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Se existe uma preocupação pastoral em toda a obra origeniana, a pregação é como que o palco luminoso da sua plena manifestação, cuja finalidade é ensinar, exortar e converter107.

Pregador incansável e popular, cuja «reputação de doutor faz com que se espere dele ideias justas e fecundas»108, ele é talvez um dos maiores pregadores da antiguidade cristã, pois «o

mais antigo monumento que possuímos da pregação cristã é constituído pelas homilias de Orígenes»109. A quase totalidade das suas Homilias foi pronunciada em Cesareia da Palestina,

provavelmente entre os anos 233 e 250110, com uma maior frequência durante os anos sem

grande perseguição do reino de Filipe, o Árabe (244-249). Terá pregado com uma frequência quase diária111, seguindo a repartição em três ciclos das leituras bíblicas no seu tempo112. G.

Bardy pensa que terá pronunciado cerca de 500 homilias, mesmo se temos apenas 204 na sua integralidade e alguns fragmentos113.

Herdando o género homilético da tradição sinagogal e eclesial, Orígenes não o influenciou muito114. Porém, inovou e aperfeiçoou-o, fazendo da homilia exegética o lugar

duma leitura e interpretação continuada da Escritura na heterogénea assembleia litúrgica115.

Contrariamente aos Comentários, onde faz uso do seu grande arsenal exegético, o contexto litúrgico e a composição variada das assembleias convidam-no a um estilo mais simplificado.

107 Cf. CASTAGNO, M. A., Origene predicatore e il suo pubblico, Franco Angeli Libri s.r.l., Milão, 1987, 65.

108 BORRET, M., «Introduction», in ORIGÈNE, HLv, introduction, traduction et notes par Marcel BORRET, T. 1, Cerf, Paris, 1981, 13.

109 BARDY, G., «Un prédicateur populaire du IIIe siècle», in RA 45 (1927) 513. 110 Cf. BARDY, G., «Origène», 1498.

111 Cf. SIMONETTI, M., Origene esegeta, 79.

112 Cf. CASTAGNO, M. A., Origene predicatore e il suo pubblico, 50-59: os encontros matutinos eram sobretudo para catecúmenos, onde se lia e explicava um texto do Antigo Testamento; as assembleias eucarísticas que encerravam o jejum nas quartas e sextas-feiras, eram reservadas aos batizados: lia-se e interpretava-se o Evangelho; as assembleias dominicais eram mais numerosas e heterogéneas e, durante estas, eram lidos textos do Antigo Testamento, do Evangelho e duma epístola apostólica, decidindo o bispo qual deles deveria ser explicado pelo pregador.

113 Cf. BARDY, G., «Un prédicateur populaire du IIIe siècle», 513-514. 114 Cf. DE LUBAC, H., Histoire et esprit, 131.

31 Adapta-se à heterogeneidade das assembleias, mas sem perder o rigor no zelo por formar cristãos perfeitos116. Distanciando-se de toda a crítica de esoterismo, que podia surgir da

erudição dos seus Comentários, mais destinados aos “proficientes” e “perfeitos”, o nosso pregador não se cansa de repetir que a Palavra de Deus é o alimento para todos, qualquer que seja o seu estado de progresso para a perfeição117. Com efeito, o nosso autor queria que o

coração de cada ouvinte se tornasse «uma biblioteca dos livros divinos», um tabernáculo vivo do Logos de Deus, um vibrante testemunho no século da majestade de Cristo118. Por isso, como

pregador, sente-se investido da grande missão de partir o pão fresco da Palavra para o dar aos seus irmãos e convida os outros pregadores a fazerem o mesmo, oferecendo, sempre “fresco”, para o louvor de Deus, o pão da Palavra presente neles. A sua exortação é simples, mas diz o seu projeto:

«Quando começarem a pregar a homilia ao povo, não pronunciem coisas da véspera; não falem das coisas velhas segundo a letra, mas, pela graça de Deus, anunciem sempre palavras novas e encontrem sempre palavras espirituais…»119.

Este objetivo e o próprio contexto litúrgico fazem com que, nas suas Homilias, ele se focalize quase exclusivamente sobre o sentido espiritual do texto lido120, fazendo jorrar dele «a

fonte de vida» para os seus ouvintes, mercê do uso da alegoria121.

Convicto de que o pregador deve ter uma vida impregnada pelo Espírito de Deus, que «tem a responsabilidade da salvação da alma de quem o escuta», o alexandrino sabe que a plena

116 Cf. BARDY, G., «Un prédicateur populaire du IIIe siècle», 515.

117 Cf. BORRET, M., «Introduction», 13-14. Orígenes não é esotérico na sua conceção do acesso aos mistérios divinos escondidos na Escritura, mas reconhece que, apesar de haver uma diversidade das idades espirituais, que não coincidem com a idade natural, todos têm acesso a esta riqueza da Escritura mediante a ascese, o estudo e a oração.

118 Cf. ORÍGENES, HEx IX, 4 (298): «Habeat et arcam testamenti, in qua sint tabulae legis, ut in “lege Dei meditetur die ac nocte” (Sl 1, 2), et memoria eius arca et biblioteca efficiatur librorum Dei, quia et propheta beatos dicit eos qui memoria tenent mandata eius, ut faciant ea»; XIII, 2 (376): «Spiritalis autem lex aurum requirit ad tabernaculum, quod intra nos est…».

119 ORÍGENES, HLv V, 8 (242): «… cum profere ad populum sermonem coeperint, non hesterna proferant, non uetera, quae sunt secundum litteram, proloquantur, sed per gratiam Dei nova semper proferant et spiritalia semper inueniant».

120 Cf. SIMONETTI, M., Origene esegeta, 80: o sentido literal tem geralmente um papel simplesmente propedêutico nas suas Homilias, contrariamente ao peso e extensão que tem nos seus Comentários.

32 compreensão depende da ação do Espírito santo no coração dos seus ouvintes. Por isso, ele faz um uso moderado da retórica, optando sobretudo pela simplicidade da linguagem apostólica, procurando captar a atenção por um estilo repetitivo didático, próprio da sua experiência na escola, e ir ao coração de cada um, atualizando por ele, com expressões e realidades da vida quotidiana, a Palavra escutada122. Preocupa-se, sobretudo, pela perfeição moral de quem o

escuta, mais do que pela instrução exegético-dogmática123, apontando sempre para a dimensão

mística da união do ouvinte com o Verbo, que deve caraterizar a vida do crente124. Esta

instrução, se bem que importante, está ao serviço de uma vida de perfeição no quotidiano, expressão duma conversão radical. Deste modo, Orígenes evita qualquer excesso científico e condiciona a revelação dos mistérios divinos ao nível da assembleia, como ato de prudência, mas também, reconhecendo humildemente a sua própria ignorância acerca de certos mistérios, convida o próprio ouvinte a procurar entendê-los 125.

A exortação assim feita aos seus ouvintes para uma relação esponsal com Deus, marcada também por uma intensa experiência religiosa individual, reatualiza a realidade do martírio. Este vive-se agora, num tempo de menos perseguição, pela radicalidade de vida moral e espiritual no “século”, dado que a Palavra de Deus não pode deixar de ser fogo que queima e ilumina126. Este imperativo cristão, possível apenas pela força da oração, faz com que o

alexandrino, não só use as doxologias como era costume, mas resuma, numa oração final, a mensagem da sua pregação127. A dimensão contemplativa, para a qual se orienta então a

atividade apostólica do pregador e do didaskalos, deve traduzir-se também, numa união entre

122 Cf. CASTAGNO, M. A., Origene predicatore e il suo pubblico, 68-81. 123 Cf. BARDY, G., «Un prédicateur populaire du IIIe siècle», 681.

124 Cf. BORRET, M., «Introduction», 22-34. Apresentando as duas sequências, história-moral-mística ou história-mística-moral que segue geralmente Orígenes nas suas Homilias, este autor apresenta a componente mística como aquela que nutre e dinamiza a sequência. Ele reconhece que, no caso das HLv, a segunda sequência tem uma superioridade sobre a primeira.

125 Cf. BARDY, G., «Un prédicateur populaire du IIIe siècle», 682-683. 126 Cf. CASTAGNO, M. A., Origene predicatore e il suo pubblico, 258. 127 Cf. BARDY, G., «Un prédicateur populaire du IIIe siècle», 688.

33 ação e contemplação, em vida apostólica para cada crente, participando numa transformação do mundo segundo os desígnios de Deus128.

No seu ministério de pregador, o Adamantios permaneceu fiel ao seu pensamento, apesar das exigências próprias de uma homilia. Mostrou assim, nesta segunda fase da sua vida, que o teor da sua exegese-espiritualidade-teologia, fruto do estudo ascético na escola, permanece também alimento vivificante para os “simples”. Ao pregar, ele revela-nos a profundidade da sua experiência de fé, da sua vida espiritual e eclesial129. Tornou-se pequeno

no meio dos pequenos para que todos, numa comunhão sinfónica de relação pessoal com Deus, animada pelo Espírito Santo, pudessem saborear o pão fresco da Palavra a caminho do encontro escatológico.

Chegados ao fim deste primeiro ponto sobre a Escritura na vida e teologia de Orígenes, algumas questões animam o nosso espírito: será que todo este trabalho e dedicação lhe seria possível sem a convicção de que o homem, pela sua própria estrutura antropológica, pode ser tocado e transformado pela Palavra de Deus? O pressuposto de que cada um, na sua pura singularidade, pode e deve ter uma relação esponsal com Deus não estaria na base da hermenêutica origeniana, expressa claramente na pedagogia divina dos três sentidos da Escritura?130. Não estará aqui a porta que se abre para compreendermos qual o estatuto da

afetividade na hermenêutica origeniana? O certo é que o “homem d’aço” partilha a tradicional convicção já presente na Igreja de que a Escritura fala também aos ouvintes e leitores atuais e reconhece que a passagem do sentido literal para o sentido espiritual requer uma transformação interior do leitor da Escritura131. Em tudo, se é verdade que Orígenes faz uso das ciências

profanas do seu tempo, como propedêuticas para uma melhor interpretação e vivência da

128 Cf. CROUZEL, H., Origène, 141-142.

129 Cf. DE LUBAC, H., Histoire et esprit, 135-138. 130 Cf. ORÍGENES, Princ. IV, 2, 4 (312).

131 Cf. DECOCK, P. B., «Origen of Alexandria: the study of the Scriptures as transformation of the readers into images of the God of love», in HTS 67 (2011) 1, 1-3.

34 Escritura, o certo é que toda a sua vida, obra e relação com a Escritura está mediada pela regula

fidei, de tal modo que seja em tudo homem da Igreja, mais do que representante cristão duma

corrente filosófica, nomeadamente platónica132. Este sentido de pertença eclesial e a convicção

de que só podemos compreender a Escritura, conhecer e seguir Jesus numa relação pessoal, se estivermos enxertados na Igreja, dominam o seu itinerário hermenêutico pela Escritura: «a Igreja é para Orígenes o único lugar onde Jesus ensina, onde o Verbo e o Espírito nutrem as almas»133.