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Estas duas palavras, como “alimento” e “bebida” espiritual, dizem algo sobre os efeitos afetivos do conhecimento progressivo de Cristo551 e situam-se naturalmente do lado dos frutos,

consequentes a um caminho já realizado, sob a ação de Deus, “o nosso agricultor”, que sabe transferir a nossa alma, como a sua vinha, para lugares melhores, símbolo do progresso espiritual552. Vinum está ligado naturalmente à alegria e aparece quase sempre na boca da

Esposa. A comparação que ela faz ao ver o Esposo, cuja vinda pedia ao Pai na oração, afirma a superioridade dos “seios” do Verbo sobre o “vinho”, que tinha vindo a beber na Lei e nos Profetas: «porque os teus seios são melhores do que o vinho».

Logicamente, poderíamos pensar que a imagem dos “seios” do Esposo, em relação ao tema místico da embriaguez, se refere ao “vinho novo”, que vem do Verbo de Deus e afirma a sua novidade e superioridade quanto ao “vinho velho” do AT. Todavia, Orígenes, na primeira

Homilia, mostra que, enquanto as donzelas prometem amar “os seios” do Esposo, adiando

assim a alegria delas, a Esposa adulta «já goza inteiramente do leite dos seus seios e, exultando, diz: os teus seios são melhores do que o vinho»553. Assim, desta primeira alegria, fruto do

Espírito Santo (Gl 5, 22), que brota do contacto místico com Cristo e do desfrutar os tesouros

548 Cf. ORÍGENES, CCt I, 3, 6 (210): «videt enim quod istae quattuor species unguenti illius formam tenebant incarnationis Verbi Dei…».

549 Cf. ORÍGENES, HCt II, 2 (106): o alexandrino estabelece uma correlação entre a unção de Betânia e a Paixão do Esposo.

550 Cf. ORÍGENES, HCt II, 12 (146).

551 Cf. CROUZEL, H., Origène et «la connaissance mystique», 191-209. 552 Cf. ORÍGENES, HCt II, 3 (114).

165 da sua sabedoria, como uma participação na beatitude, a Esposa caminha progressivamente até ao estado de embriaguez do vinho da verdadeira vinha (Jo 15, 1), do “vinho da alegria”, “o vinho do Espírito Santo”554. Este exprime uma maior intimidade, exclusiva da sua relação com

Deus, em que se dá como que uma fusão entre Deus e a alma, num só espírito, cada qual guardando a sua autonomia e identidade555. Marcada tão profundamente pelo Espírito Santo, a

alma, “bela e perfeita”, pode então ser comparada à “casa do vinho” e ouvir o Esposo dizer-lhe: «introduzi-me na casa do vinho» (Ct 2, 4); este pedido dirige-se também aos catecúmenos a fim de que venham a ser perfeitos556. De modo geral, o vinho dos mistérios, que exprime melhor os

efeitos afetivos, oferece à alma a alegria e as delícias, que num primeiro momento se refere à vinda do Verbo divina na alma para depois se referir progressivamente à alegria da restauração da sua beleza e, finalmente, às núpcias do Cordeiro557.

Malum, nesta forma neutra, tanto pode significar macieira como maçã. Este campo

semântico, que oscila entre a árvore e o fruto, permite a Orígenes traduzir níveis diferentes da revelação do Esposo que, segundo a capacidade de uns, é Macieira «entre as árvores da floresta» e, para outros, um pouco mais avançados, já é Maçã. Como árvore, malum é imagem da vida, relembrando a tradição que vê na macieira a árvore paradisíaca do “conhecimento do bem e do mal”, de tal modo que pelo perfume que exala e a atração que produz no homem, ele pode ser sinal atraente da vida em Deus, marcada pela busca da sabedoria, para quem cresce nos sentidos espirituais ou símbolo sensual da fonte do pecado para quem constrói a sua morada nos sentidos corporais558. Assim, num paralelismo com a atraente árvore do paraíso, que pela

ação maligna da serpente, se tornou princípio de perdição para o homem que queria ser como Deus sem a mediação divina, o Esposo aparece na epínoia Macieira como “árvore da Vida”

554 Cf. ORÍGENES, HCt II, 7 (128).

555 Cf. CROUZEL, H., Origène et «la connaissance mystique», 206. 556 Cf. ORÍGENES, HCt II, 7 (126).

557 Cf. CROUZEL, H., Origène et «la connaissance mystique», 184-189. 558 Cf. ORÍGENES, HGn I, 17 (72-74).

166 (Ap 2, 7)559, mediador incontornável pelo qual o desejo primordial de deificação do homem

encontra resposta. Portanto, quando a Esposa desfruta da sua “sombra” e enxerta a sua vida nesta “árvore da Vida”, o Esposo aparece-lhe «como macieira entre as árvores da floresta». Como fruta, malum (maçã) já não encanta apenas o olfato pela suavidade do seu odor, mas delicia o paladar com o seu doce sabor. Assim, a Esposa que, sentada à sombra da Macieira, saboreia os seus frutos (maçãs), nutre-se da Vida divina, guardando o seu doce sabor na sua garganta560: é a experiência mística, onde se delicia a sabedoria divina através da lectio divina,

vivida por todos os sentidos numa penetração gradual dos mistérios561. A maçã, em relação ao

odor dos perfumes e à árvore (malum), realiza já um avanço, pois «não só deleita a garganta (palato) com um doce sabor mas também acalma o espírito mediante o olfato»562.

Vinum e malum como alimentos espirituais, cuja fonte é o Verbo de Deus, manifestam

a dimensão afetiva da relação Esposo-Esposa, apelando sobretudo ao sentido do paladar. De facto, os sentidos espirituais como os corporais podem dar algum prazer/gozo à alma que saboreia as delícias da Sabedoria divina, reclamadas ardentemente pelo seu coração563. O

conhecimento do Esposo que daqui nasce, como finalidade da fé564, arde o coração e faz crescer

a Esposa no amor, ferindo-a de caridade e ordenando nela a mesma caridade565.

559 Cf. ORÍGENES, CCt III, 8, 11 (572).

560 Cf. ORÍGENES, HCt II, 6 (124): a superioridade de Cristo em relação às outras árvores da floresta afirma-se também pela fecundidade da sua doutrina e revelação, traduzida não só pela suavidade do odor que exala, mas sobretudo pelos frutos espirituais com os quais nutre a alma e apazigua o espírito.

561 Cf. MONTEIRO, A. T., Os sentidos espirituais no Comentário ao Cântico dos Cânticos de Orígenes, 342.

562 ORÍGENES, HCt II, 6 (124): «Est autem aliquid, quod optimi et saporis sit et odoris, id est et fauces dulcore delectet et spiritum mulceat odoratu: tale est malum et istiusmodi est naturae, ut in se utraque possideat». 563 Cf. ORÍGENES, HPs 36, 1, 4 (76-78). Lembramos que o coração designa sempre em Orígenes a parte superior da alma, a inteligência, e muito raramente refere-se a ele como órgão do corpo humano. Mesmo quando o faz, é em oposição como o que ele chama o «verdadeiro» coração, o espiritual cujo aquele é apenas imagem (cf. CROUZEL, H., «Le coeur selon Origène», 6).

564 Cf. CROUZEL, H., Origène et «la connaissance mystique», 192-193. 565 Cf. ORÍGENES, HCt II, 8 (128-132).

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