desse tipo, com seis deles gastando mais de 60% de seus orçamentos na seguridade social (Austrália, Bélgica, França, Alemanha Ocidental, Itália, Países Baixos) (grifo do autor, HOBSBAWM, 2006, pp. 278-279).

16 “As lutas trabalhistas não desapareceram, pois os sindicatos muitas vezes eram forçados a responder a

satisfações das bases. Mas os sindicatos também se viram cada vez mais atacados a partir de fora, pelas minorias excluídas, pelas mulheres e pelos desprivilegiados. Na medida em que servem aos interesses estreitos de seus membros e abandonavam preocupações socialistas mais radicais, os sindicatos corriam o risco de ser reduzidos, diante da opinião pública, a grupos de interesses fragmentados que buscavam servir a si mesmos, e não a objetivos gerais.” (HARVEY, 2000, pp. 132-133).

17 “Desde hace ya tempo se considera que, por suerte o por desgracia, los ENBK [Estado Nacional de Bem-

estar Keynesiano] que se desenrollaron en muchas sociedades capitalistas avanzadas durante el auge de posguerra sufren algún tipo de crisis, si es que no están ya en estado terminal. Sobre lo que, en cambio, no existe tal acuerdo, es en lo referente a la naturaleza y causas exactas de esta crisis o sobre lo que podría lo debiera substituir a esta forma particular de Estado y a su modo de regulación. Se la crisis del ENBK es, esencialmente, una crisis en ese régimen y en su papel en la reproducción del régimen del acumulación al cual está unido, entonces dicho papel podría ser restaurado mediante reformas graduales en uno o en ambos sin modificar su forma de organización. Por, si se trata de una crisis del ENBK, acaso sería necesario un nuevo régimen de reproducción social y económica.” (JESSOP, 2008, pp. 2-3).

18 “[...] os efeitos da decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo e da decisão árabe de embargar as

exportações de petróleo para o Ocidente durante a guerra árabe-israelense de 1973.” (HARVEY, 2000, p.136).

19 A temática sobre o surgimento do Estado de Bem-estar social e as diferentes abordagens podem ser vistas

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Para um melhor entendimento sobre o tema, trazemos o quadro abaixo desenvolvido por Jessop (2008, p.72) identificando as quatro principais características do Estado Nacional de Bem-estar Keynesiano que, dependendo de suas variações, podem resultar em modelos diferenciados:

MEDIOS PRIMARIOS