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b) O sentido espiritual ou místico

PRIMEIRA HOMILIA

1. Como aprendemos de Moisés que há

não só o Santo, mas o Santo dos Santos (Ex 26, 34) e, não somente o Sábado, mas também o

Sábado dos Sábados (Lv 16, 31), do mesmo

modo somos ensinados a partir do que escreveu Salomão que há não só o Cântico, mas também o Cântico dos Cânticos (Ct 1, 1).

Bem-aventurado é, com certeza, aquele que entra no Santo, mas, muito mais ainda o é

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391 Cf. Esta progressão por analogia que culminará no Cântico dos Cânticos antecede a escala septenário que Orígenes apresentará a seguir [HCt I, 1 (66-68)], como um verdadeiro itinerário espiritual para os batizados (cf. MANNS, F., «Une tradition juive dans les commentaires du Cantique des Cantiques d’Origène», 20-22). Tal como era preciso o sacerdote estar em estado de graça para entrar no Santuário do Senhor ou no «Santo», o privilégio de entrar no «Santo dos Santos», separado do templo por uma cortina de linho e onde estava a arca da Aliança, era apenas reservado ao sumo-sacerdote que lá podia entrar apenas uma vez por ano (He 9, 7), para a celebração da expiação dos pecados do povo, na presença do Deus vivo (Lv 16, 34).

392 O Sábado (Shabat em hebraico) significa repouso e o «Sábado dos Sábados» é o ano do grande jubileu que só acontecia todos os cinquenta anos. Era, portanto, para qualquer judeu uma alegria máxima poder celebrar este ano santo do jubileu dedicado ao Senhor, marcado pelo regresso à sua propriedade, à sua família, pelo repouso sabático e pela justiça nas relações de compra-venda (Lv 25, 8-17).

393 Este primeiro cântico, que celebra a saída do Egipto e a travessia do Mar Vermelho, inicia a serie do Hexaémeron origeniano. Considerando o itinerário espiritual que leva a cantar o Cântico dos Cânticos como uma recreação operada pelo Verbo de Deus na alma do crente, os seis primeiros cânticos constituem as suas etapas laboriosas, de combate espiritual, que conduzem a alma para o epitalâmio, cântico do repouso com o Esposo. Ora, cada etapa com as suas diversas provações conclui-se sempre por um canto, que testemunha o aspeto essencialmente luminoso e otimista da mística origeniana (cf. ROUSSEAU, O., «Introduction», 31-33). Nesta

sabbatizat sabbata sabbatorum. Beatus similiter et is qui intelligit cantica et canit ea — nemo quippe nisi in sollemnitatibus canit —, sed multo beatior qui canit cantica canticorum.

Et sicut is, qui ingreditur in sancta, pluribus adhuc indiget, ut ualeat introire in sancta sanctorum, et qui sabbatum celebrat, quod a Deo populo constitutum est, multa adhuc necessaria habet, ut agat sabbatum sabbatorum, eodem modo difficile repperitur, qui omnia quae in scripturis continentur cantica peragrans, ualeat adscendere ad

cantica canticorum.

Egredi te oportet ex Aegypto (Ex 13, 3-8) et egressum de terra Aegypti pertransire mare rubrum, ut possis primum canticum canere dicens:

Cantemus Domino; gloriose enim magnificatus est (Ex 15, 1). Licet autem

aquele que entra no Santo dos Santos391. Bem-

aventurado aquele que celebra o Sábado, mas muito mais ainda aquele que celebra o Sábado

dos Sábados392. Do mesmo modo, é bem-

aventurado aquele que compreende e canta o cântico. Com efeito, ninguém canta a não ser numa festa solene e muito mais ainda quem canta o Cântico dos Cânticos.

E tal como aquele que entra no Santo precisa ainda de muito esforço para penetrar no

Santo dos Santos, e quem celebra o Sábado,

que foi constituído por Deus para o seu povo, é-lhe muito mais necessário ainda para celebrar o Sábado dos Sábados, do mesmo modo, reconhece-se difícil que, aquele que percorrendo todos os cânticos que estão contidos nas Escrituras, tenha a força de subir até ao Cântico dos Cânticos.

É preciso que saias do Egipto (Ex 13, 3- 8) e, tendo saído da terra do Egipto, atravesses

o Mar Vermelho, para que possas cantar o primeiro cântico, dizendo: cantemos ao Senhor, pois Ele foi gloriosamente exaltado

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primeira etapa, sair do Egipto significa abandonar a escravidão satânica para iniciar a entrada na vida mística mediante o batismo, simbolizado pela travessia do Mar Vermelho, como podemos entender a partir da sua interpretação do cântico de Ex 15 (cf. ORÍGENES, HEx VI, 1-14 (170-202)].

394 Religando este percurso ao do povo de Israel, o deserto é o lugar da provação, do cansaço, da fome e da sede. É no meio de tudo isso que o batizado irá descobrir o poço, cavado pelos reis, que recorda o dom da água por Deus ao seu povo (Nm 21, 16). Este segundo cântico (Nm 21, 17) apesar de ser brevíssimo é demasiado comentado por Orígenes, que na sua mística dá um lugar importante aos poços [cf. ORÍGENES, HNm XII, 1-4 (72-112). Depois de vencer a primeira aridez do deserto, é preciso ir buscar a água nas profundezas do poço, onde a interpretação profética da Escritura, que fala de Cristo, foi escondida de tal modo que a alma possa fazer um trabalho semelhante ao dos reis que cavaram tanto para chegar a essa água. A alma crente, feita real pelo batismo e que vive este itinerário, descobrirá assim a profundidade da Escritura que poderá matar a sua sede (cf. MANNS, F., «Une tradition juive dans les commentaires du Cantique des Cantiques d’Origène», 21).

395 Este Jesus designa aquele mais conhecido como Josué, filho de Nun, que sucedeu a Moisés (Js 1, 1-9) na orientação do povo em direção à Terra prometida e que conduzirá o povo nas diversas conquistas apresentadas no livro de Josué.

396 A abelha laboriosa é sinónimo de diligência, trabalho e luta. Portanto, é ela que pode julgar o trabalho feito no deserto. Na terra prometida, como relatado no livro dos Juízes, a conquista deve continuar. O crente deverá então combater, como o povo de Israel, para exterminar os povos estrangeiros dedicados aos ídolos, i.e., erradicar da alma os vícios. Por isso, Débora, que significa «abelha» ou «linguagem», profetiza aqui para reconfortar o peregrino pelo seu mel: se o reconforto do deserto tinha sido a água, passada a fase da purificação e entrando na terra prometida, já com o céu aberto, o reconforto é o mel, cuja qualidade é mais nobre [cf. ORÍGENES, HJz V, 2-3 (134-136); GARGANO, G. I., Límmagine dell’ape laboriosa di Prov. 68 abc e la didascália transmessa dai

Padri cristiani, 266-281, in AA. VV., La Tradizione: forma e modi, Roma 1990, 266-281]. primum dixeris canticum, adhuc longe

es a cantico canticorum. Perambula terrain deserti spiritaliter, donec uenias ad puteum quem foderunt reges, ut ibi secundum canticum (Nm 21, 17) canas. Post haec ueni ad uiciniam sanctae terrae, ut super Iordanis ripam constitutus cantes canticum, Moysi dicens: Attende caelum, et loquar; et

audiat terra uerba oris mei (Dt 32, 1).

Rursum habes necessarium ut milites sub Iesu et terram sanctam hereditate possideas et apis tibi prophetet apisque te iudicet — Debbora quippe apis interpretatur—, ut possis et illud carmen, quod in Iudicum libro (Jz 5, 2) continetur, edicere. Ad Regnorum deinceps uolumen adscendens ueni ad

canticum, quando Dauid fugit de manu omnium inimicorum suorum et de manu Saul et dixit: Dominus, firmamentum

o primeiro cântico, ainda estás muito longe do

Cântico dos Cânticos. Percorre espiritualmente a terra do deserto até chegares junto do poço que os reis cavaram, para aí cantares o segundo cântico (Nm 21,17)394.

Depois deste, vem até à vizinhança da Terra Santa para cantares, sobre a margem do Jordão,

o cântico de Moisés, dizendo: presta atenção, ó céu, e falarei, e que a terra oiça as palavras da minha boca (Dt 32, 1). Em seguida, será

necessário que lutes sujeito a Jesus395 e possuas

em herança a Terra Santa e que a abelha profetize sobre ti e te julgue396 – com efeito,

Débora significa abelha – para que possas também proclamar aquele cântico que está no livro dos Juízes (Jz 5, 2). Logo a seguir, subindo para o livro dos Reis, vai até ao

cântico, quando David foge da mão de todos os seus inimigos e da mão de Saul e disse: o Senhor é o meu sustentáculo, minha força, meu refúgio e meu libertador (2 Sam 22, 2).

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397 Pelo facto da revelação das personagens feita por Deus, mediante a oração da assembleia, não ser exclusivamente ao pregador, temos aqui um indício da integração do destinatário na própria hermenêutica apresentada nestas Homilias. A oração é como que a ponte que une ambas as partes neste exercício e a porta que antecede a afirmação de qualquer verdade. A existência do plural greges em latim (…cum sponso sodalium

greges), que traduzimos aqui no singular pode talvez justificar-se pela sua aplicação, no texto grego, às duas

categorias (as donzelas e os companheiros).

meum et fortitudo mea et refugium meum et liberator meus (2 S 22, 2).

Perueniendum tibi est ad Esaiam, ut cum illo dicas: Cantabo canticum,

dilecto uineae meae (Is 5, 1).

Et cum uniuersa transieris, ad altiora conscende, ut possis anima decora cum sponsa et hoc canere canticum canticorum.

Quod ex quot personis constet, incertus sum. Orantibus autem uobis et reuelante Deo quattuor in his mihi uideor inuenire personas, uirum et sponsam, cum sponsa adulescentulas, cum sponso sodalium greges. Alia dicuntur a sponsa, alia a sponso, nonnulla a iuuenculis, quaedam a sodalibus sponsi. Congruum quippe est, ut in nuptiis adulescentularum sit multitudo cum sponsa, iuuenum turba cum sponso.

Haec omnia noli foris quaerere, noli extra eos qui praedicatione

euangelii sunt saluati (1 Cor 1, 21).

Christum sponsum intellige, ecclesiam sponsam sine macula et ruga, de qua scripturn est: Vt exhiberet sibi

gloriosam ecclesiam non habentem maculam neque rugam aut aliud quid

Deverás chegar a Isaías para dizeres com ele:

cantarei ao meu amado o cântico da minha videira (Is 5, 1).

E quando tiveres atravessado tudo isto, sobe mais alto ainda, para que possas, ó alma bela, cantar também com a Esposa este Cântico dos Cânticos.

Não tenho a certeza de quantas personagens é composto este Cântico dos

Cânticos. Mas, com as vossas orações e

consoante o que Deus revela, parece-me descobrir nele quatro personagens: o Esposo e a Esposa, com a Esposa, as donzelas, com o Esposo, um grupo de companheiros397. Certas

coisas são ditas pela Esposa, outras pelo Esposo, algumas pelas donzelas e outras pelos companheiros do Esposo. De facto, é conveniente que, nas núpcias, haja um cortejo de donzelas com a Esposa e um grande número de jovens com o Esposo.

Tudo isto não o procures exteriormente, não fora daqueles que foram salvos pela

pregação do Evangelho (1 Cor 1, 21).

Reconhece no Esposo Cristo, e na Esposa a Igreja sem mancha nem ruga, acerca da qual está escrito: para que lhe apresentasse a

Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga, ou algo sequer semelhante, mas santa e

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398 Trata-se dos que ainda não têm uma anima decora, i.e., que ainda não chegaram ao estado de perfeição para poder cantar o Cântico dos Cânticos.

eorum, sed ut sit sancta et immaculata

(Ef 5, 27). Eos uero, qui, cum sint fideles, non sunt tarnen istiusmodi, quales sermo praefatus est, sed iuxta modum quendam adepti uidentur salutem, animas animaduerte credentium et adulescentulas esse cum sponsa. Angelos uero et eos, qui

peruenerunt in uirum perfectum (Ef 4,

13), intellige uiros esse cum sponso. Vide igitur mihi quattuor ordines, unum et unam, duos choros inter se concinentes, sponsam canere cum iuuenculis, sponsum canere cum sociis.

Et cum haec intellexeris, audi

canticum canticorum et festina intelligere illud et cum sponsa dicere ea, quae sponsa dicit, ut audias, quae audiuit et sponsa. Si autem non potueris dicere cum sponsa, quae dixit sponsa, ut audias ea, quae dicta sunt sponsae, festina uel cum sponsi sodalibus fieri. Porro si et illis inferior es, esto cum adulescentulis, quae in sponsae deliciis commorantur.

Haec quippe in hoc libro, fabula pariter et epithalamio, sunt personae; ex quo et gentiles sibi epithalamium uindicarunt et istius generis carmen assumptum est, epithalamium siquidem est canticum canticorurn.

imaculada (Ef 5, 27). Quanto àqueles que,

embora sejam fiéis, ainda não são tal como a palavra da Escritura acabou de dizer398, mas

parecem verdadeiramente ter chegado muito perto da Salvação, considera que eles são as almas dos crentes e reconhece neles as donzelas, que estão com a Esposa. Quanto aos anjos e àqueles que chegaram ao estado do

homem perfeito(Ef 4, 13), reconhece neles os jovens que estão com o Esposo. Vê então comigo estes quatro elementos: um (o Esposo) e uma (a Esposa), dois coros entre si harmoniosos, a Esposa, cantando com as donzelas, o Esposo, cantando com os seus companheiros.

E, tendo compreendido isto, ouve o

Cântico dos Cânticos e apressa-te a

compreendê-lo e a dizer com a Esposa o que ela diz, para que oiças o que ouviu também a Esposa. Todavia, se não puderes dizer com a Esposa o que ela disse, para que oiças o que lhe foi dito, não te demores, se quiseres, a ficar junto dos companheiros do Esposo. Mas se aquelas palavras estão também acima de ti, fica com as donzelas, que estão nas boas graças da Esposa.

Tais são, na verdade, as personagens neste livro, simultaneamente uma narração dialogada e um epitalâmio; foi a partir daqui que os gentios se apropriaram também do epitalâmio e este estilo de canto foi (por eles) tomado de empréstimo, dado que o Cântico

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399 O epitalâmio é um “canto nupcial” destinado à honrar os novos cônjuges e cantado à sua porta. É um género literário muito usado pelos antigos e temos testemunho disso em alguns monumentos da literatura antiga como o décimo oitavo idílio de Teócrito para as bodas de Menelau e Helena ou o de Hesíodo sobre as bodas de Tétis e Peleu. Na tradição judaica, o Salmo 44 e o Cântico dos Cânticos foram considerados epitalâmios (cf. MICHEL, S.- P., «Épithalame», in DSp IV, Beauchesne, Paris, 907-909). A disposição origeniana das personagens em Esposo, Esposa, acompanhados por dois coros, segue bem a tradição antiga do drama grego. Por outro lado, ao referir que são os antigos (pagãos) que se apropriaram deste género depois de terem descoberto o Cântico dos

Cânticos, Orígenes inscreve-se bem na longa tradição patrística que pretende ver na sabedoria de Salomão e na

legislação mosaica a fonte de todas as filosofias pagãs antigas [cf. ORÍGENES, CCt Prol. 3, 4 (130)]. Não há dúvidas então, para o alexandrino, de que o Cântico dos Cântico seja o epitalâmio por excelência.

400 Esta pergunta recorda-nos a afirmação origeniana de que só a Encarnação do Verbo tira o véu que cobria a Lei e os Profetas [cf. ORÍGENES, Princ. IV, 1, 6 (280-282)]. Assim, a Esposa (a Igreja), antes a sinagoga, começou por conhecer o Esposo apenas pelo véu da Lei e pelos Profetas até que, pela sua Encarnação, o Esposo suprimisse todos os intermediários (Hb 1, 1-2), de tal modo que a Esposa possa agora entrar em comunhão direita com ele. Por isso, o crente que recebeu os beijos do Esposo aprendeu dele a adorar a Deus, já não em Jerusalém ou na montanha dos samaritanos, mas em espírito e verdade [cf. ORÍGENES, CIo XIII, §109-113 (88-92)].

Primum sponsa orat et statim in mediis precibus auditur. Videt praesentem sponsum, uidet adulescentulas suo comitatui copulatas. Deinde respondet ei sponsus et post sponsi eloquia, dum ille pro eius patitur salute, respondent sodales, donee

sponsus sit in recubitu et a passione consurgat, se quaedam sponsae (Ct 1,

11) ornamenta facturos.